AGONIA E GLÓRIA
por Inácio Araujo


Agonia e Glória traz relato autobiografado

 

“O cinema é um campo de batalha”, disse uma vez Samuel Fuller, que entende muito bem das duas coisas. Como cineasta, é um dos realizadores mais inventivos de sua geração, a do imediato pós-guerra. Antes disso, porém, foi soldado durante a Segunda Guerra Mundial e, nessa experiência, buscou o material de vários filmes de guerra, em particular deste Agonia e Glória, relato em grande parte autobiográfico, que resumiu com uma máxima: “Na guerra, o único heroísmo é sobreviver”.

 

Quando foi lançado em São Paulo, o filme teve destino similar ao de vários outros trabalhos admiráveis de Fuller: um lançamento fuleiro, com direito a uma semana em cartaz. Um crime de lesa-cinema que o lançamento em vídeo poderá, ao menos parcialmente, compensar.

 

Agonia e Glória é um dos maiores filmes de guerra já feitos. Não vem ao caso compará-lo com outros filmes notáveis, mas, como na maior parte dos Fuller, tomá-lo naquilo que se distancia de seus similares. Em primeiro lugar, seu deslocamento em relação à indústria: no início dos anos 80, a guerra que vinha ao caso era a do Vietnã. Fuller fincou pé na Segunda Guerra Mundial, aquela que melhor servia aos seus objetivos, ou seja, refletir sobre a glorificação da guerra no cinema.

 

Nesse sentido, o Vietnã não servia de amostra: era o exemplo mesmo de guerra sem sustentação. O combate ao nazismo, ao contrário, sempre foi moralmente admirado. Daí, os filmes de guerra que o precederam possuírem um aspecto um tanto abstrato.

 

É nisso que Agonia e Glória busca sua distinção. Trata-se de um filme físico, sem lugar para o Estado Maior e, portanto, grandes linhas estratégicas. A maior patente que se vê em cena é um sargento (Lee Marvin) da 1ª Divisão de Infantaria do Exército americano (conhecida como “The Big Red One”). Ao seu lado, um destacamento de jovens mal saídos da adolescência e já às voltas com situações onde todo o horror descrito em, digamos, Apocalypse Now, de Francis Ford Coppola, pode enfim ser visto e experimentado.

 

Não é o primeiro filme em que se trabalha com esse tipo de sensação. É, porém, o mais radical. Fuller mostra-se refratário a tudo o que, numa guerra, é motivação, para atirar seus personagens na selvageria do fronte, onde pouca diferença faz ser aliado ou nazista.

 

Essa dureza não inspira qualquer piedade: mesmo esse tipo de noção é abstraído numa narrativa em que as situações de combate se sucedem praticamente sem parada. Não confundir com tantos filmes que fazem da sucessão interminável de eventos o seu “marketing”. Em Agonia e Glória, a sucessão confunde-se com certa monotonia.

 

Essa monotonia, ainda que pontuada pelo risco perpétuo da morte ou de mutilações, instala-se na tela como uma espécie de maldição. A guerra evolui. Sabemos em que estágio ela se encontra. Mas os episódios protagonizados pelos soldados da 1ª Divisão de Infantaria não obedecem a qualquer espécie de crescendo. Idéias correntes - apogeu, perigeu e quetais - parecem descartadas. Se na guerra cada momento é diferente de outro, pelos riscos e desafios específicos que propõe, Fuller mostra que eles tendem paradoxalmente à indiferenciação, pelos mesmos motivos. Só se morre uma vez. E toda a questão é sobreviver.

 

Essa opção pelo monótono é tão clara que, quando nossos heróis chegam ao grande momento (a descoberta dos campos de concentração), topam com câmaras de gás tão reluzentes quanto vazias. A guerra de Fuller remete diretamente ao Quixote: a cada combate, segue-se o vazio. Ao combate final, segue-se o vazio completo, a ausência de sentido, a percepção do desnível abismal entre ação e finalidade.

 

Não terá sido esta a primeira vez que Fuller interpelou a vida de maneira tão violenta. O “nonsense” atravessa seus filmes sob a forma do cinismo (O Barão Aventureiro), da loucura (Shock Corridor), do desespero (O Beijo Amargo) e por aí afora. Mas foi a primeira vez que o cineasta se colocou ostensivamente dentro de um de seus filmes. Ele é o soldado representado por Robert Carradine, que, como o diretor, se caracteriza pelo hábito de portar enormes charutos na boca, em tempo mais ou menos integral. É possível acusar Agonia e Glória de tudo, menos de ser um filme impessoal.

 

(Folha de São Paulo, 4 de outubro de 1990)


 

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