ANJO DO MAL por Jacques Lourcelles (Pickup on South Street). 1953. Fox (80 minutos). Produção: Jules Schermer.
Roteiro: Samuel Fuller, baseado em novela de Dwight Taylor. Fotografia: Joe
MacDonald (P/B). Música: Leigh Harline. Cenografia: Lyle R. Wheeler, George
Patrick (a.d.), Al Orenbach (s.d.). Montagem: Nick DeMaggio.
Elenco: Richard Widmark (Skip McCoy), Jean Peters (Candy), Thelma Ritter (Moe
Williams), Murvyn Vye (capitão Dan Tiger), Richard Kiley (Joey), Willis B.
Bouchey (Zara), Milburn Stone (detetive Winoki), Henry Slate (detetive
MacGregor), George E. Stone (Willie), George Eldredge (Fenton), Stuart
Randall (comissário), Jerry O’Sullivan (agente Enyart do F.B.I.), Harry
Carter (detetive Dietrich), Frank Kumagai (Lum), Victor Perry (Godkin/Lightning
Louie), George Berkeley (cliente), Emmett Lynn (o homem do sanduíche),
Maurice Samuels (mascate), Parley Baer (comunista), Jay Loft-Lyn
(bibliotecária), Virginia Carroll (enfermeira), Roger Moore (sr. Victor). Admirável
lição de cinema na qual cada plano é marcado pela sensibilidade
vibrante de Fuller, Anjo do Mal é ao mesmo tempo o mais impessoal e o
mais pessoal dos filmes. Ele se inscreve na veia documentária do film noir,
ou seja: é um filme que utiliza diversas externas e descreve uma investigação
que poderia dar um excelente artigo jornalístico. Quando era jornalista,
Fuller com freqüência andou pelos meios marginais aqui representados. Os
méritos de Anjo são aqueles de um bom filme de ação, sacudidos pelo
frêmito elétrico imposto por Fuller a todas as suas histórias: caracterização
aguda dos protagonistas secundários e mesmo de silhuetas (cf. o homem se
empanturrando de arroz que vende informações para Jean Peters e cata com
pauzinhos as notas que ela põe sobre a mesa); tempo vivo e por vezes ofegante;
sábia utilização da profundidade de campo e de longos movimentos de câmera,
com a finalidade de dar à ação sua dose justa de pimenta e realismo. (Aliás,
o barroquismo fulleriano privilegia os planos gerais ou ou os closes, em detrimento dos planos médios.) Não esqueçamos também o humor, um
certo humor sardônico e desabusado que não é exclusividade de Fuller (cf. os
filmes de Don Siegel) e que tem um duplo efeito contraditório, muito
freqüente no cinema hollywoodiano do pós-guerra: esse humor distancia o
espectador de um primeiro grau que já não funcionava à época, mas aproxima
esse espectador à ação com maior eficácia ao solicitar sua cumplicidade.
Fuller deixa de lado esse humor quando lhe parece adequado, o que aqui quer
dizer no meio da história. Podemos julgar seu talento, virtuosidade e
controle sobre a matéria do filme pelo fato de que a cena mais engraçada e a
seqüência mais trágica da intriga tenham por protagonista a mesma personagem,
a velha Moe (interpretada pela perfeita Thelma Ritter, cujas composições
foram inesquecíveis em Quem é o Infiel?, O Quarto Mandamento de
Mitchell Leisen, 1951, Janela Indiscreta, etc). Na primeira destas seqüências,
ela vende Widmark à polícia, segundo suas tarifas habituais. Na segunda
seqüência, ela se deixa assassinar, velha mulher fatigada, corajosa e íntegra
à sua maneira, clamando pela morte como uma libertação. Passemos ao aspecto
mais estritamente fulleriano do filme. Toda a ação é vista segundo a
perspectiva de dois excluídos da sociedade, dois personagens que nada valem
segundo os valores burgueses da sociedade, e portanto traidores um e outro
destes mesmos valores. A semelhança profunda que existe entre Jean Peters, a
aventureira, e Widmark o batedor de carteiras (passado suspeito, dinamismo e
vitalidade poderosos, situação precária de sobrevivência na selva das
cidades) torna crível a paixão fulminante que eles passam a sentir um pelo
outro entre uma porrada e outra (eles não vão parar de se atrair ao longo do
filme). O ponto de vista de Fuller é o de mostrar uma certa solidariedade,
uma certa integridade entre estes personagens marginais, que assumem mais ou
menos bem suas condições e são adeptos semi-conscientes de uma moral que eles
poderiam facilmente voltar contra os pilares sociais. Personagens deslocados,
desorientados, constantemente em desequilíbrio entre o universo dos bons e
dos maus sem pertencer propriamente a nem um nem outro, eles permitem ao
autor exprimir, no seio de seu pessimismo explosivo, uma visão moral e não
convencional do mundo. O anti-comunismo tratado no filme serve de critério de
julgamento acerca da relativa putrefação dos personagens. Aqueles aos quais
Fuller se afeiçoa, como o batedor de carteiras interpretado por Widmark, se
põem no limite do mal absoluto, mas jamais ultrapassam esta tênue fronteira.
Quando são tentados a fazê-lo, seu anjo bom os impede (cena onde Jean Peters derruba
Widmark). Talvez por serem estes personagens os mais expostos, são
também - dramática e moralmente - os mais tocantes. Nota:
segundo os desejos dos diretores da Fox francesa, os agentes comunistas foram
transformados, na versão francesa do filme, em traficantes de drogas. Daí o
título Le port de la drogue (O Porto da Droga). Refilmagem: Quando os Espiões se Encontram (The
Cape Town Affair), 1967,
de Robert D. Webb. Em uma seqüência de emissão televisiva « Cinéma Cinémas »
(de 1-12-1982 na Antenne 2), Fuller comenta na moviola os primeiros planos de
seu filme e indica, em especial, que a estação do metrô e a cabine são,
contra toda expectativa, cenários construídos no estúdio. (Dictionnaire du cinéma: Les
Films, Paris: Laffont, 1992, pp. 1171-1173) |
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