TORMENTA SOB OS MARES

por Inácio Araujo

 

(Hell and High Water). 1954. Fox (103 minutos). Produção: Raymond A. Klune. Roteiro: Jesse L. Lasky Jr. e Samuel Fuller, baseado em argumento de David Hempstead. Fotografia: Joe MacDonald (CinemaScope, Technicolor). Música: Alfred Newman. Cenografia: Lyle R. Wheeler, Leland Fuller (a.d.), Walter M. Scott, Stuart Reiss (s.d.). Montagem: James B. Clark. Elenco: Richard Widmark (capitão Adam Jones), Bella Darvi (Denise Montel), Victor Francen (professor Montel), Cameron Mitchell (‘Ski’ Brodski), Gene Evans (‘Chief’ Holter), David Wayne (‘Tugboat’ Walker), Stephen Bekassy (Neuman), Richard Loo (Hakada Fujimori), Peter Scott (Happy Mosk), Henry ‘Bomber’ Kulkovich (‘Gunner’ McCrossin), Robert Adler (Welles), Don Orlando (Carpino), Rollin Moriyama (Joto), John Gifford (Torpedo), William Yip (Ho-Sin), Tommy Walker (membro da tripulação), Leslie Bradley (sr. Aylesworth), John Wengraf (coronel Schuman), Harry Denny (McAuliffe), Edo Mita (motorista de táxi), Ramsay Williams (tenente), Robert Williams (repórter), Harlan Warde (fotógrafo), Neyle Morrow.

 

Samuel Fuller, um criador de anti-heróis

 

Existe um momento, em Tormenta Sob os Mares (amanhã, na Record), em que Cameron Mitchell exibe, em primeiro plano, o tórax para Bella Darvi. E é de se ver o encanto que ele experimenta ao mostrar aquela ridícula tatuagem à jovem cientista.

 

Bella Darvi não fica atrás. Em meio ao grupo de marinheiros pouco afeitos à ciência, ela exibe seu vasto conhecimento, falando em menos de cinco minutos idiomas tão díspares quanto francês, japonês, italiano, inglês, alemão. E a bela Bella seduz os marinheiros de maneira quase descarada, fazendo com que eles lutem por ela.

 

Richard Widmark por sua vez é um canalha. Convocado a combater as forças do mal (os comunistas que montam secretamente uma base atômica), o que lhe interessa mesmo são os dólares que vai receber para capitanear o submarino.

 

Estamos longe do que há de melhor em Samuel Fuller: de Matei Jesse James, por exemplo, onde segue a trajetória do patético Bob Ford, que mata Jesse James (seu melhor amigo) pelas costas para, com o dinheiro do prêmio, poder se casar. Ou do Barão do Arizona, que se mete na louca aventura de grilar todo um território. Estamos a quilômetros de A Lei dos Marginais, onde Cliff Robertson se torna gangster para poder encontrar (e matar) o gangster que assassinou seu pai.

 

O cinema de Fuller, americano nascido em 1912, ex-repórter, ex-roteirista, atinge seus pontos altos nestas tramas intrincadas mobilizando pequenos personagens. Nunca heróis, sempre anti-heróis. Nesse sentido, é um cinema bem representativo da geração de diretores americanos surgidos depois da 2ª Guerra Mundial. Tomemos alguns dos mais significativos como exemplo: Nicholas Ray e seus rebeldes sem causa, permanentemente solitários; Elia Kazan, constatando o fim do “sonho americano”. Fuller, por sua vez, traz para a tela o figurante, o anônimo excluído das grandes epopéias e faz deles seus protagonistas: pequenos bandidos, prostitutas, soldados (como no admirável Agonia e Glória, exibido recentemente em São Paulo).

 

Daí a sensação de relativa estranheza que pode causar Tormenta Sob os Mares. Ao contrário da maior parte de seus filmes, aqui ele teve de se arranjar com um roteiro bem comportado de Jesse L. Lasky Jr. Ainda assim, podemos perceber ao longo desse drama cenas que interessam a Fuller. Assim, todo o início, com Widmark chegando ao esconderijo onde se encontra o professor Montel e deixando claro o seu egoísmo. Ou, já no submarino, na cena em que agarra Bella Darvi com violência pelo braço ou no momento em que, sem hesitar, decepa o polegar do professor.

 

Como as demais seqüências mencionadas, importa a Fuller que em nenhum momento se idealize a natureza humana: um cientista é capaz de ser tão brutalmente exibicionista quanto um marinheiro; da mesma forma, nenhum saber nos livra de uma parcela de ignorância, assim como no ignorante existe algum conhecimento. O mundo descrito por Fuller é o de seres incapazes de sair de si mesmos: comunistas ou capitalistas, eles têm de se matar entre si porque não são nada exceto seres igualmente presos a um sistema que lhes confere identidade. É o que nos mostra a extraordinária seqüência na primeira ilha abordada pelo submarino, transformada em poucos segundos num inferno. É o que, numa versão aprimorada, nos mostraria Agonia e Glória, quando os soldados americanos abordam o exército francês na Argélia e só após a carnificina consumada os soldados percebem que afinal não são inimigos.

 

Assim, ainda que Tormenta Sob os Mares não seja um filme onde o diretor leva às ultimas conseqüências suas idéias, acaba sendo muito mais do que um trabalho alimentar desse que é um dos mais modernos cineastas ainda em atividade. Filme da guerra fria, que não dissimula o anticomunismo do autor (os comunistas não são gente direita, disse certa vez), deixa no entanto claras algumas das idéias pouco convencionais de Fuller: o único heroísmo que existe na guerra é sobreviver. Sabendo que Fuller um dia comparou o cinema à guerra e que em seus filmes a guerra é uma metáfora da vida, resta concluir que nesse cinema não há heróis, há sobreviventes. Quem notar a atenção que Fuller atribui aos caracteres japoneses que freqüentemente disputam com os atores o centro da cena, se dará conta também de que o essencial nos sinais que marcam seus filmes é serem inabordáveis. Conquista-se um país como se conquista o mundo. Nem por isso ele se torna decifrável.

 

(Folha de São Paulo, 29 de junho de 1983)


 

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