TEMA DO TRAIDOR E DO HERÓI Notas muito livremente
inspiradas na obra de SAMUEL FULLER por Jacques
LOURCELLES « ... Couberam-lhe, como a todos os homens, maus tempos para viver. » (Borges. Inquisiciones.) 1. Proposta
fora de propósito. Não se deve ter qualquer ilusão a respeito dos efeitos
da crítica. (Chamarei aqui crítica esta parte da crítica que sonda e
descobre, não a crítica do dia a dia, crítica que tem seu lugar, crítica
utilitária, ou seja, que utiliza as descobertas do outro seja para ridicularizá-lo
seja para delas se apropriar). Confira-se o caso recente de Preminger. Anos
de esforço, de propaganda, de terrorismo oral, de ativa indolência a
influenciar os críticos que influenciam o público que influencia os
distribuidores que se influenciam entre si. Então sobrevém um filme um pouco vasto,
onde as coisas são tomadas um pouco do alto, como O Cardeal: que concerto, então, de imprecações embrutecidas e
ferozes, juntas a que assalto de alarmantes paradoxos, alarmantes para a boa
saúde mental daqueles que os proferem! Há
gênio, mas se sente demais o fabricante. Bem dirigido, mas completamente idiota. Uma invenção prodigiosa, mas não nos traz mais que lugares comuns!
E a variante intelectual: mise en scène
em seu estado puro, apesar dos atores, da música e do roteiro execráveis.
E logo, sobretudo, o coro: mas onde
está a marca de Preminger? Eu disse: um pouco vasto. Pois é relativamente
mais cômodo admitir como inteligente e digno de estima um filme de temática
séria, porém limitada, do gênero crise dos tecidos britânicos (1911-1914) ou disputas
de precedência e questões vestimentárias entre os mórmons na segunda metade
do século XIX. Foi isto que aconteceu, tomadas as devidas proporções, com Tempestade Sobre Washington, belo insucesso
de estima, filme de Americanos entre Americanos, referente a problemas
americanos examinados e resolvidos à americana. Gostou-se, porém de longe e
sem engajamento. Não, o que distancia e ofende é a amplitude, a limpidez, o
fato de não pertencer a nenhum grupo reconhecível. (Pôde também influir
contra O Cardeal algo que escutei
da boca de um douto de dezesseis anos e meio: na França de hoje, os problemas
religiosos não interessam mais ninguém.) Os mais otimistas, ainda a respeito da crítica, levam
em consideração movimentações aprofundadas pelas quais valeria perseverar. Certamente
não é impossível que nas profundezas abissais da consciência de um espectador
provinciano, de um estudante do IDHEC (Institut
des Hautes Études Cinématografiques, n.d.t.), de um crítico de um jornal
parisiense, subsista, tantas são as palavras e opiniões lançadas a favor de
tal diretor, um eco favorável que talvez se levante à ocasião do lançamento de
um filme; que diversos ecos se ergam, cheguem a fazer barulho, e o barulho
gere reconhecimento. Mas não esqueçamos, todavia, que é também a este aspecto
positivo, a esta ação “aprofundada” da crítica que se deve o tipo de absurdos
acima expostos. A crítica, antes de ter seus beneficiários, tem suas vítimas.
Espectadores infelizes, rapidamente transformados em especialistas, que
folhearam demais e observaram demais, sensíveis apenas à espuma das palavras!
Que aprenderam a decompor (o filme em seus elementos) e não sabem mais o que
fazer deste último elemento, completamente só, irredutível, isolado e portanto
inutilizável, a mise en scène. Que
aprenderam a decompor no momento em que - não por acidente - todo o cinema
moderno (1963: O Cardeal
- Lawrence da Arábia - Deu a Louca no Mundo) tende a se tornar mais sintético, mais unitário,
mais completo; a mise en scène a
não ser, se é que já foi outra coisa, mais que a síntese de seus elementos
ou, para empregar uma palavra mais bonita, sua fusão, ou uma outra ainda mais
bonita, sua comunhão (livre, aliás, para daí aceitar aparentes contradições,
mas esta é uma outra história). A respeito destas vítimas, de seu embaraço,
de sua exasperação também, testemunha esta frase, magnífica, de um distribuidor-crítico
comentando com sua clientela a mercadoria da semana: “Bom, agora que nós
falamos da mise en scène, passemos
ao filme em si”. Obviamente,
há satisfações. Durante um trimestre, às vezes um semestre - efeito do
terrorismo oral - um diretor é lançado. Não se fala de outra coisa. Deste
ponto de vista, o segundo semestre de 59 para Lang e o segundo trimestre de 61
para Losey não foram nada mal; este último caso é menos convincente, é
verdade, ou convincente de outra maneira, pois o filme em questão, The Criminal, não era bom; prova-se
assim que podemos ser ultrapassados pelos acontecimentos. Critério principal
desse lançamento: um diretor será considerado como lançado, em Paris e nos subúrbios,
quando os “especialistas” tiverem medo de serem tomados por imbecis, ou
retardados, se admitirem que não gostam dele. No entanto, neste domínio, nada
é definitivo. Reservei
por fim três frases que resumem claramente o que disse (o que não disse) a
respeito da crítica. Cada uma descreve à sua maneira com exatidão o estado atual
da crítica de cinema, o caminho percorrido, o caminho a percorrer. A primeira
é antiga. As duas outras são recentes e pertencem ao imaginário de nossa
experiência cinemaníaca, a este folclore já abundante que deveríamos explorar
com mais freqüência. Um sábio da Antigüidade reprovava um pretenso pedagogo:
“Com toda sua ciência, e suas certezas, você não os ensinou nada e até mesmo
conseguiu retirar-lhes o que possuíam, algo que eles sequer possuíam em
abundância: o bom senso.” A segunda frase é ainda mais crítica; sua função é
indicar em que direção deve seguir nosso esforço. Um espectador anônimo
entra, durante a sessão, em uma sala especializada (este não é um dado
irrelevante). Após olhar rapidamente a tela, em que se projeta um desenho do
Pernalonga, ele interpela o lanterninha: “Perdão, meu caro, o grande filme já
começou?” A se notar com interesse que o filme ao qual ele vinha assistir era
Suplício de uma Alma. A terceira
frase foi escrita, e até mesmo impressa, por nossa companheira americana
“Film Culture”. Ela diz respeito a Samuel Fuller (por que não?). Trata-se do
início de uma nota que busca extrair o sentido geral de sua obra: “Fuller é
um autêntico primitivo americano cujos filmes devem ser vistos para serem
compreendidos”. O frisson da
excepcionalidade parece ter trespassado o autor enquanto ele escrevia esta
que, deixando de lado toda a comicidade, não é a pior introdução a Fuller. Não se
deve ter qualquer ilusão, igualmente, a respeito dos meios utilizados pela
crítica. Na maior parte do tempo, a crítica é uma tradução da obra resumida a
uma carta de intenções bem coordenadas, dóceis, educadas, culturais, domesticadas.
