O PROVEITOSO EXERCÍCIO DE JOÃO BÉNARD DA COSTA por Miguel Marías Existem
muitos eficazes e respeitáveis diretores, presidentes, “curadores” e até
mesmo programadores de cinemateca que pertencem primariamente à esfera da
administração, da gestão, das finanças, das relações públicas, dos serviços
sociais, da docência, da investigação acadêmica, do arquivamento, da
biblioteconomia, da museologia, da publicidade ou da política, campos dos
quais às vezes procedem e aos quais freqüentemente retornam. Não tenho, a
priori, nada contra eles, podem montar ou reconstituir uma filmoteca, tornar forte
e famoso um museu de cinema, conseguir o apoio de mecenas e patrocinadores
que permitam a sobrevivência e o desenvolvimento da instituição. Podem ser
úteis e benéficos, popularíssimos ativistas culturais, animadores sociais,
até mesmo redentores de potenciais adolescentes desencaminhados afastados
pelo cinema de outros vícios mais caros, perigosos e daninhos. Mas, que posso
fazer, gosto mais ainda dos outros, mais “piratas”, mais longevos no cargo, no
qual sem querer aspiram a eternizar-se, a “morrer com as botas postas[1]”, e
que por isso cultivam a fama de “totalitários” ou ditatoriais - como muitos
cineastas -; são menos explicitamente didáticos, mesmo quando têm facilidade
de escrita e se superam Estes
dragões da cinemateca, cujo protótipo foi Henri Langlois, não estão meramente
de passagem. Quando chegam, como sabem que sua missão é eterna, fáustica e
sisífica de uma só vez, tratarão de permanecer, porque nunca darão por
concluída sua tarefa; e não por capricho nem por perfeccionismo - o resgatador
é por natureza resignado, sabe que às vezes uma cópia má e incompleta é o que
existe, e é consciente do muito que o cinema já perdeu para sempre, por sua
própria fragilidade material, pelo descuido e a avareza de muitos -, mas sim por
terem embarcado, já sabendo, e se não o sabem descobrem logo, em uma cruzada
destinada ao fracasso, em termos estatísticos, e na qual as vitórias são insuficientes.
Quantos filmes foram recuperados do nada, da espessa névoa do tempo e da
amnésia, apenas para que ninguém se incomode em vê-los, e ainda menos
reconheçam seus valores. Destes
homens, que têm algo de aristocratas extemporâneos malogrados, um pouco de
bandidos e algo de autoritários caudilhos guerreiros, sem por isso deixar de
ter uma ampla cultura - nunca exclusivamente cinematográfica, e creio que
isto é decisivo -, com freqüência formada solitariamente, e uma visão geral
da história que só se adquire através da relação direta e reiterada com os
filmes e um agudo sentido associativo, os quais vêm permanecendo cada vez
menos, pode-se lamentar que sejam uma espécie em vias de extinção. Uma maioria
emergente vai pensar (por conta própria, sem rodeios em uma difundida idéia
alienada) justamente o contrário, que já há suficientes “amateurs”,
aficionados, amantes, intuitivos, apaixonados, curiosos, entusiastas, que se
deve burocratizar e profissionalizar tudo, além de “despersonalizá-lo”, e de
fato podem amargar e obstaculizar, quase sempre com algum grau de êxito, os
últimos anos desta luta sem fim contra múltiplos obstáculos e inimigos. Dentro
dessa tradição, na qual abundaram não só os criadores de cinematecas como
também os que, mais tarde, tiveram que redefini-las, atualizá-las, atrair
novos públicos e relançar sua atividade - que é, como dizia Godard do cinema,
“lutar em duas frentes” -, e precisamente pela forte personalidade de cada um
de seus representantes mais ilustres, houve não poucas vezes ciúmes,
rivalidades, desacordos, querelas e confrontações. Cada um era de uma maneira
distinta, tinha suas características distintas, suas virtudes mais
destacadas, seus defeitos mais criticados. Poucos reuniam, porque poucas
pessoas de qualquer profissão o fazem, todas as que podiam vir a calhar,
ainda que não sejam todas estritamente imprescindíveis, para capitanear com
iniciativa e vigor uma cinemateca. João Bénard da Costa era uma das
personalidades mais admiráveis que tive a oportunidade de conhecer, com
Langlois e Jacques Ledoux. Não somente mantinham a Cinemateca Portuguesa e a
Filmoteca Española uma fraternal amizade que deveria ser o normal (mas não é)
entre países vizinhos em tantos momentos submetidos a um destino comum ou
paralelo, mas pessoalmente sempre nos demos bem: essa afinidade que descobrem
tantos desconhecidos às portas de um cinema ou de uma cinemateca, que entram
de acordo vez ou outra e vão imaginando paixões comuns, gostos muito
particulares que acabam por não ser tão exclusivos e solitários. Como João
não se deixava intimidar pelo saber convencional, pela “doxa” admitida, pelas
censuras de “correção” política ou artística, empenhava-se em comprovar, e
convidar aos demais a fazer o mesmo, se era verdade ou não que todo o cinema
feito na Alemanha durante a época nazista era tão ruim ou nulo como se
afirmava, para ver se algum raro artesão americano ou japonês era somente
isso, ou algo a mais e mais interessante. Para completar, sabia falar, e
gostava de fazê-lo. E, ainda mais raro, estava longe de não saber escrever:
era, e seguiu sendo sempre, o que entendi ser mais útil em um crítico: o que
é capaz de nos dar pistas que nos permitam descobrir algo desconhecido e que
valha a pena. Nota: [1]
Referência ao filme de 1941 de Raoul Walsh, com Errol Flynn no papel do
General George Armstrong Custer, They
Died with Their Boots On (no Brasil, O
Intrépido General Custer) [n.d.t.]. (Traduzido
por Bruno Andrade) |
2009 – Foco |