UMA BORBOLETA NO ESTÔMAGO
Sobre os filmes de Samuel Fuller, por Maxime Renaudin
Um rio que carrega imagens loucas, sonhos e pesadelos regurgitados por homens, sinceramente loucos - loucamente sinceros, que marcham sem parar jamais. Ao fim, o muro ou a liberdade. E, sempre, a verdade. James Addison Reavis nos monastérios da Espanha, Private O’Meara em território Sioux, os saqueadores de Merrill atrás das linhas inimigas, Keys só em sua arena... Uma viagem alucinada ao único território que merece ser explorado, aquele da sua própria consciência. Planos fechados que comprimem o coração, pois os homens ali estão nus, e, afora a pele, nada nos separa da tempestade sob seus crânios. O rosto de Rod Steiger ainda me queima quando, trespassado pelos berros de Ralph Meeker, ele escolhe ser o que é.
Nunca deixaremos de nos extasiar diante das fulgurâncias, diante desses instantes em que, no desvio de um plano, a ruptura de um equilíbrio, no tom ou no espaço, devolve uma cena de um choque estético tão inovador quanto inesperado. Por ora resisto ao prazer de mais uma vez me encarregar deste fardo que é somar pontos que se acumulam baseados numa hipotética escala de gênio. O cinema não se resolve nessas formas que se inventa ou que se destrói (mesmo se elas nele tomem parte); o cinema é uma questão de olhar. Essas fulgurâncias me assombram porque se inscrevem no procedimento insensato de um homem que, sem medos nem freios, tenta a cada filme trazer um olhar sempre novo sobre o mundo que o cerca. Trata-se, cada uma das vezes, de uma missão cumprida de coração aberto na selva birmanesa, em que o milagre do sucesso se deve tanto à exatidão dos gestos (o “assim aconteceu”) quanto à absoluta sinceridade do discurso (o “você vai morrer”). O cinema de Fuller consiste na luta do homem por sua sobrevivência, algo que Rossellini - na verdade - nunca rodou.
Olhos nos olhos ou o foco absoluto.
Charles Bronson olhando para Rod Steiger olhando para Ralph Meeker antes de aliviar seu sofrimento. Jeff Chandler observando pela janela o tenente anunciar a seus homens que o inferno apenas começara, Kristy McNichol confrontada - plano contra plano - ao proprietário do cão branco. Imagens desraigadas, animadas por uma chama seca e vibrante, que se respondem em um deserto de solidões (Renegando o Meu Sangue), um plano-mundo em que se toma todo o universo no enquadramento de uma janela (Mortos Que Caminham), uma verdadeira falsa experiência de tele-verdade em que os símbolos se encontram na linha de frente (Cão Branco); mas a cada vez, a mesma cena, em que um personagem se realiza - em ação ou em pensamento - em sua relação com o outro. A distância que separa a câmera de Fuller de seus personagens é sempre a de um instante de verdade. Distância que rejeita todo a priori, mesmo - sobretudo - aquele da objetividade. Uma câmera que não está à altura nem dos homens nem dos deuses, mas em todos os lugares e momentos de uma só vez. Cada plano é um olhar total, carregado de uma força emotiva que não é aquela da evidência, mas aquela da convicção. Porque essas imagens são todas marcadas, no canto, por uma presença indelével, a de Samuel Fuller, ponto de exclamação ininterrupto que faz vibrar o plano de um grito surdo, que lhe dá sua respiração. É esse sopro que nos rende palavras e rostos tão próximos, objetos infinitos de um olhar alucinado. Samuel Fuller é um (grande) cineasta, nisto que é fazer-se presente, de pé, por trás de cada plano.
Filmar com as tripas.