Explica-se, modera-se o que pode surpreender. Poda-se, corta-se, embota-se
aquilo que é afiado demais, pungente demais, que carrega audácias
inadmissíveis. Alinha-se, na verdade se reduz. E com bastante freqüência uma
obra que se critica é uma obra que se classifica: pondo-a nos trilhos ou dentro
de uma gaveta, mas sobre a qual não se fala mais. E a crítica deve ainda
arrebatar a atenção. Daí este estilo que conhecemos bem: sob um manto de insolência
bem vulnerável, a prece, a súplica. Após o já conhecido, os apontamentos
astuciosamente (servilmente) dispostos, as assimilações, as referências
tranqüilizadoras, abre-se as portas ao recém chegado, ao desconhecido. Vejam,
atrás do Y que vocês tão bem conhecem e que já admitem, sim, decerto, existe
um X que muito se aproxima dele pelo estilo e pelo pensamento eu vos asseguro;
sem compromisso, dediquem-lhe um olhar. Vale a pena. É a versão para cinema
da utilidade do menor que seja. Os pequenos como rápida escala rumo aos
maiores. Na cabeça de quantas pessoas o deveras mediano Hawks não serviu de
esteio para se admitir o grande Walsh? Desta maneira a crítica é uma das
formas da mendicância. Criticar: classificar e reduzir, mendigar. Reduzir
quando se trata de uma obra tão apocalíptica e provocante quanto a de Fuller seria
um crime, e para tanto não possuo a coragem. Mendigar, não tenho a menor
vontade. Não hoje. Já se fez isto demais, e mesmo aqui. A respeito disso, mais
valem os autores que mendigam por si só, como Céline, na página 15 de D’un Château l’autre, edição da Pléiade: “Até lá, refletindo, se vocês
me comprarem um livro ou dois vocês me ajudariam...”. Mais vale realmente
falar de Fuller entre nós. 2. O nome
de Céline saltou-me à pena. Gostaria de tirar proveito. Fuller também
escrevia. Em todo caso existe seu estilo que, em toda parte, o precede. Dele,
pudemos ver mês passado uma amostra bastante eloqüente, sob a rubrica “Expériences”.
O machado, os cadáveres envoltos em papel de embalagem, a descoberta de
Jeanne Eagels morta, ali estava ele. É necessário pôr Fuller entre seus
pares. Evidentemente não há qualquer dificuldade nisto. Eu citarei aqueles
que me vêm à mente. Carlyle (Victor Basch dizia que “ele só podia pensar e
escrever a partir do momento em que se encontrasse encolerizado e se este
estado de sobre-excitação não admitisse testemunho”) ou Céline, ou Giono, o
Giono de Refus d’obéissance. Todos
com algo de sombrio e de denso, à margem, proféticos, tomados por loucos,
indispensáveis. Refinados também. “Engajados na rota maldita do refinamento
espontâneo... após uma bruta carreira de bruto entre os brutos”. (L.F.C. again num livro proibido). Esse
refinamento de tudo expor no primeiro movimento, aquele do coração, de
explodir esquecendo os habituais desvios da linguagem: a reserva, a
prudência, os subentendidos; essa faculdade tão rara de estar presente na
menor palavra e não somente no sentido geral do discurso. Todos eles homens
de perigo, enfim, a não se meter entre as mãos de qualquer um. Um privilégio,
então, que a existência de Fuller numa arte tão desordenada quanto o próprio
escândalo (o verdadeiro) não a escandalize, ou o faça muito pouco, passando despercebida
ou sendo prontamente escondida, desnaturada. Grandioso, refinado, perigoso:
aí estão os traços que importa indicar inicialmente a propósito de Fuller, e
que poderiam ser o suficiente. 3. Tradição e prudência. A maior vedete
do cinema americano, a que se encontra direta ou indiretamente na maior parte
de suas obras-primas, não é Mae West ou Garbo, nem mesmo o sublime trio
Arlene Rhonda Virginia, mas o exército americano, a infantaria, as tropas de
elite, os submarinos etc. Estes e os rostos de alguns policiais, duros e
impessoais (ex. Charles McGraw, Ray Milland, Dana Andrews), cumprindo devidamente
seu trabalho ou seu dever; alguns longos sobretudos passeando pelas ruas ou
em missão na noite úmida das grandes cidades. Pouco importa o julgamento que
se possa fazer sobre este estado de fato, o mesmo não possui qualquer valor
diante desta evidência: é isto que
interessa às pessoas. Desde suas origens, o cinema americano, militar e
policial, é um imenso elogio à ordem e à prudência, a prudência sensata dos
pioneiros e fundadores, daqueles que desejam permanecer e se instalar, e
