SAMUEL FULLER, O GÊNIO DO OLHO por Jairo Ferreira Exibido na
semana de inauguração da Sala Cinemateca, Ladrões
do Amanhecer, de Samuel Fuller, é puro cinema emoção, sem
cair nos estereótipos do thriller ou do
gênero melô. Trama por
trama, drama por drama, o que importa O cinema
de invenção que não soa caricato é o de Samuel Fuller. Um Fuller europeu na
casca, mas norte-americano no pessimismo, aqui numa autocrítica, quase uma
glosa, devolvendo aos cinéfilos da Nouvelle
Vague que o valorizou um exemplo de avançar criativamente sem babaquices.
Fernando
[?], por exemplo, levou o filme a sério, embora tenha saído achando que “o
homem é realmente demais, não adianta a molecada de hoje querer imitá-lo que
nunca chegarão aos pés dele”. De fato, entra década e sai década, e Fuller é
sempre admirado, e nunca igualado. Não dá pé
imitá-lo, seu olho de gênio é inimitável, intransferível, ou seja, é o tal
olho-na-cabeça-do-poeta do qual fala Welles, aliás, ao lado de mais, temos
uma trindade máxima do olho ágil. É preciso tentar perscrutar esses olhares
que nos brindam tão raramente na própria história do cinema. Godard
perde muito nessas comparações do olhar de raios X. Imitou e cansou de tentar
ser ou ter um olhar superior e não conseguiu. Vejamos, p. ex., como Fuller
ousa fazer 3 ou 4 movimentos de zoom de
invenção, quando os puristas pensam que essa lente não dá samba. Exemplo 1º)
o violoncelista caminha na avenida, ao lado do Beaubourg, em Paris, e a
câmera o enquadra em travelling no meio
da multidão. Corta-se para um plano geral em contra-plongê e a zoom faz um movimento out, recuo rápido, enquadrando o
personagem já nas escadarias; 2º) quando o personagem interpretado pelo
Chabrol, sim, Monsieur Le Tartuffe, Claude Chabrol, cai do prédio, ali pelo
9º andar, a câmara não mostra a queda - faz uma zoom-in em umas nove escalas, “tremedinha”,
simetricamente, até primeiro plano do corpo; 3º) o efeito ficou tão criativo,
original, que é repetido em branco e preto. Aliás, outro dia conversando com
Hermano Penna (Fronteiras das
Almas) ele me dizia que um dos melhores filmes que já viu na vida foi todo
feito com zoom, me
parece que era um filme polonês, “por sinal, muito mais niilista do que Cinzas e Diamantes”. Voltando a
Fuller. A trama é irrelevante, embora sem clichês - Fuller é mestre em saber
subvertê-los, pois para ele “cinema é emoção”; outra definição (esta é a que
está em Pierrot le fou: “o
cinema é um campo de batalha: a guerra, o amor, a morte”) - não é exatamente
essa a ordem, mas o sentido vale. O importante, não só neste filme francês, é
essa ourivesaria da emoção. Uma emoção desdramatizada, antimelaço, o
contrário do gênero melô. Foi nessa desdramatização que a Nouvelle Vague o elegeu
mentor, um dos. Consiste no que? Vamos tentar ver: primeiro em anti-heróis,
embora Fuller tenha sido “herói”, sim, Herói da Segunda Guerra Mundial, o que
lhe valeu até mesmo “inveja” numa Hollywood convencional em que os diretores
se limitaram a fazer documentários sobre. Jornalista, Fuller viveu a
trincheira. Bem, é acusado ainda hoje de fascismo - mas trata-se antes de uma
lucidez de direita que a esquerda só teve teoricamente. Cinéfilos eventuais
de um PT embrionário não podem ver nisso nenhuma provocação, ou Ezra Pound
estaria em pior situação. O fato é que a arte não tem ideologia - dá o néctar
às ideologias. Estas pintam e bordam em cima, enquanto o talento
revolucionário fica sempre acima. Taí esse divertissement de
invenção do Fuller que é tão talentoso que transcende o prazer de ver um
filme. Ficamos tão putos que teremos que ter uma cópia em vídeo para rever
como exemplo-do-que-é-saber-fazer-cinema. Tanto talento num filme só contra
tanta mediocridade assolando. Fuller foi/é paradigma de independência. Mestre
do olho, sempre pega um fotógrafo-iluminador que traduza o seu olhar
inquieto, explorando genialmente os recursos de cenário na relação com a
movimentação de câmera e atores. Poucos atores, sempre. E sempre um excesso
de emoções desdramatizadas - seu segredo, ou um dos. Mas como é possível
emocionar - sem cair nos estereótipos do thriller, um de
seus gêneros-chave - apenas com alguns tostões de produção? A resposta está
neste Ladrões do
Amanhecer, como em praticamente em todos os filmes que fez desde 1949. Uma
excepcional concatenação visual numa mise
en scène diabólica, intraduzível em palavras, pois essencialmente para
acompanhar, no caso, ler o som e ouvir a imagem, mas numa articulação de
cortes secos, por analogia ou não. Botemos
alguns defeitos. Os 20 minutos iniciais estão algo desengrenados. Fica-se num
virtuosismo de seqüência para seqüência, problema de roteiro, dele com um
parceiro - não conhecemos o romance que deu origem ao filme, por sinal que
nem interessa. Noël Simsolo já escreveu sobre essas deficiências, mas
reconhece que é “um filme fulleriano como nunca”. Bateu. É botar no
vídeo - aliás, o filme será lançado comercialmente, breve - e babar com um
plano atrás de outro. Começa com um coquetel de imagens de ação, dando ênfase
à batuta do mestre regente - ao final, o bastão é novamente enfocado em
primeiro plano, fixo. Admirável ou estonteante toda a seqüência final da fuga
do casal que acaba encarnando uma versão atípica de Bonnie e Clyde.
Fotografia-iluminação maravilhosas. Mas a mise
en scène de Fuller se estende à montagem ultraconcisa, nos deixando sem fôlego
entre um corte magistral e outro ainda mais genial. Vá ser magistral assim em
outros [?], Mister Fuller. Suas cenas
& sacações não saem da cabeça dos cinéfilos & provavelmente farão a
cabeça dos cinepoetas desdramatizados dos anos 90. Fico pensando naquela
seqüência de diálogos mínimos e contundentes em que um personagem leva à
delegacia um gravador de música que - não por acaso - tinha registrado a voz
da personagem feminina, Bonnie, autoacusando-se pela morte do molièriano,
sempre de olhos saltando nas órbitas (Chabrol, com óculos fundo-de-garrafa,
lembrando o nosso querido Carlão Reichenbach). Aí o vizinho (por sinal há
algo de Janela Indiscreta, de
Hitchcock, ironicamente, com verve) diz ao delegado: “Agora o senhor que
trate de arrumar uma imagem para esta voz”. Seria como se Fuller estivesse
parodiando o cinema mudo onde se tratava de achar um grito, por sinal o
hitchcockiano para uma imagem. Há muito mais a sacar nesse filme-síntese
sobre cinema, mas... ... sempre
é bom lembrar - se há niilismo na violência, há também prazer. Nada de
Nietszche - fora com os intelectualismos apolíneos ou dionisíacos. Fuller
está além: está cinefilosofando uma poética de outra ordem.
Cinematograficamente genial & imprevisível, a não ser que você tenha os
olhos de...
(Cine Imaginário nº 41, abril 1989) |
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