AGONIA E GLÓRIA
por Inácio Araujo
Fuller filma a barbárie em Agonia e Glória Numa das
cenas de Agonia e Glória, o sargento Lee Marvin recolhe um dos
testículos de um dos seus recrutas, que havia sido arrancado após pisar numa
mina. Atira-o para o ar e diz na direção do rapaz: “Você só precisa de um
mesmo”, ou algo no estilo. É uma das
seqüências mais belas do filme, se é que se pode aplicar o termo a semelhante
atrocidade. Em todo caso, é um momento que resume magnificamente o estilo de
Samuel Fuller: rápido, direto, em busca do cerne das coisas. Isso não o
impede de ser tortuoso (ninguém é discípulo de Fritz Lang por acaso). Fuller
gosta de entrar nas coisas pela porta dos fundos. Em Agonia
e Glória, Fuller retoma sua própria experiência como soldado durante a 2ª
Guerra Mundial, desde o engajamento até a tomada da Alemanha pelos aliados. A
guerra, aqui, não é um assunto de estado-maior, mas de homens jogados no
fronte como buchas-de-canhão. A maior patente em cena é o sargento. Não existe
sombra de justiça ou ideal permeando a ação. Das andanças pelo norte da
África até o surpreendente final, os episódios sucedem-se como se narrados
por um correspondente de guerra. A moral do filme é conhecida e foi enunciada
pelo próprio diretor: na guerra, o único heroísmo é sobreviver. No cinema,
que Fuller certa vez definiu como “um campo de batalha”, as coisas são um
pouco diferentes. Cada experiência no fronte é ocasião de conhecer aspectos
até então insuspeitados dos seres humanos e da vida. Ninguém
espere que essa passagem da experiência ao conhecimento se dê pela forma do
sublime. Fuller é um bárbaro. Ao tratar da guerra, não lhe interessa
compreendê-la como fenômeno macro, e sim o destino dos seres que estão à sua
frente, a simples opção entre matar e ser morto. É pela via
da barbárie que chega aquilo que dificilmente um diretor menos popular
tocaria. O que é posto em cena, feito objeto de mise en scène, é o confronto em estado puro do instinto de vida
contra a pulsão de morte. Nesse
sentido, o cinema de Samuel Fuller pode ser visto como representante de uma
espécie de raça em extinção: a dos grandes cineastas que justificaram, um
dia, a crença no cinema como um modo de conhecimento não apenas original
(porque o único a criar conhecimento a partir de um contato direto e em
movimento com a realidade), como popular, isto é, como produção de
conhecimento fora do âmbito erudito (literatura, música etc.). Fuller
talvez seja um dos últimos cineastas que ainda toca essa primeira natureza do
cinema, a mais apaixonante. Talvez não seja ocioso lembrar o quanto o
jornalismo é central nessa experiência. Antes de trabalhar em cinema, Fuller
foi repórter e é com certeza o cineasta que mais profundamente incorporou o
jornalismo ao seu trabalho. Existe em seus filmes essa inquietação
investigativa própria dos bons repórteres, o cuidado em manter seu material
em estado de algum modo bruto, imediato. Em Agonia e Glória isso é tão
visível quanto a inconformidade visceral com a aparência primeira dos
fenômenos. Essa última característica, no mais, também uma herança de Fritz
Lang. (Folha de São Paulo, 2 de janeiro de 1991) |
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