O quepe vermelho de Kristy McNichol suspenso nas águas de Veneza (Cão Branco). Um bloco-imagem arrancado do vazio, que aniquila, pela força de sua incongruência, toda possibilidade de reconciliação: o espaço e o tempo da cena se esvaem na violência da ruptura, onde o sentido nem se procura nem se constrói, mas se oferece no estupor do instante. Samuel Fuller é o inimigo do sutil. Suas imagens são animadas de uma tal fé na força da representação que se oferecem sem desvios ou subterfúgios. Quando Constance Towers encontra no caminho a criança em seu berço (O Beijo Amargo), num delírio de caretas que só poderiam mesmo repelir os espíritos polidos, a enormidade desta cena improvável se deve, em parte, por não ter sido anunciada ou mesmo preparada anteriormente e, em parte, ao que ela transborda, numa plenitude um tanto selvagem, de suas intenções. Aí se realiza a coincidência absoluta - no espaço e tempo do plano - entre o desejo de mostrar e a necessidade de ser visto, que só pode se realizar a troco da negação do objeto do olhar, que não mais existe além da força de sua enunciação. Pois Fuller é também o inimigo do real. Sua audácia reside para muitos nesta capacidade de, sem cessar, forçar os limites do que pode ou não ser mostrado, ou, mais exatamente, do que pode ou não ser visto por um espectador anestesiado por mil quilômetros de películas átonas, atarraxadas ao triste postulado do Real. Se adentra, também, uma parte de provocação nesta atitude - uma certa maneira de romper os grilhões, de enfrentar tabus e convenções, ela consiste sobretudo na expressão desse desejo violentamente sincero - este imperativo - de filmar as coisas não como são, mas como ele as vê. Como as sente. No estômago, poderíamos dizer. Fuller filma com as tripas.
Mostrar o inconcebível. O único.
Esse mostrador infatigável é antes de tudo uma testemunha. A enormidade de seu olhar é simplesmente aquela de seu tempo. O Fuller cineasta será sempre o homem, o soldado, que se encontrou um dia de maio de 1945 empunhando a câmera diante do indescritível, no momento em que seu regimento libertava o campo de Falkenau. Se pode parecer vão re-descobrir nessas primeiras imagens filmadas a gênese de um cineasta - sobretudo quando elas nos chegam comentadas, re-visitadas, pelo próprio Fuller trinta filmes depois - nós permanecemos fascinados pela coerência de um comportamento intacto. Até esta cena inconcebível em que um general russo deve anunciar aos homens diante de si a morte certa de todos: o que interessa a Fuller aqui é menos a intolerável evidência desta morte que sua tomada de consciência, sua assimilação e enunciação pelo homem que a pronuncia frente aos que dela padecem. Esse general poderia se chamar Merrill. Mas o que fascina, sobretudo, é esta obsessão, martelada por Fuller como uma profissão de fé, de ter filmado aí o que ninguém antes dele viu ou filmou. Poucos cineastas souberam, quiseram, desposar sua época com tanta raiva e tanta integridade. Cada um dos filmes de Fuller responde a uma dupla necessidade, a de mostrar “o que aconteceu” através dos fatos de uma História que se faz histórias, e a de contá-lo como nunca até então. Presente em Falkenau, olhos colados ao visor enquanto os outros apenas podiam desviar o olhar, ele estará, cineasta, sempre presente por trás de cada uma de suas imagens, como testemunha de seu tempo.
A fadiga e as lágrimas. A força da emoção.
Uma época atravessada por personagens em busca do absoluto, em corpo trabalhados, até a carne, por conflitos e incertezas. É na continuidade do plano que Fuller persegue esses instantes em que o rosto se anima, em que o espírito vacila; ele sabe que o tempo do cinema é antes de tudo aquele do plano, esse plano que se enche, em sua duração, de todos os desejos e de todas as tensões. O plano da fadiga e da transpiração, o plano do fôlego curto e do coração que escapa, o plano do alívio e da exultação. Uma duração que não é a do tempo objetivado, mas aquela das emoções apenas, que se amarram e desamarram em suas contradições, portando em seu coração essa suposição de humanidade que espreita Fuller. Conheço poucos momentos de cinema tão simplesmente perturbadores como aquele em que surgem as lágrimas sobre o rosto abatido do soldado de Merrill quando ele renasce ao mundo num instante de descanso. A plenitude frontal dos dois planos que o encaram - a mulher, a criança -, ícones de vida que apanham as lágrimas no silêncio dos sorrisos e os sobressaltos de uma respiração reconquistada. Ou ainda, a marcha não interrompida do sargento quando a criança desaba sobre seus ombros (Agonia e Glória). A violência desses olhares apagados que não mais se cruzarão, o de um vivo-morto e o de um morto-vivo, margeando, em movimento contínuo, a ribanceira banhada pelo crepúsculo numa inércia fúnebre. Algo se passa, então, que nos chega de muito longe, para além das cóleras e medos que se imprimem nas carnes, do âmago das almas e corações, um sentimento de vida - ou de morte - que banha o plano e o faz tremer imperceptivelmente com sua presença, algo como o bater de asas de uma borboleta.
(Traduzido por José Roberto Rocha)
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