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O BEIJO AMARGO por Felipe Medeiros (The Naked Kiss). “Lavradores, vossa vida é triste,
lavradores, vós sofreis na vida, lavradores, vós sois bem-aventurados, toda
uma vida de luta e de trabalho suportada sem jamais se curvar.” Para
Fuller, mais vale se perder, sofrer por aflições sinceras do que ser digno de
uma felicidade relativa. Seus homens foram feitos para terem seus corações
enriquecidos pela vida, logo pela capacidade de ver, de criar suas verdades
próprias, a despeito das conseqüências. Interessa-lhe a busca, que é típica e
constante dos deslocados. O Beijo
Amargo é um trabalho de imaginação viva, de posicionamentos explosivos,
indicados pela abordagem, pela forma com que Fuller se aproxima e favorece os
riscos das personagens. Representação a nu: trabalha a postura dos atores e
seu entorno segundo o princípio das coisas estarem ali por serem simplesmente
necessárias, por darem aos sentimentos, à pureza dos gestos, um tom
distinguível. O
espectador espera que Kelly se conforme às reminiscências de um passado
levado com a prostituição. Apesar da vontade de recomeço, apesar de seu
desejo de mudança, há algo que vem do seu mais profundo interior e que,
justamente, não condiz com essas expectativas - como se apesar de toda sua
força, de todo o seu ímpeto, ela já soubesse de antemão que vai se tratar de
uma trilha malfadada. E este é precisamente o enfoque de Fuller: na garra e
convicção de mudança da protagonista. Entre
algumas de suas predileções, vê-se que Dado o
retrato, interessa a Fuller a idéia de contaminação,
de um anjo extraviado perdido entre as ruínas da conduta, num mundo com o
qual não tem meios de estabelecer um contato à altura de seus projetos (Kelly
quer casar, cuidar das crianças do hospital, viver sua vida intelectual,
coisas de cunho bastante pessoal em suma). É uma desolada, mas que se basta:
de certo modo é livre, e desperta daí a cobrança e o ressentimento da
comunidade na qual escolhe se instalar. Como a sua protagonista, O Beijo Amargo declara
guerra aos donos de uma situação moral tipicamente maniqueísta. A chegada
de Kelly ao novo recanto não deixa de ser uma metáfora bastante pungente
sobre a presença do indivíduo na América, ou pelo menos a primeira face de
uma realidade indesejada que Fuller, como a sua protagonista, irá confrontar
pelo restante do filme. As boas intenções da comunidade são postas em
xeque, problematizadas e tencionadas no espelhamento da má-consciência de
seus indivíduos, a partir do momento em que tais intenções não se revelam
essenciais a si mesmas, mas ao regulamento da aparência que a comunidade acredita
ser conveniente à sua (falsa) moral. O homem regula seu semelhante à imagem
de si, ou à imagem que espera de si, aderindo-lhe por vezes uma máscara de
aceitabilidade para ocultar a ausência de escrúpulos e a fraqueza da sua
personalidade. Griff (chefe
de polícia da pequena Grantville com ar de dono da cidade) é a segunda face
da América que Fuller rejeita, a personificação de sua corrupção, capataz de
um feudalismo tardio e influenciado pelo poder bruto; tão cego em dar voz aos
outros, e portanto incapaz de entender o ressentimento inconsciente que o
impele a fazer ameaças contra Kelly. O tratamento dessa figura é chave para
entender a perspectiva do cinema de Fuller: Griff é um homem vulgar, de
regras fixas que o limitam em caráter, porém a forma com a qual nos é
apresentado nunca é menos que surpreendente. Ele surge como essa ameaça que
se espreita às costas de Kelly, às costas do nosso pacto de posicionamento
crítico a respeito das hipocrisias e vícios sociais. É ele o fantasma a ser
evitado, e intenso é seu posicionamento em quadro, em extra-campo, no
embate psicológico a se formar entre a espessura não conformista das
imagens - longe de ser um papelão humano a bater ponto em exclamações
deterministas da teia ficcional. Fuller nos
arrebata pela heterogeneidade de seu estilo (podendo conter-se ou
desvairar-se no meio de uma cena, indo da contemplação ao Barroco das
imagens), embora isso não queira dizer que seu trabalho não apresente unidade
ou coerência formal. Muito pelo contrário: em tudo que filma parece
repercutir uma comoção íntima pelo conhecimento das coisas, por exemplo na
tentativa de coincidir um enquadramento justo em tons à realidade que parece
se revelar, um retrato das coisas em permanente proximidade. Para tanto, em
termos de resultados, poderia citar a capacidade de síntese do jornalista
Fuller, a memória inequívoca do realizador, a qualidade do observador
cênico. Mas há certamente algo mais: sua câmera persegue a poesia. Não
saberia ao certo, nunca soube, indicar o que seria poesia. Mas vendo seus
filmes, |
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