sobreviver. No panorama cinematográfico da história americana, o exército, a
polícia dão continuidade e protegem a civilização que vimos ser construída
nos westerns. “Descrevendo-nos a sentinela vigilante que monta guarda nos
postos avançados da sociedade, diz Chesterton em sua defesa dos romances policiais, eles nos lembram que vivemos num
campo de batalha, que estamos em estado de guerra contra um mundo caótico, e
que os criminosos, filhos do caos, são traidores internos. Mostrando-nos o
policial solitário e sem medo dentro do covil de bandidos, cercado de punhais
e punhos cerrados, lembram-nos que este agente da justiça social é uma figura
original e poética, enquanto os larápios e gatunos nada são além dos frios
conservadores do atavismo dos macacos e dos lobos. Assim, o romance policial
é o próprio romance do homem”. Muito
naturalmente essa proposta, essencialmente clássica, criou para si um estilo,
uma tradição de recito da qual quase ninguém se desviou, sendo inclusive conduzida
pelos imigrantes (Lang, Preminger), na América precisamente, a um ponto até
então inaudito. Esta tradição possui tanta unidade e se exerce em tantos
níveis que podemos apreendê-la por onde quisermos. No nível dramático, por
exemplo: é necessário que o desenrolar da ação dê a conhecer sucessivamente
todos os aspectos sem privilegiar qualquer deles e que ao termo de um recito casado
fielmente com a cronologia dos fatos, não reste nenhuma zona de sombra; que,
se enigma houver, faça-se finalmente luz e verdade sobre ela. Estas coisas
são bem conhecidas, inútil insistir. Têm-se uma preferência pelo nível moral:
a intuição que sustenta todo classicismo é que o mundo pode ser descrito
através de uma sucessão de fatos claramente articulados, e ser igualmente
compreendido (ordenado) através deles. Compreender, construir (uma cidade ali
onde nada existia, depois uma escola nesta cidade etc.), é tudo uma só ação:
ordenar. O cinema se propagava repentinamente, na América, e seu objeto e sua
forma; a inteligência, a perspicácia encontravam-se ali encavilhadas a um
propósito moral. Um milagre. Ainda hoje se fala disto. Para nos
atermos a outro nível de técnica, talvez o mais evidente, voltemos nossa
atenção ao fato de que, nesta tradição, a câmera tendia à invisibilidade, ao
esquecimento completo de si mesma; e, com ela, desaparecem (queriam
desaparecer) autor, testemunha, narrador, ou ao menos suas pessoas. Não ser mais que um olho, de
forma que, tanto nos deslocamentos como na imobilidade, esqueçamos até o fato
que este olho olha: este era o único mandamento e ideal que ela desejava se impor.
Olho fechado, filme terminado, tudo está dito e o recito concluído. Sobre
este ponto, além das obras, todos os testemunhos (Walsh, Lang, Preminger) estão
de acordo. E o fazem de tal maneira que esta tradição, verificada extra-muros
na obra de um Mizoguchi, confundiu-se totalmente com a própria noção de mise en scène. Há, sem dúvida, um tipo
de fatalidade a que se reportar, uma harmonia secreta pré-estabelecida entre
uma disciplina visual de recito impessoal e o ato de encenar, visto que Maupassant
já escrevia num memorável estudo sobre Flaubert: “Ele nunca anuncia os
acontecimentos; pode-se dizer ao lê-lo que os fatos vêm falar por si só,
tanto que ele associa de importância à aparição visível dos homens e das
coisas. É esta rara qualidade de metteur
en scène...” Não sou eu quem sublinha, é Maupassant, em 1884. O cinema
deveria exaltar tal harmonia, e vivê-la. A esta
tradição, Fuller não pertence. Embora americano e tanto quanto se pode sê-lo,
ele está à margem. Ele está em outro lugar. Ele mostra o outro lado das
coisas. A derrota, a humilhação, o medo, a fadiga abjeta, e, entre os
personagens, os assassinos, os crápulas de todo tipo, os “traidores
internos”, Fuller os favorece. Não que estas coisas sejam dissimuladas no
cinema americano, mas se encontram reunidas no geral, integradas a um
conjunto mais vasto, vistas de uma ótica da vitória, onde só a vitória parece
possível, onde a atrocidade é menos viva e menos vivo o escândalo. Do outro
lado da tradição, a regra de ouro do cinema americano arriscava-se, sendo tão
comumente aplicada e defendida, a parecer inexistente. Fuller, invertendo-a,
faz com que ela seja vista: em lacunas, por contraste e de maneira tão agressiva!
