POR QUE SAMUEL FULLER?
por Tag Gallagher


FOCO - Setembro/Outubro 2009

Por que Samuel Fuller?

Muitas pessoas associarão Samuel Fuller menos a seus filmes que à participação especial em O Demônio das Onze Horas (1965), de Jean-Luc Godard. Ferdinand Griffon (Jean-Paul Belmondo) vai até ele numa festa em Paris e pergunta “sempre quis saber, o que é o cinema, exatamente?” e Fuller responde, em inglês, “um filme é um campo de batalha. É amor, ódio, ação, violência, morte. Em uma palavra: emoção.”

A resposta foi quadruplamente apropriada. Primeiro, porque Fuller foi um combatente. Lutou a Segunda Guerra Mundial como um soldado do exército americano, na divisão conhecida como “The Big Red One”, na Argélia, Sicília, praia de Omaha, batalha do Bulge e no campo de concentração de Falkenau.

Segundo, porque Fuller era famoso por se pronunciar através de headlines. Ele começara vendendo jornais aos onze anos em Nova York e aos dezessete já era um reconhecido repórter policial e cartunista. Os filmes dele passam a sensação de jornalismo de tablóide: uma história bizarra; violência; uma aproximação direta, forçosa que enfatiza a ação e o conflito.

Terceiro, porque ninguém melhor que Fuller sintetizou o perfil do cineasta desprestigiado defendido por críticos como Godard e François Truffaut nos anos 50, quando as “heresias” da politique des auteurs e Hollywood-como-arte causavam os maiores impactos. Os filmes de Fuller eram baratos e lançavam mão de gêneros comerciais, arrecadaram dinheiro e foram desprezados - isso quando foram mencionados. Mas o sucesso obtido deu a Fuller independência. Ele não apenas dirigia como escrevia e produzia. Ele era o autor completo. E seus filmes despertavam poderosas emoções de dor e desespero, do absurdo de viver num mundo sem Deus, de penetrar o coração das trevas no qual vivia a civilização do pós-guerra. Fuller foi portanto em vários sentidos uma inspiração por trás dos primeiros filmes da Nouvelle Vague.

Quarto, porque a imagem pública de Fuller, com seu gigantesco charuto e o seu estilo contundente, parecia deliberadamente provocativa. Sua própria imagem, junto à natureza desbravadora dos filmes, enganou críticos a ponto de fazê-los perder as sutilezas, as paródias, a riqueza, a arte. Ao invés disso, Fuller foi notoriamente denunciado como selvagem e quase analfabeto, e mesmo defensores como Andrew Sarris recuaram para tentar defendê-lo como um “americano primitivo”.

Samuel Fuller (1912-97), filho de pais judeus vindos da Rússia e Polônia, nasceu Samuel Rabinovitch, em Worcester, Massachussets. Tinha onze anos quando seu pai morreu e a mãe se mudou com os sete filhos para Nova York. O trabalho de Fuller como repórter policial introduziu-o ao submundo, prisões e execuções, ensinando-o a escrever sem adjetivos. Durante os piores anos da Depressão, ele bateu pé, vagando pela América como um errante, dormindo com vagabundos, mas com uma máquina de escrever presa ao corpo e enviando histórias o tempo todo.

Por volta de 1936, ele escrevia roteiros em Hollywood, mas quando a guerra estourou, preferiu lutar como simples soldado de infantaria, a mais baixa posição no exército, a servir numa das confortáveis posições não-combatentes disponíveis para jornalistas. Em 1980, filmou Agonia e Glória como uma crônica de seis horas de duração sobre seus anos de guerra, culminando em Falkenau. Os campos de concentração foram evocados freqüentemente em seus filmes, na forma, porém, de um crime contra a humanidade, ao invés de um Holocausto Judeu. “A hipocrisia dessas histórias de semitismo ou anti-semitismo é falarem disso como se fosse uma raça”, disse.

Fuller fez seus primeiros filmes ao se oferecer para dirigir gratuitamente os seus próprios roteiros para Robert Lippert, um produtor independente de material barato. Os filmes custaram praticamente nada, e Capacete de Aço, filme de guerra feito em duas semanas por $100.000,00 arrecadou $6.000.000,00. Em seguida, Fuller se viu soterrado por ofertas de todos os grandes estúdios. Ele investiu seu próprio dinheiro em A Dama de Preto (1952), uma história sobre jornais de Nova York no século dezenove, e perdeu tudo. Nos dez anos seguintes, porém, ele alternou com sucesso projetos para a Fox e sua própria companhia, Globe Enterprises, e fez duas obras-primas que são quase reconhecidas como tais: Anjo do Mal (1953) e Renegando o Meu Sangue (1957).

