PERCUSSÃO E PRECISÃO por Miguel Marías Qualificou-se
Samuel Fuller, um pouco precipitadamente e desde cedo com caráter de julgamento
provisório, em algumas tentativas “pioneiras” de aproximação à sua pouco conhecida
e nada respeitada figura, lá pelos anos 60, de “primitivo”. Advirto, para não
lançar sobre ele desmerecidas suspeitas, que não me refiro ao artigo de Luc Moullet na Cahiers du Cinéma nº 93, março de 1959, primeira análise séria de
Fuller que, apesar de uma boa coleção de erros táticos - respondia a ataques
hoje esquecidos - não menos duradouros, segue estando entre os melhores,
junto ao posterior (1964) de Jacques Lourcelles em Présence du Cinéma. O mal é que a etiqueta (como habitualmente
sucede com tudo que “cola”, simples e sonoro) aderiu-se ao corpo para sempre,
sem que pareça haver modo de desprendê-la, nem sequer quando o autor de Merrill’s Marauders (1962) está há uns
doze anos enterrado e quase meio século após Andrew Sarris ter escrito Certo, o
Fuller dos primeiros tempos - desde sua estréia fulgurante E não
somente porque Fuller, nascido em 1912, era ainda relativamente jovem, e mais
ainda como diretor de cinema que como pessoa (pois já carregava sobre seus
ombros uma notável biografia com a qual contar e uma variada e arriscada
experiência multiprofissional quando começou sua nova carreira), senão porque
seu enfoque, ainda que partindo do exemplo dos clássicos (de Ford a Wellman,
de Herbert Brenon a Griffith, de Murnau a Walsh, de Gance a Borzage, de Lang
a Preminger), era - ainda que não se propusesse assim - original e inovador, além
de eclético em sua eleição de recursos expressivos, pelo que já tendia a
evoluir rumo a um outro estilo, mais brutal e impactante, mais elíptico e
direto, mais febril e sensacional que o considerado “clássico” (e que, tal
como habitualmente descrito, não foi praticado jamais senão pelo mais vulgar
e menos inspirado dos artesãos). Fuller havia lutado a guerra, e não de um
gabinete ou de uma ponte de comando; havia coberto como repórter de rua a
crônica de sucessos, sem se livrar dos mais aterradores. Havia visto muito
horror, muita carnificina, muito sangue e muita morte, e não precisava buscar
inspiração em novelas estrangeiras nem aprender sobre a vida em outros
filmes. Tinha coisas a contar. Era
evidente - desde seu primeiro filme, e nisso nunca mudou - que Fuller
aspirava a transmitir ao espectador o que havia vivido e visto com a maior
força, presença, energia e contundência possíveis. Não para convencê-lo de
nada - Fuller não terá sido jamais porta-voz ideológico nem pregador ou
vendedor a domicílio -, nem para ganhar dinheiro, mas por uma patente busca
da eficácia na comunicação: Fuller trata de ser ameno, rápido, econômico e
claro para ser bem entendido e evitar a redundância. Esta consciência autoral
- que o impulsionou a procurar escrever, produzir e dirigir seus filmes
sempre que lhe foi possível -, é lógico que ela despertasse o interesse e
suscitasse a simpatia de certos jovens cinéfilos e críticos, mais ou menos
iconoclastas e (alguns) aspirantes a cineastas, de Moullet a Michel Mourlet e
Lourcelles, passando por Jean-Luc Godard e Bertrand Tavernier, para não citar
mais que alguns de seus admiradores de primeira hora. E não é de se estranhar
que Godard, desde seu primeiro longa, À
bout de souffle (1959), adotasse Fuller como um de seus modelos
emblemáticos, copiando-lhe um enquadramento de Forty Guns (1957), em modo de saudação e homenagem; deu-lhe a
palavra, como Sam Fuller em pessoa, para que definisse o cinema - “um campo
de batalha [...] em uma palavra, emoção” - em Pierrot le fou (1965); em 1966 lhe dedicou, junto a Nicholas Ray,
sua despedida de Anna Karina e do amor e emulação do cinema americano, Made in U.S.A. E há que se reconhecer
que Fuller interpreta com histriônico entusiasmo seu próprio personagem,
muito “de cinema” - baixinho, expressivo, gesticulador, quase sempre com um
enorme charuto ou com um cachimbo entre os dentes -, dizendo “câmera, ação”
(ao menos alguma vez em sua vida) com um disparo de revólver. Não é
estranho que se descobrissem essas afinidades, e outras mais tarde (desde
Wenders a Kaurismäki; não tão explícitas, podem-se detectar mesmo em alguns
americanos, como Michael Cimino e Abel Ferrara, quiçá também Martin Scorsese,
Francis Ford Coppola, Brian De Palma, Michael Mann ou John Flynn), entre o já
maduro ex-jornalista de Massachusetts e várias vagas de diretores (e
cinéfilos) sobretudo europeus (e sempre estranhei muito que não tenha sido um
ídolo no Japão) mais jovens, porque se algo define Fuller é o seu caráter