Ele desempenha o papel e a utilidade, que conhecemos, da exceção. (Diante da
regra e da exceção, um cinema nacional pode viver enquanto tal. O cinema
francês - sem regra, e uma só exceção notória: Guitry - não vive; como não
vive o cinema italiano feito de algumas regras esparsas e que se ignoram
entre si, não sendo reunidas - não por muito tempo - em um mesmo tronco
comum: Freda a aventura; Matarazzo o melodrama; Rossellini a crônica íntima e
conjugal). Acredito que Fuller consegue ainda mais, e eis onde eu gostaria de
chegar. Eu poderia aguardar ainda alguns parágrafos e persuadir pouco a
pouco. Falarei sem mais delongas o que acho. Fuller é em minha opinião o
único barroco do cinema americano, e o único que devemos louvar como tal. Ele
adota, por um lado, uma proposta contrária ao classicismo ambiente de seu
país e de sua arte, uma proposta em que o equilíbrio clássico é destruído
seja pelo acréscimo de elementos estrangeiros, seja pelo destaque dado
especialmente a outros elementos que este classicismo não repudia, mas que
integra, reconcilia e encobre à sua maneira. Por outro lado, Fuller adota um
estilo que é este classicismo invertido. A decupagem, por seus excessos e sua
instabilidade, a intriga que se desenvolve em saltos, repuxos e repetições,
lembram constantemente a presença de um narrador transtornado e exclusivo.
Desta forma, a exceção não mais se opõe à regra para consolidá-la, mas a ela se
reúne, é a regra; é a regra tomada por uma vertigem, por um acesso de
loucura, é a combustão instantânea e brutal da regra, como se inflama o
reservatório de um avião que se precipita ao solo. A maturidade, a sabedoria,
a calma imperturbável da América, você as verá também, se souber ver, no
interior das convulsões e dos transes das sagas fullerianas. 4. Um jornalista. Mas a princípio, este
tal Fuller, quem é? Eu gostaria de agradar a crítica neo-escotista, de certa
forma estimável, que nos pede para deduzir as características de uma obra e
de seu tom a partir destes dados brutos como ferro que são datas, lugar de
nascimento, primeiro emprego, profissão dos pais, etc. Passemos aos empregos.
Fuller foi um jornalista. Fuller foi um combatente. Como combatente ele
pintou a guerra, o que muitos fizeram, o que muitos não fizeram, bem e mal. Nada
vejo aí que me toque ou que emocione. Quanto ao jornalismo, este é suscetível
de aplicações tão diversas, e as disposições a que ele nos remete são tão
variadas que eu me sinto tentado a apontar sua influência na maior parte dos
cineastas de quem gosto. Esse método seria falho? Como causas, como
explicação, os primeiros empregos dos autores não servem para nada, a não ser
para satisfazer a frivolidade de alguns intelectuais. São, em grande parte,
espécies de metáforas imprecisas das criações futuras destes autores. Uma
pessoa sensível, a partir dela poderia antever um ornamental capricho do
destino, divertindo-se em anunciar com grande antecedência algum tema que
desenvolverá mais tarde (ou não desenvolverá). Um pessimista, nelas buscaria
as inaptidões características deste mesmo destino e suas hesitações,
colocando-o de pronto nos moldes que melhor lhe convém, etc. Mas trata-se de
um mau método a escolher. Dentre outros, vale mais qualquer um. Voltemos ao
jornalismo. Por jornalismo, a princípio enxergo uma destreza e uma
flexibilidade pouco comuns para falar de tudo sem conhecer grande coisa, um
senso agudo do mínimo de informação necessária para parecer informado. Acusarei
Fuller disto? Estaria mais próximo de outro jornalismo, mais especializado, em
que a seriedade, propensa a abordar os “problemas”, e uma documentação bem atualizada
permitem descrever uma situação com distanciamento, sangue-frio, contrição?
Igualmente, nada que lembre Fuller. Restaria, é certo, um terceiro tipo de jornalismo,
mais desacreditado, mas talvez mais sincero se entendermos por isso que o
autor se prende mais solidamente a seu tema: o jornalismo sensacionalista,
aquele do sangue e das catástrofes. Este poderia nos ajudar a compreender um
aspecto de Fuller, seu gosto pelo excepcional e a vontade, afirmada em sua
obra, de apresentá-lo como tal e de lhe consagrar o lugar de maior destaque; escolha
que já o opõe ao classicismo americano. (Um dos acordos do western
tradicional, por exemplo, não é que a coragem e as mais altas virtudes, certamente
exaltadas, sejam sempre situadas no quadro da vida cotidiana, e medidas de
acordo com os serviços que podem prestar?). Instintivamente, Fuller se lança
ao crucial, ao que faz o maior mal, ao que traz o maior mal. Ele quer
encontrar a razão e a essência da realidade na exceção e, também na exceção,
o que é típico; visto que não tem, apesar de tudo, qualquer complacência diante
dos monstros, puras anomalias. E a exceção, é necessário ver imediatamente
que se trata de duas coisas opostas que finalmente se reencontram, uma tornando-se
a outra. A extrema intensidade de um sentimento, de um estado, torna-se seu
contrário, o próprio sentimento às avessas. O soldado de infantaria é, entre
os soldados, sugere Fuller, o mais soldado, o soldado por excelência; logo, o
soldado por exceção, um exército dentro do exército, que não está mais em
contato com os outros corpos militares, fazendo sua guerra completamente só,
e continuando-a mesmo quando se acredita completamente abandonado. Da mesma
maneira, em outros personagens, o amor levado ao limite, o excesso de amor
transforma-se bruscamente em ódio e engendra o crime. Ou é justamente o
excesso de outro sentimento (a gratidão, por exemplo) que se torna amor, justo
quando menos se espera. A evidência desse paradoxo, na obra de Fuller, é
fulminante: um ser se realiza por completo (sendo necessário dizê-lo com perfeição,
usemos de alguma intensidade) num estado, num sentimento, e tão logo o atinge,
encontra-se rejeitado, está out. Expulso,
exilado, assassinado ou completamente arruinado. Esta linha - um fio de cabelo
- que separa a perfeição do excesso, e que a prudência clássica tem por
missão essencial indicar, Fuller a ignora. Sua obra nada mais é que inversões,
metamorfoses, oscilações, incursões em terrenos proibidos. Numa
situação, num conflito, por conseguinte, Fuller dirige-se ao ser (ou ao grupo
de seres) mais diligente, mais exposto, para quem o conflito é mais insustentável.
