AGONIA E GLÓRIA
por Inácio Araujo


Fuller filma a barbárie em Agonia e Glória

 

Numa das cenas de Agonia e Glória, o sargento Lee Marvin recolhe um dos testículos de um dos seus recrutas, que havia sido arrancado após pisar numa mina. Atira-o para o ar e diz na direção do rapaz: “Você só precisa de um mesmo”, ou algo no estilo.

 

É uma das seqüências mais belas do filme, se é que se pode aplicar o termo a semelhante atrocidade. Em todo caso, é um momento que resume magnificamente o estilo de Samuel Fuller: rápido, direto, em busca do cerne das coisas.

 

Isso não o impede de ser tortuoso (ninguém é discípulo de Fritz Lang por acaso). Fuller gosta de entrar nas coisas pela porta dos fundos. Em Matei Jesse James (1949), tratava dos remorsos do assassino, mas praticamente ignorava o herói assassinado. Em Shock Corridor (1963), o jornalista que entrava num asilo psiquiátrico para desvendar um crime chegava a seu objetivo e ganhava, de quebra, o prêmio Pulitzer. Mas o preço disso era a loucura.

 

Em Agonia e Glória, Fuller retoma sua própria experiência como soldado durante a 2ª Guerra Mundial, desde o engajamento até a tomada da Alemanha pelos aliados. A guerra, aqui, não é um assunto de estado-maior, mas de homens jogados no fronte como buchas-de-canhão. A maior patente em cena é o sargento.

 

Não existe sombra de justiça ou ideal permeando a ação. Das andanças pelo norte da África até o surpreendente final, os episódios sucedem-se como se narrados por um correspondente de guerra. A moral do filme é conhecida e foi enunciada pelo próprio diretor: na guerra, o único heroísmo é sobreviver. No cinema, que Fuller certa vez definiu como “um campo de batalha”, as coisas são um pouco diferentes. Cada experiência no fronte é ocasião de conhecer aspectos até então insuspeitados dos seres humanos e da vida.

 

Ninguém espere que essa passagem da experiência ao conhecimento se dê pela forma do sublime. Fuller é um bárbaro. Ao tratar da guerra, não lhe interessa compreendê-la como fenômeno macro, e sim o destino dos seres que estão à sua frente, a simples opção entre matar e ser morto.

 

É pela via da barbárie que chega aquilo que dificilmente um diretor menos popular tocaria. O que é posto em cena, feito objeto de mise en scène, é o confronto em estado puro do instinto de vida contra a pulsão de morte.

 

Nesse sentido, o cinema de Samuel Fuller pode ser visto como representante de uma espécie de raça em extinção: a dos grandes cineastas que justificaram, um dia, a crença no cinema como um modo de conhecimento não apenas original (porque o único a criar conhecimento a partir de um contato direto e em movimento com a realidade), como popular, isto é, como produção de conhecimento fora do âmbito erudito (literatura, música etc.).

 

Fuller talvez seja um dos últimos cineastas que ainda toca essa primeira natureza do cinema, a mais apaixonante. Talvez não seja ocioso lembrar o quanto o jornalismo é central nessa experiência. Antes de trabalhar em cinema, Fuller foi repórter e é com certeza o cineasta que mais profundamente incorporou o jornalismo ao seu trabalho. Existe em seus filmes essa inquietação investigativa própria dos bons repórteres, o cuidado em manter seu material em estado de algum modo bruto, imediato. Em Agonia e Glória isso é tão visível quanto a inconformidade visceral com a aparência primeira dos fenômenos. Essa última característica, no mais, também uma herança de Fritz Lang.

 

(Folha de São Paulo, 2 de janeiro de 1991)


 

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