LADRÕES DO AMANHECER

por Inácio Araujo

 

(Les voleurs de la nuit). 1983. Parafrance Films/Sara Films (92 minutos). Produção: Antoine Gannagé. Roteiro: Olivier Beer e Samuel Fuller, baseado na novela Le Chant des enfants morts, de Olivier Beer. Tradução: Anne Dutter, Georges Dutter. Fotografia: Philippe Rousselot (cor). Música: Ennio Morricone. Cenografia: Dominique André. Montagem: Catherine Kelber. Elenco: Véronique Jannot (Isabelle), Bobby Di Cicco (François), Victor Lanoux (inspetor Farbet), Stéphane Audran (mãe de Isabelle), Camille de Casabianca (Corinne), Micheline Presle (Genevieve), Rachel Salik (Mussolini), Marthe Villalonga (a concierge), Andréas Voutsinas (Jose), Claude Chabrol (Louis Crépin, vulgo ‘Tartuffe’), Humbert Balsan (inspetor Martin), Gérard Boucaron (o vizinho), Samantha Fuller (Angelique), Steve Kalfa (o detetive), Sam Karmann (policial), Christa Lang (Solange), Samuel Fuller (Zoltan).

 

Fuller revolve pela última vez o cinema

 

Samuel Fuller é um mestre em embaralhar as cartas. Em Ladrões do Amanhecer, seu último filme, ele se detém sobre dois jovens desempregados - François e Isabelle - que se conhecem numa agência de empregos, apaixonam-se, logo decidem se transformar em assaltantes. Mas o filme não é propriamente um policial.

 

Em Ladrões, o crime é uma opção do casal e, a princípio, uma diversão inconseqüente. François (Bobby di Cicco) e Isabelle (Véronique Jannot) remetem direto ao Acossado (1959) de Jean-Luc Godard. Mas Fuller não se detém sobre o aspecto existencial da questão.

 

Existe um item central na motivação dos criminosos. É, no mais, o que os une: vingar-se das humilhações sofridas na agência estatal de empregos. Seus carrascos serão agora vítimas. Um acidente muda o rumo das coisas, quando assaltam a casa do funcionário a quem chamam Tartufo (Claude Chabrol). Por azar, na hora do assalto o Tartufo está pendurado em uma janela de seu apartamento, tentando ver a vizinha se trocar. Assusta-se ao ver os assaltantes, cai da janela e morre. Desencadeia assim a engrenagem criminal.

 

Só este princípio de filme já basta para situar pelo menos quatro registros: o social, o psicológico, o existencial, o afetivo. Fuller está e não está em todos eles. É o que particulariza o filme e o identifica à obra de seu autor. Vem daí sua tortuosidade, à qual se acrescenta um último e decisivo elemento: Ladrões é, também, um filme sobre a música.

 

François é um violoncelista e seu universo é o som. Já na abertura do filme, ele tenta assistir, de penetra, um concerto. Pouco depois se apaixonará por Isabelle apenas porque seu nome lhe parece sonoro. Nas seqüências finais, conseguirá enfim tocar em uma orquestra. O preço que paga para chegar à harmonia entre a música e o nome de sua amada, será uma das linhas de força do filme.

 

O que faz de Ladrões do Amanhecer um filme apaixonante, à altura de seu autor, é a maneira como Fuller situa-se no interior desses múltiplos registros, misturando-os e colocando toda a ênfase na invenção (contam-se nos dedos as cenas sem um achado, os momentos em que todo o quadro não vibra com a intensa materialidade impressa às figuras, aos cenários, à luz).

 

Em uma palavra, se é tão difícil classificá-lo, é porque Ladrões é, estritamente, um filme de cinema. Isso não soará como novidade para quem freqüenta Fuller. É próprio de seus filmes estabelecerem um corpo a corpo com a matéria; se realizarem nessa dobra entre o real e o filmado, não como se quisesse harmonizá-los, mas atirar um contra o outro, espelhar suas contradições.

 

O filme respira, quase fisicamente, nesse hiato entre a verdade e a representação. Não é espantoso, assim, que os protagonistas de Ladrões comecem eles próprios na realidade, descolem-se para a fantasia (o crime como produtor de felicidade), antes que o real volte a projetar sua sombra sobre a fantasia.

 

Essa imediatez, esse atrito permanente entre fato e representação, matéria e linguagem; a contradição dolorosa entre o corpo (físico) e sua alma (abstração) fazem do filme fulleriano por excelência aquele onde tanto o real como a representação revelam um ao outro suas arestas, suas fragilidades.

 

Daí não ser difícil quem identifica a beleza de um filme a seu assunto decepcionar-se com Ladrões: o assunto, em Fuller, está sempre em outra parte que não no tema. Seu assunto é, afinal, a própria possibilidade de existência do filme e, portanto, da vida, a busca do encontro entre essas duas linhas paralelas, simultaneamente a exasperação de suas distâncias.

 

Com mão de mestre, Fuller imprime um ritmo espantoso ao filme (a montagem é notável), produz um humor caricatural, homenageia seu mestre Fritz Lang (as seqüências de perseguição são evidentemente inspiradas por Vive-se uma Só Vez), mas nunca perde o fio da meada: tudo é físico e, paradoxalmente, intangível. A arte de Samuel Fuller é uma arte da inquietude e da tormenta. 

 

(Folha de São Paulo, 28 de fevereiro de 1991)


 

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