Aproxima-se dele, e o observa atentamente; chega a apreender, em determinado
momento, a situação, o conflito através dos olhos daquele. Um exemplo indicará
sua distância do classicismo americano. Colocado ao leme de Exodus, não há dúvida que Fuller
voltaria todo o seu foco apenas para Mineo e o posicionaria no centro do
quadro; enquanto todo o esforço de Preminger está em estender, abrandar, reenquadrar, ele desejaria
delimitá-lo, isolá-lo, extirpá-lo. Procedimento e atitude profunda de um
jornalista que deseja que se pense, pensando-o ele mesmo, que cada uma das coisas
que pinta é, no momento em que as pinta, o que há de mais importante no
mundo. E que, sem esta crença, talvez não pudesse expô-la, não achando nem a
força, nem o gosto para tanto. Sobre seu
primeiro filme, Matei Jesse James, o
autor fala de forma bastante clara e nada tenho a acrescentar. A não ser que prefiro
seu comentário ao filme, sendo o filme que se percebe a partir deste
comentário levemente mais nítido que aquele ao qual assisti. No segundo, O Barão Aventureiro, um escroque
sublime tem um projeto em mente: roubar um estado, nada além disto. Infâmia
monstruosa, mas infâmia que se esvai diante de uma monstruosidade que se torna,
vista por S.F., tocante, tão altiva, tão homogênea, tão nua afinal. Eis o
perfeito herói fulleriano, o primeiro sobre o qual podemos afirmar, com
certeza, que a progressão da intriga tratará de pôr além de todas as medidas. Aí está o primeiro tipo de construção à
6. Fala-se por vezes de amor sem esperança,
seria necessário também falar de ódio sem esperança. Último dia da Guerra
da Secessão: vencido, o soldado O’Meara (quarenta anos; não muito longe dos
cem quilos) um bruto, um homem útil, volta à sua terra. E sua terra, agora, o
que é? Os penosos conselhos apaziguadores de uma mãe que, aliás, ele não mais
conhece. (Na verdade ele não reconhece mais ninguém. É sempre assim quando
partimos; voltamos e tudo está mudado.) Uma atmosfera, no mais, asquerosa, nauseante,
de reconciliação. Insuportável. É necessário partir. Que mais fazer? O
inimigo - deve ser verdade, uma vez que todos o dizem - não existe mais. Por
outro lado, não se pode odiar todo seu povo, mesmo que pense ter sido traído,
que ele se portou de forma baixa. E o soldado se vai. Vai encontrar um
inimigo mais misterioso, mais antigo, os Índios, para se tornar um deles e,
sobretudo, para se tornar um outro. Mas como se tornar um outro, como se
tornar um Índio? Aceitando a prova cruel da flecha, casando-se com uma indígena,
adotando este ou aquele costume, compartilhando outros ódios para esquecer o
seu? Cada seqüência é, assim, um esforço angustiado para responder a mesma
questão, uma iniciação, uma esperança fugidia de integração (de metamorfose
bem sucedida), contando com a presença sorrateira e contínua da falha (isso
não dará certo, isso não pode dar certo), que reaviva uma cólera, supliciada,
em lutar contra a evidência, contra si mesmo, em se fincar obstinadamente em
seu erro. Eu não conheço roteiro mais belo. Roteiro
repleto, além disso, de momentos de alheamento: uma lua-de-mel; paisagens;
uma longa troca de idéias em que se exprime o desejo de uma sociedade sólida
e organizada, e também a ausência desta sociedade. O drama, por instantes,
parece esvair-se. Um incidente externo, atroz, absurdo, o reintroduz: a
criança engolida pela areia - aqui, hostilidade da natureza que deveria calar
ao menos aquela que os homens nutrem entre si, a mais vergonhosa. A
consciência desta vergonha, um episódio do início do filme incute ao soldado num
segundo. Não posso deixar de mencionar este episódio. No seu caminho, antes
de entrar em contato com os Índios, O’Meara encontra um deles, bastante
particular, renegado como ele (os Índios também os têm), rejeitado e
solitário. Velho moralizador, quase alegre, em todo caso desprovido de um
ressentimento que o tempo e o costume sem dúvida desgastaram, ele e o sulista
acabam percorrendo juntos um trecho de seus caminhos. Numa caverna, à noite,
eles se falam. O sulista escuta o velho índio recitar os nomes das tribos da
região, evocar certas lembranças. Ao escutá-lo, observa-o como uma imagem
possível de si mesmo dali a alguns anos. Eles se falam ainda uma vez, mais
tarde, no momento de se despedir, ambos devendo se submeter à prova da
corrida da flecha (evidentemente mortal para o mais velho e no mais reivindicada
por ele para salvar o outro). O’Meara deseja, no seu adeus, manifestar seu
reconhecimento ao velho homem. Nesse instante, ainda que sob uma
circunstância casual e imprevista sem ligação direta com seu verdadeiro
destino, o soldado tem um breve pressentimento da afluência imensa de
amizade, de força e de amor da qual sua vida faz parte, mesmo (e sobretudo) não
sendo dela mais que uma parcela ínfima. Ele é completamente incapaz, bem
entendido, de transmitir seu sentimento através das palavras e não tem sequer
tempo para tanto, porque o tempo urge. O Índio (o inimigo), cem metros atrás,
aguarda com seu arco. No entanto, por milagre, uma vez que Fuller possui
gênio (vocês esperavam por isso), uma parcela disso tudo perpassa suas
palavras: “It’s a shame...”. Teriam
achado melhor, acredito, se eu não me estendesse sobre este episódio num
artigo como este, ou se me poupasse de citá-lo como uma marca (quase dizia
uma prova; não uma prova, terrível palavra; tudo que se prova, diz Wilde, é
sem interesse) do gênio de Fuller. Mostrar refinados,
patifes juntos é pouco interessante. Mostrar, lado a lado, brutos, crápulas, idiotas