espontaneamente inconformista e indomavelmente antiacademicista (não
surpreende que a Academia de Hollywood nunca lhe fizesse o menor caso nem
sequer para recordar-se dele a título póstumo: o desprezo era mútuo e
recíproco), em evidente ruptura (para quem queira ver) com tudo o que faziam,
o mesmo nos anos 50 que nos 60, todos os seus colegas (incluindo os
genericamente ou geracionalmente mais vinculáveis: Robert Aldrich, Anthony
Mann, Nicholas Ray, Richard Fleischer, Joseph L. Mankiewicz, Elia Kazan,
Robert Rossen, Abraham Polonsky, Joseph Losey, Jules Dassin, Edward Dmytryk,
Richard Brooks, Robert Wise, Mark Robson, Joseph H. Lewis, Phil Karlson,
Robert Parrish, Budd Boetticher, André De Toth, Fred Zinnemann, John Berry,
etc.). Dir-se-ia
que encontram-se feitas com outros materiais: são mais duras, ásperas, rudes,
secas e rugosas, e dão a impressão (na realidade enganosa) de se basear ou se
apoiar em maior medida na montagem, simplesmente porque o que em geral - por
princípio ou por costume - Hollywood tende a dissimular e polir - e a MGM
mais ainda -, Fuller, em contrapartida, ressalta, potencializa, faz sensível,
enfatiza. Cada mudança de plano, e suas variações em escala (às vezes
extremas), os movimentos de câmera, os cortes, os primeiros planos... notam-se - e muito - em Fuller, como
se sentem a materialidade, a consistência, a textura, o tato, o volume, o
peso, a corporeidade e o relevo dos objetos, dos seres humanos, dos animais,
das paisagens. Seu cinema - cada imagem e seu choque e contraste e sucessão -
tem uma dimensão muito mais materialista e física do que é habitual no cinema
americano. Em Fuller importam de verdade o peso e a força da gravidade, não é
precisamente um cinema leve e flutuante ou vaporoso, mas sim decididamente
sólido e tangível. Como mais
tarde Godard, Fuller se especializou desde o início em fazer o que não faziam
os demais e, se possível, o que - em teoria, segundo normas não escritas
porém certamente vigentes, e por cujo respeito velavam zelosamente muitos
produtores e seus mais servis capatazes -, “não se podia (ou devia) fazer”. Planos
larguíssimos com múltiplas posições de câmera, travellings epicamente vertiginosos,
mesclados com montagens ultra-rápidas (com ritmo de disparo de metralhadora) de
enormes closes, como se estivéssemos no cinema mudo soviético de Eisenstein,
Pudovkin e Vertov, conexões bruscas de closes com enormes planos gerais, emprego
do formato CinemaScope esquecendo do manual de instruções, com saltos de eixo
e falsos raccords convertidos em fator dinamizador, de desequilíbrio, de
contraste e de surpresa, gruas que pareciam rodas-gigantes ou carrosséis
enlouquecidos, embora nunca montanhas-russas enferrujadas como no Kalatozov
de Soy Cuba. Mas para além dos
aspectos formais e narrativos, não existia ainda a noção hoje opressiva e
asfixiante do “politicamente correto”, porém já começaram a censurar Fuller, à
direita e à esquerda, porque as utilizava sempre para fazer justo o que não
convinha, o que não era habitual e aceito, o que não estava bem visto, o mais
inoportuno, o menos “diplomático”, o que não se reconhecia publicamente nem
no campo da ficção. Pode-se
encontrar, mais que um paralelismo, certa explicável afinidade, solidariedade
e simpatia entre Fuller e os mais freqüentes habitantes de seus enfoques. Poucos
de seus personagens são exemplares, só tendo alguma nobreza, casualmente, e
por alto, os de mais baixo nível social e de reputação mais duvidosa, os
menos respeitáveis e recomendáveis, os proscritos - como o trio protagonista
de Pickup on South Street (1953):
Jean Peters, Richard Widmark e Thelma Ritter -, nunca os grandes poderosos, os
representantes da hierarquia econômica, social, política ou religiosa, quase
sempre interesseiros, covardes, falsos e corruptos, desde Barbara Stanwyck E isso é
sem dúvida o que terá dado pé para tratar Fuller como anti-intelectual ou
repreender-lhe a falta de coerência de seus personagens, numa confusão entre
criador e criaturas que revela ao mesmo tempo a incompetência geral da
crítica e a condição de autor de Fuller. Esquecendo, para chegar a tal avaliação,
que Fuller, além de ser um dos grandes cineastas não ágrafos - sem que tal
limitação impeça que sejam autores e magníficos cineastas, pois souberam
apanhá-las, autoritária ou vampiricamente, para que outros escrevessem por e
para eles as histórias que desejavam contar, e tal como queriam -, um dos
ainda menos numerosos que escreveram novelas, várias (não menos que onze) e em
geral bastante notáveis, Aspecto
este, o da imaginação, que apenas
