MORTE DE FULLER É COMO PERDER O PAI por Inácio Araujo Há o
cineasta que se admira e há o cineasta que se ama. Para os fãs de cinema,
Samuel Fuller certamente estava nessa segunda categoria, e sua morte, aos 86
anos, na última sexta-feira, soa como uma catástrofe. É um pouco
como perder o pai ou a mãe. Mesmo que tenham 120 anos, nada nos consola da
perda. O que
colocou Fuller nessa posição tão única? Em parte, o fato de nunca ter tido
seu talento plenamente reconhecido, de ser uma espécie de pária, de trazer no
sangue, nas idéias e imagens esse lado popular, plebeu mesmo, do cinema. Defender
Fuller, bater-se por seus filmes, torná-los inteligíveis era (ainda é) uma
causa da cinefilia universal, porque os fãs de cinema sabiam que amar Fuller
e compreender o cinema é quase a mesma coisa. Embora
fosse escritor, o cinema de Fuller não devia nada à literatura. Ao contrário,
devia tudo ao jornalismo - também um gênero popular, não raro grosseiro,
porém imediato. Assim também são os filmes de Fuller. Não estão interessados
na arte, mas no assunto, não são feitos para a posteridade, mas para agora,
para hoje. Fuller era
um jornalista nato. Não escondia que seu maior sonho era “possuir e dirigir”
seu próprio jornal. Isso não
quer dizer que em seus filmes não haja arte. Os longos e complexos planos que
costumava utilizar dão bem idéia das dificuldades técnicas que se propunha
enfrentar. Mas conferem aos filmes essa fluência típica do texto
jornalístico, que precisa acomodar o heterogêneo num espaço único e homogêneo.
E, sobretudo, essa sensação de urgência característica do jornalismo. Dito isso,
Fuller era um cineasta de longo alcance. Para começar, um crítico feroz do
“hollywoodianismo”, que era para ele sinônimo de cinema não adulto. Exemplo:
para Fuller, Consciências Mortas (1944), de William Wellman, era o
exemplo típico de um filme adulto. Ali, um grupo de fanáticos lincha um
homem. E, ao constatar que era inocente, o que fazem? Tomam um trago. Exemplo
contrário: em Fúria (1936), de Fritz Lang, ao constatarem que haviam
tentado matar um inocente, os linchadores se põem a chorar e pedir desculpas.
Para Fuller, fanáticos linchadores não pedem desculpas e choram. Eles
simplesmente não aprendem, não têm a dimensão do que fazem. Lang fora
hollywoodiano e convencional. Wellman mostrara seres reais. No
entanto, é Fritz Lang a grande referência de Fuller, sua baliza.
Estilisticamente, pode-se situar Fuller ao lado dos cineastas com influência
expressionista, como Lang e Hitchcock, cuja essência é a manipulação do espectador
por meio da imagem. Detalhe não desprezível: Fuller achava Hitchcock mera
perfumaria. Basta ver
as intrigas de seus filmes para entender a razão. Nos mais
de 20 filmes, feitos entre os anos 40 e os 80, Fuller sempre escolheu entrar
pela porta dos fundos, pelo aspecto mais desimportante e menos óbvio da
história. Isso sempre deu a seus filmes um aspecto retorcido, conturbado,
turbulento. Pouco otimista, claro, e, em definitivo, nada glamouroso. Ao definir
sua arte, em Pierrot le fou, de Godard, ele afirmará que “o cinema é
um campo de batalha”. Mas, ao refletir sobre a guerra em Agonia e Glória
(1980) - sobre sua experiência de soldado durante a Segunda Guerra Mundial -,
dirá: não há qualquer heroísmo na guerra, o único heroísmo é sobreviver. Seus
filmes sem heróis, agônicos, têm uma beleza e uma poesia que irrompem na tela
levados pela força, consistência e originalidade de seu olhar. Fuller
costumava dizer, com toda consciência, que 95% dos filmes existem por motivos
puramente comerciais. Os outros 5%, os únicos que contam, existem porque
alguém tinha algo a dizer e disse. Para fazer
parte desses heróicos 5%, Samuel Fuller dispensou os grandes orçamentos, as
produções feitas com prazos e orçamentos confortáveis. Encarnou um modo de
ser do cinema, o mais puro, o menos estetizante. Talvez por isso seja o maior
cineasta de uma geração - a do pós-guerra - que virou o cinema americano pelo
avesso e teve gigantes como Nicholas Ray, Elia Kazan, Robert Aldrich. Com Samuel
Fuller, o Tio Sam, o cinema perde mais que um cineasta. Vai-se um pouco,
talvez muito, de sua juventude, de sua integridade e de sua beleza. (Folha de São Paulo, 3 de novembro de
1997) |
2009 – Foco |