o é quase tanto. Opor refinados aos brutos é mais interessante, mas não o
suficiente. Explorar o momento em que o bruto, o imbecil, um infeliz abre-se,
mesmo por um instante, mesmo como num sonho (estamos todos em um, de uma
maneira ou de outra), abre-se à consciência de uma realidade objetiva - de sua
infelicidade, de sua estupidez -, eis algo que pode ser motivo suficiente
para deslocar o equipamento necessário para rodar um filme, e para nos
deslocarmos para vê-lo. Deve-se,
enfim, realizar um trabalho histórico. A maioria dos filmes são consagrados
ao nascimento e ao desenvolvimento dos conflitos. Um número muito menor (alguns
Daves, por exemplo) deseja falar da paz, dos debates ingratos que a
estabelecem, dos tratados. Quase nenhum filme evoca aquilo que se segue à
paz, e a sina dos desclassificados, deslocados, perdidos de todos os gêneros
para quem esta paz não é um fim possível mas o começo de outra luta mais dura,
mais pessoal, igualmente implacável e que se deve levar adiante sozinho. A
obra de Fuller, que se dedica a isto, completa o cinema americano e desta
forma também é indispensável. A amargura da derrota, o sentimento de ser
estrangeiro em sua própria terra, o exílio voluntário: tantas situações que o
cinema americano, embora tão militar, sempre evitou. Eu não me lembro, em
todo caso, de tê-las visto constituir, como aqui, o tema real de um filme. E se trata exatamente de História, nem a
grande, nem a pequena - o tempo e os livros julgarão seu tamanho -, o que faz
Fuller quando designa a marca indelével deixada pelos acontecimentos no
coração de certos homens, de certos indivíduos que neles estiveram particularmente
engajados (também se pode dizer: comprometidos). Metamorfose,
readaptação malsucedidas para O’Meara (aonde ele vai nos últimos planos?):
nascimento, parto bem-sucedidos de um novo país, a América, parto que não se
deu sem dor. De forma que este filme de ódio é também um filme de
reconhecimento; de forma que um filme tão parcial, dedicado a um caso tão
minoritário, encontra enfim seu equilíbrio, embora além de si mesmo (a obra
clássica recepciona-o e abriga-o em seu interior). O procedimento tão usual de
tomar a parte como o todo, da parte evocando o todo, também se torna estranho
e quase-sedicioso quando a parte é tão custosa, ou tão insuportável que nos
vemos obrigados a esquecê-la. 7. Cruzar a linha. Não só cruzá-la, mas
ser compelido a tanto. No coração do herói fulleriano, como um veneno, o
desejo de ser outro. Desejo que não é espontâneo ou construtivo, mas imposto
de fora por uma série de circunstâncias intoleráveis, fazendo do “eu”
anterior uma tortura, uma prisão. Desejo que não é contrariado, como na típica
aventura americana, pelas dificuldades do percurso, os obstáculos a superar e
de alguma forma exaltado por estes, mas sim um desejo contrariado desde o
nascimento, na fonte, desejo que é a própria contrariedade: vertigem,
loucura, promessa de uma impossível pulverização de identidade. Casos
múltiplos, múltiplas atrocidades. Às vezes o destino está ausente, ou mesmo
já se manifestou, e o papel já se encontra dado (O’Meara recusa este papel de
vencido, de reconciliado). Às vezes o destino se apronta, prepara um papel
que sentimos se fundir sobre nós, e pressentimos que ele não errará seu alvo
(Basehart, E o
traidor, o que é, senão o herói às avessas, amando com mais força, odiando
com mais força, combatendo mais desesperadamente; amando, odiando e
combatendo na desordem, vivenciando estes estados em sua descontinuidade e
fragmentação, enquanto o herói, que igualmente passa por eles, recoloca-os em
ordem (sua missão, sua vocação) e os
apazigua? Heroísmo às avessas, o do traidor, e por nada: compensando desordem
e gratuidade com a intensidade do instante, tão forte que enlouquece. Ele não
pode triunfar. Poderia sequer desejar este sucesso? Ele se sacrifica, como o
herói, e a causa, a pessoa por quem se sacrifica o abandona - Bob Ford
abandonado por Cynthy. Por
prudência, por maturidade, o herói atrasa o combate e só o procura quando pronto,
preparado ao extremo. O “herói” fulleriano se atira a ele como à sua libertação. A impaciência corre
em suas veias. Ele poderia gritar (como o gladiador do belo fragmento de
Lucilius): “Eu o odeio. Adentro este combate com cólera. Nada nos é mais demorado que aguardar que o adversário ponha o gládio
em punho”. Assim a inversão de situações, de motivos, por vezes de
sentimentos, dá unidade à obra de Fuller. É preciso acrescentar que esta obra
é a parte maldita do cinema
americano? E os
soldados de Fuller, no mais alto de sua coragem, “traem” da mesma forma; traem a natureza e a sua
própria humanidade, abandonados à animalidade e à selvageria. Fazem-no, igualmente
forçados como os outros traidores individuais, sob as mesmas pressões e império
das circunstâncias, com a mesma mescla irracional de sentimentos: desgosto,
fúria, volúpia maléfica de quem não mais se reconhece. Quando 8. Péssimas
companhias. Eu me recordo de uma projeção de Renegando o Meu Sangue; um debate a seguiu, particularmente débil
naquela noite. Haviam sucessivamente tachado o filme como de esquerda,
fascista, sutilmente desagradável, anti-indígena, pró-indígena, primário,
muito confuso, e por fim, como se esta marca pudesse resumir todas as outras,
tacharam-no de americano. Eu havia levado um amigo. Impressionado com o rumo
que tomava a discussão (não se tratava de um cinéfilo) ele se inclinou em
minha direção: “Quem são estas pessoas? Você as conhece? Elas são curiosas.