se mencionou ao se escrever sobre o cinema de Fuller, quando é um dos
elementos essenciais de sua personalidade, do mesmo modo que sua condição
inequívoca de narrador. Ambos os traços permanecem evidenciados se
confrontamos as descrições, gráficas e cheias de inventiva dramática, que
Fuller faz de algumas cenas em inúmeras entrevistas, sobretudo ímpetos de
filmes, tanto dos realizados fazia muito tempo como os que estava planejando
fazer, e que costumam ser mais sensacionais ainda que o que podemos
contemplar nas telas. Naturalmente, esta consideração de Fuller como antes de
tudo escritor - antes de I Shot Jesse James
havia publicado quatro novelas e haviam sido adaptados para o cinema dez
argumentos ou roteiros seus - que também faz filmes e os “escreve” com a
câmera, a luz, a cor, os corpos dos atores, o ritmo e o espaço nos levaria a
um terreno extremamente interessante e intrigante, que apenas esboçarei, com
a esperança de que algum dia alguém o explore a fundo, e é o da surpreendente
relação de paralelismo ou parentesco existente entre Fuller e uma série de
escritores os mais variados, que provavelmente nem sequer havia lido. Por
vezes declarou sua paixão ou admiração por Balzac, Goethe, Dostoievski,
Tolstoi, Stendhal, Shakespeare, Proust ou Maupassant, de quem não é fácil notar
traço algum em seu cinema, porém eu o vejo mais próximo de alguns franceses
como Raymond Roussel e Léon Bloy (em particular O cinema
de Fuller não pode ser visto com calma e distanciamento, com a perspectiva de
um espectador imparcial e sereno, comodamente assentado em sua poltrona. Não
é um cinema para indiferentes, nem para quem adota ante esta arte um ar
condescendente, de infundada superioridade ou desprezo. Fuller quer sempre -
e costuma alcançá-lo com vantagens - meter-nos na pele de seus personagens, fazer-nos
compartilhar seus castigos, seus conflitos, suas dúvidas e dilemas; para isso
nos situa no centro do furacão, submetidos a um intenso fogo de morteiro, de
onde quase sentimos o calor e a fumaça das balas, os lança-chamas, as bombas,
o barro ou a neve suja sobre a qual rastejam ou se arrastam. Ainda que não
sejam “de guerra”, todos os seus filmes pertencem ao gênero bélico ou às suas
variantes (conforme o enfoque): em tal vez os que lutam rumo à vida ou à
morte são grupos rivais de gângsters ou policiais e delinqüentes, ao invés dos exércitos habituais, porém sua
organização é paralela, seu modo de pensar e de atuar muito similar: ver a
planificação e execução de cada um dos assaltos armados de House of Bamboo (1955), ou o sigiloso
recrutamento da tripulação do submarino em Hell and High Water (1954). Por isso, seja no preto e branco
abstrato e essencialista de uma rodagem em estúdio ou na cor dos exteriores
de selvas naturais, Fuller nos faz sentir a roçadura áspera do couro ou do
metal, da rocha ou da arena, do pêlo de um cavalo sem sela, o suor, o calor
ou o frio, compondo algumas imagens de uma força telúrica e sensorial e de um
volume táctil como poucas vezes o cinema foi capaz de alcançar. Que nos
entrem os dados imediatos das circunstâncias dos personagens pelos poros e os
sentidos não exclui que também funcione o pensamento, nem entre eles nem em
nós espectadores, que assistimos de perto ao drama, quiçá incomodados,
demasiado próximos, porém sem perigo: em compensação, haveremos de ter mais
lucidez que os que estão envoltos no tiroteio, tratando de sobreviver,
cegados pela fumaça e pela confusão. Foi uma habilidade especial de Fuller transmitir-nos
com ordem a impressão global do caos - exemplos supremos disto seriam Run of the Arrow, The Crimson Kimono (1959), Forty
Guns e House of Bamboo -,
incluindo recompor plano a plano a realidade dinamitada em mil pedaços: China Gate (1957), Shock Corridor (1963), a manipulada Shark! (1969), The Big Red One (1980), White
Dog (1982), ou os seus subestimados longas finais, Les Voleurs de la nuit (1983, magnífico filme que tem
surpreendentes pontos em comum com Le
diable probablement e antecipa L’argent)
e Street of No Return. Que Fuller é
brutal e violento, que os personagens se golpeiam e ferem e maltratam
incluindo quando se amam (Pickup on
South Street), que até matem aqueles sem os quais não podem viver (House of Bamboo, Forty Guns), isto é certo, uma obviedade que não é preciso sublinhar.
À condição de não se esquecer que também pode ser o mais suave, acariciador,
elegante e sutil dos cineastas, quase mizoguchiano em suas modulações e
deslizamentos, sobretudo (Traduzido por Bruno Andrade) |
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