CÃO BRANCO
por Inácio Araujo


Globo adota cão racista de Samuel Fuller

 

Os filmes de Samuel Fuller contêm, quase sempre, um elemento central de demência. Ninguém que tenha visto esquece o jornalista de Paixões Que Alucinam, ou o atrevido estelionatário que grilou todo um Estado, nos EUA, em O Barão Aventureiro, entre tantos outros.

 

Em Cão Branco Fuller vai mais longe. Aborda o universo humano a partir da ação de um animal. A designação “branco” não evoca só uma cor física, mas sobretudo ideológica: esse é um animal condicionado a atacar negros. Uma herança, brutalmente presentificada, da sociedade escravocrata.

 

O tema do filme é, assim, a permanência atual e agressiva do racismo. Mas Fuller raramente gosta de encarar seus temas pelo ângulo mais fácil ou mais óbvio. Prefere que ele seja tortuoso e obscuro. Aqui, o personagem central é uma ausência: a pessoa que treinou o animal e que transferiu para o cão a agressividade de seus sentimentos em relação aos negros. Se o racismo é irracional e os cachorros idem, Fuller eleva essa irracionalidade ao quadrado e, por isso mesmo, sua simples existência denuncia a extensão da barbárie racista.

 

O cinema de Fuller também é com freqüência demonstrativo. Desenvolve-se como um teorema, no emaranhado de dificuldades que se impõe. Aqui, uma garota (McNichol) se afeiçoa por um cachorro, após atropelá-lo. Logo descobre que não se trata de um cachorro normal e procura alguém que possa reverter o processo: quem se dispõe a fazê-lo é um tratador de animais negro.

 

O processo de descondicionamento do cão tem uma grandeza discreta, é uma preciosidade, com o diretor segurando com perfeição o clima de imponderabilidade sobre as reações do animal e os perigos aí implicados.

 

O filme consegue tirar, de sua produção modesta (alguns atores, poucos cenários, um cachorro - na verdade, houve uma meia dúzia para fazer o papel), resultados que beiram o prodígio, sobretudo nas seqüências de descondicionamento do cão, onde seu olhar, instabilidade e hesitações transmitem as idéias de imponderabilidade e demência.

 

Como quase sempre com Fuller, o filme teve no Brasil uma carreira infeliz. Sequer chegou aos cinemas paulistas; foi lançado em vídeo como Cão Branco; agora entra na TV com um título bem menos sugestivo. Que esse percurso de tantos obstáculos não desanime ninguém: este é provavelmente o último grande filme de um mestre, e parte de uma obra personalíssima, que se revela mais forte e original a cada dia.

 

(Folha de São Paulo, 8 de dezembro de 1990)


 

VOLTAR AO ÍNDICE

 

 

2009 – Foco