Como não conseguem ver que o tema do filme não está em tudo isto que
disseram, mas nestes corpos (ele
insistia nesta palavra) magníficos de Índios que foram mostrados, neste
povo umbroso que não possui mais que algumas décadas para viver. Como se a
raça, num último sobressalto de energia, e prevendo seu fim, quisesse
produzir sobre a terra seus mais belos espécimes. Os Americanos, no filme,
têm seus problemas, mas isto é secundário, pois eles viverão. O Índio, por
outro lado, vai se extinguir. Não assisti a muitos filmes, mas gosto deste
aqui”. Embora de modo algum autorizada e um pouco
literária, esta opinião corrige, acredito, o erro paradoxal da crítica de
cinema, que geralmente põe em marcha questões de ordem ideológica e relega à
sombra todo o aspecto físico daquilo que acabou de ver. Erro, porque no
cinema o físico se põe antes de tudo; erro mais uma vez, pois, em diversos
filmes, um interesse dessa ordem nos faz permanecer na sala de exibição. (Assistimos
recentemente a um filme italiano também com Steiger, em que o interesse
ideológico é quase nulo, mas que, devido às reuniões que ali vemos de homens da
mesma idade, da mesma classe social e de costumes parecidos, devido a um
copioso catálogo de rostos, adquire uma homogeneidade e uma estranheza
bastante cativantes). Uma importante diferenciação física existe entre os
personagens fullerianos, ao menos no que diz respeito às suas encarnações
mais marcantes. É insuficiente, e mesmo enganoso - e o que isto pode nos
trazer? - dizer que os mais corpulentos dentre eles têm a simpatia do autor e
os mais magros sua antipatia. Tanto estes como aqueles são igualmente
perigosos e inspiram grande desconfiança. Mas os mais massivos (tipo
Steiger), no processo tumultuoso de metamorfose pelo qual a intriga habitualmente
os força a passar, estes não têm qualquer chance; cada quilo, cada gota de
suor os conserva e os retém demais em si mesmos. Qualquer maquiagem lhes é
proibida: os pesados crápulas, na mais completa acepção do termo, de Underworld não enganam ninguém. Pela
obesidade, pela feiúra, pelos gestos desordenados, eles estão marcados. Diferentemente, a linhagem
dos Stack, Pittman, Robertson está pronta para tudo, é capaz de tudo, feita
que é para misturar-se, para infiltrar-se. Sua pele, não há dúvida, é fria
como a dos lagartos, dos quais eles também herdam o mimetismo. E enquanto os mais
pesados lançam-se como as massas e se precipitam impacientemente ao fogo, estes
aguardam, e a inquietação da espera devora-os por dentro, uma lepra
invisível. São igualmente eles que estão suscetíveis a, por acaso, atingir um
ponto de beleza que Genet, em “Pompes Funèbres” qualifica como proveitoso. Os primeiros são tratores;
os outros pertencem ao gênero das serpentes que criamos 9. O
verdadeiro tema está em outro lugar. Quanto a isto, minha opinião já nos
deixou bem avisados. Bastante louco aquele que pretende saber onde está o
verdadeiro tema de um Fuller, sempre além, sempre em outro lugar! Nova
afronta ao classicismo. Acontece que sempre o nega, neste sentido em que os
personagens fazem aquilo para o qual não foram feitos, quer sejam descritos a
um nível biográfico e individual, ou a um nível mais geral, simplesmente humano
(o homem em guerra). E qualquer habilidade que eles cheguem a desenvolver, não
se esquecerá jamais que se trata de uma habilidade tomada de empréstimo, uma
roupagem, a túnica de Nessus. Daí o estado de confusão que estes filmes podem
provocar. Fuller é de fato o cineasta da exceção: Dragões da Violência deve ser exaltado por sua
ininteligibilidade, Proibido por
sua confusão. Dragões da Violência, ou o scope ensandecido. Aos olhos do clássico, o mundo é
interessante, até mesmo apaixonante, talvez inesgotável. Em todo caso, método
e comedimento devem ser suficientes, segundo ele, senão a exauri-lo, ao menos
a percorrer convenientemente o campo que se decidiu delimitar. Mas Fuller não
delimita absolutamente nada. E aqui, tudo abarca, a tal ponto que seu filme
parece ter sido realizado à revelia
de tudo: à revelia da câmera (pesada demais, tal qual uma carga na vida de um
homem, nunca móvel o suficiente), à revelia da decupagem (do que se trata isto?),
à revelia dos atores (a insuportável restrição à qual um ator deve se
submeter para interpretar o mesmo personagem do início ao fim do filme!). Por
todos os poros da tela, o mundo irrompe como o vinho de um barril crivado de
balas. Mesmo o instante não se pode gozar. O olho, a câmera gostaria de estar
em todos os lugares de uma só vez, e ali se colocar ao mesmo tempo em plano
fechado e num muito geral. No cinema, o clássico encontrou, afirmou a ubiqüidade
no sucessivo. Fuller, sobretudo neste filme, a busca na simultaneidade. (Eu
