O SONHO DE CASSANDRA, Woody Allen, 2007

por Matheus Cartaxo Domingues

 

“Que triste dia é este para nós e tio Howard” diz Ian (Ewan McGregor) a seu irmão Terry (Colin Farrel), sentados numa mesa de bar, como poderia dizer Ismênia ou a irmã dela, Antígona, nas proximidades do Palácio Real de Tebas. Horas atrás, a tragédia lhes foi anunciada através das palavras do tio: devem matar aquele capaz de prejudicá-lo no mundo dos negócios se quiserem ter tudo o que precisam em termos de dinheiro - o primeiro anseia à vida confortável na Califórnia com a mulher que descobriu amar; o segundo tem de livrar-se de altíssimas dívidas adquiridas em apostas, antes de agiotas quebrarem suas pernas.

 

Howard é recebido no aeroporto pelos seus familiares londrinos e, em seguida, todos saem para almoçar em homenagem ao aniversário da sua irmã. Corte. Colin Farrel, sentado num banco, lamenta a situação na qual se meteu. Howard pergunta também a Ian do que este precisa. Ouvem-se trovões e uma forte chuva começa. Todos caminham apressados para baixo duma árvore, onde o tio dirá a proposta arrebatadora. A câmera os filma de certa distância nesse rápido percurso e ao mesmo tempo faz um sutil movimento para o alto. O afastamento dos três em profundidade antecipa um abandono do passado e da sanidade, o cruzamento dos limites. É revelada de vez a vertigem, a precipitação rumo ao abismo que sucederá pelo resto do filme.

 

A cena descrita acima se assemelha àquela na qual praticam o assassinato. Na primeira, o mundo pesa sobre as costas deles; na segunda, de uma delicadeza imensa embora repleta de agonia e tensão, é noite sobre a Terra: acompanha-se o progressivo escurecer do céu enquanto os irmãos seguem a iminente vítima. Duas das cenas mais longas deste filme cheio de elipses e cortes abruptos - numa queda livre é difícil se ater a detalhes, ao “passo a passo” de uma receita de cozinha, tendo em vista que a velocidade só faz aumentar, sugerindo a progressão fatalista do trágico. Woody Allen é incapaz de frear ou congelar a imagem a fim de aferi-la. O mais impressionante acabará por ser o efeito da queda, o desmantelamento causado. “Como viemos parar aqui?” perguntar-se-iam os dois irmãos do fundo do penhasco caso tivessem tempo. Quanto mais os olhamos e quanto mais eles nos olham, mais nos damos conta do desespero que os consome.

 

Borges narrou a história de Abenjacan, o Bokari: ameaçado de morte pelo fantasma de um homem o qual matou, construiu um labirinto onde se escondeu. Não estava salvo, porém; com o labirinto, ergueu sua ruína: entre quinas e corredores, seria certamente assombrado por lembranças com o morto. Terry, no filme, toma remédios e sonha com o homem assassinado; a única solução para os problemas encontrada pelo tio é fratricídio. Em resumo: tudo reflete uma espécie de aversão a si próprio, como se nos dissesse até que ponto um homem pode chegar.

 

Ao fim, penso no policial encarregado de inspecionar a cena do crime, claramente surpreso com aquilo que vê, dizendo, como antes já dissera o coro de Antígona de Sófocles: “A vida é curta e um erro traz um erro. Desafiando o destino, depois tudo é destino”.


 

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