lamento estas palavras abstratas, mas quem não enxerga aí mais que
abstrações, nada vê). A ubiqüidade, eu poderia dizer que ele a corteja, a suplica,
a violenta, enfim, que ela o enlouquece. Para ele, o mundo não é
interessante, é interessante demais,
para além das normas humanas da atenção. A um mundo inesgotável e fatigante,
ele tenta opor sua energia, ela mesma inesgotável. Dado que estamos animados,
falemos com clareza. O que lastimamos no cinema atual nos incita a
parafrasear uma frase célebre dizendo que a energia na arte, é a própria
arte. Tripla necessidade: 1) de um tema são e exaltante, exaltar a saúde 2)
um tema são, mas doloroso, torná-lo suportável 3) um tema doente, purificar
como a chama que esteriliza o bisturi. No mais, pouco importa o tema: dá-se a
ele, de início, a intensidade e a seriedade esperadas, e ao final, uma viril
sensação de “foda-se”, inesperada,
mas inseparável de qualquer lucidez. Energia clássica, irrigando regularmente o tema,
contida em si, invisível, ordenadora. Energia excessiva, quinze temas num só,
devastadora, de Fuller; e não se diz excessiva para valorizar essa energia,
mas para caracterizá-la. Energia de Proibido,
uma proliferação de notações jamais desenvolvidas, rapidamente abandonadas
por alguma outra, um filme que não é mais que estas pequenas notações. A ascendência
física do chefe sobre o bando, o ressentimento da minoria guardado para mais
tarde, a incrível juventude dos membros deste bando: tantos traços próprios do
fanatismo que o filme prodigaliza e acrescenta. Sem síntese. Faço isto mais
tarde, murmura Fuller, à noite e à meia-luz, etc. Ou melhor, façam-na vocês
mesmos. Trata-se do ponto final do barroquismo fulleriano esta maneira de
abandonar seu papel de narrador, adentrar a sala e dar um leve tapa no ombro
do espectador; e, na mesma ocasião, através de um letreiro, de um final
aberto, confiar-lhe uma criança para criar. Quanto a mim, fiz o que pude.
Virem-se. 10. E agora? Eu falei de uma regra, em
seguida de uma combustão da regra. Falei de uma conivência providencial entre
um propósito e um estilo de exceção, propiciada por um grande dispêndio de
energia. Tudo isto não é admissível, entende-se bem, e não convida à reflexão
para além do contexto do cinema de ação americano. Eu adoraria falar uma
décima e última vez através de algumas referências. Apresentei, a princípio,
quem me convinha pelo aspecto geral, pela atitude. Gostaria agora de me
utilizar de algumas citações mais minuciosas, mais literais, não menos
potenciais. Gostaria também que aludissem ao destino provável de uma obra
que, em muitos aspectos, têm a aparência de uma obra prisioneira. Como
evoluirá? Optará por ilustrar casos mais e mais patológicos, espelhos da
desordem e da selvageria de uma civilização? Poderá extrair sangue novo, na
história, real ou imaginária, recente ou antiga, de outras nações, de outros
povos, ou mesmo de outras minorias? Não se pode saber. Por fim, parecem-me evocar a
obra de Fuller 1) as quinze últimas linhas da nota sobre o 23 de agosto de
1944 de Borges, que estão se tornando tão célebres quanto “Le Corbeau et le
Renard” 2) o projeto anunciado pelo próprio S.F. de contar a história da
Legião Estrangeira: um dos melhores filmes fullerianos possíveis, um dos
melhores filmes possíveis 3) a adaptação, que se trama, parece, de “L’Homme à
Cheval”. Por que não incluir Fuller no plano? (“Jantamos no acampamento com os homens, como se nada tivesse
acontecido. Mas os homens estavam tristes de morrer. Se soubessem, desejariam
que Jaime os tivesse levado consigo. Mas eles teriam suportado a morte melhor
que o exílio, pois o que pode fazer um homem simples longe de sua pátria? Mesmo
um homem tentado pelas alturas sempre pranteia por sua pátria. Jaime
pranteava por sua pátria, quanto a mim, por ela pranteio. “Jaime
partia a pé. Pegara uma parca bagagem, nenhuma arma além de uma faca. Eu o
acompanhei fora do acampamento. Ele me permitiu andar uma hora perto de si. “Meu coração
estava pesado, e eu perguntei subitamente por que Jaime não me deixava
acompanhá-lo. Quanta dureza! Como ele sempre havia sido duro comigo! Mas eu o
havia amado mal, servido mal. E a amizade deve ser consumida como o amor. “Por outro
lado ele renunciava a si, far-lhe-ia bem renunciar-me da mesma forma. Não se
tratava mais dele, nem de mim, nem de nós. Tratava-se de outra coisa. “Eu chorava.
Ele chorava também. Aquilo me fazia um bem tremendo”). 4) Um filme de Fuller que se baseasse em alguns
fatos tirados da biografia, infame e fulgurante, de Maurice Sachs teria
chance de ser um filme que não esqueceríamos tão cedo. Talvez ele não fosse apresentável. Jacques LOURCELLES. (Présence du Cinéma nº 20, março-abril 1964, pp. 34-44. Traduzido
por José Roberto Rocha) |
2009 – Foco |