Um primeiro casamento desastroso (parodiado em Dragões da Violência) o deixou quebrado. Dois dos seus filmes mais estranhos, Paixões Que Alucinam e O Beijo Amargo - o primeiro é ambientado num manicômio e no segundo conta-se a história de uma prostituta tentando se tornar respeitável -, arrecadaram dinheiro, mas Fuller, de alguma maneira, recebeu quase nada. Por um tempo, a sua segunda esposa os sustentou trabalhando como recepcionista de uma clínica médica. Depois da Lorimar mutilar Agonia e Glória e da Paramount se recusar a lançar Cão Branco por temer controvérsias, Fuller foi obrigado a procurar por trabalho fora do país.

 

***

 

Para Samuel Fuller e Roberto Rossellini a experiência definidora foi a Segunda Guerra Mundial. Seus filmes tratam da guerra e do problema de viver depois dela. Rossellini, porém, foi uma vítima civil, enquanto Fuller matava pessoas.

Então, Fuller chamou seu primeiro filme de Matei Jesse James (1949). Jesse James era um “câncer” que precisava do assassínio, como um nazista. Mas um assassino não pode tolerar seu próprio carma violento.

O que me empolgou foi o assassino revivendo o crime. Você podia ver que ele não era apenas doente, mas consciente. Sabia que estava doente... É uma história psicológica”[1].

Enquanto os filmes de Rossellini enxergam o pós-guerra como uma oportunidade para reconstruir uma “nova realidade”, os de Fuller fixam-se em colisões violentas, nas quais pessoa e mundo se dissolvem em emoção. Onde está a realidade? “Eu realmente acredito que o mundo faz você ser aquilo que você é. Não é você quem faz o mundo.

Somos programados, mas tentamos ser heróis de qualquer forma, e a câmera de Fuller olha a nós, isolados amargamente contra o céu. Há a pretensão, também, de que a Verdade está na nossa frente, de que é mostrada pelo filme (“Isso é História!”, Fuller freqüentemente anuncia, com datas escritas na tela), e que com a Verdade bastam as boas intenções (“A imprensa é boa ou má conforme aqueles que a comandam”, A Dama de Preto nos diz). “Eu vi num filme!”, um garoto alemão exclama, dizendo como aprendeu sobre os campos de concentração, e Fuller, como Rossellini, sonhava em salvar o mundo filmando a enciclopédia.

A história, porém, abre espaço para o “realmente real”, à eternidade, chiaroscuro, ângulos sobrejacentes e movimentos angulares, montagem eisensteiniana e personagens aprisionados como ícones em incessantes closes ou, magicamente, em mundos oníricos que atravessam os tempos. A aflição de Kelly (Constance Towers) em O Beijo Amargo lembra a de Karin (Ingrid Bergman) em Stromboli, terra di Dio (Stromboli, 1950), de Rossellini.

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Luzes e sombras, paredes e grades afogam-nas nas suas próprias emoções, até serem salvas pela voz de uma criança - milagre em Rossellini, acidente em Fuller, onde nos massacramos enquanto Budas gigantes nos observam. “Realidade” é dor, texturas e fragmentos de consciência. Um duelo em Dragões da Violência é desmembrado em partes isoladas. Robert Bresson o copiará em Lancelot du Lac (1974), tendo já modelado Pickpocket (1959) a partir de Anjo do Mal, não apenas pelo batedor de carteiras agindo no metrô com um jornal, mas nas fantasias dostoyevskianas de um quase-herói, compulsivamente habilidoso e auto-iludido, em que a montagem fragmentada alterna-se com longos planos de claustrofobia num desespero para escapar da consciência, da sobriedade e de outras pessoas, ou abrigá-las.

Cada filme de Fuller é um gasto de energia - caminhada, trilha, corrida - que confronta as pessoas com a morte, ou pior, o destino. Covardes culpam as circunstâncias, bravos carregam-nas adiante, no entanto as odisséias inspiram poucas escolhas morais. Paixões decidem, não a razão. As pessoas mudam quando as circunstâncias (ou fantasias sexuais) mudam. Prazer, desejo, fúria e medo pertencem a nenhuma moral exceto a si próprios. Jekyll e Hyde são a mesma pessoa. Em Dragões da Violência, Jessica Drummond (Barbara Stanwyck) estala o seu chicote, explodindo através das planícies, fodendo seus quarenta dragões; ela abandona as botas e as esporas, o crime e o poder por sentir-se bem sendo submissa a um homem forte. Muda não pelo ato de vontade, mas por um desencadeamento de emoções.

Uma coisa que gosto de Freud. A idéia de um homem que experimenta, que joga com a emoção de uma mente. Com alguma coisa invisível.


Fuller torna isso visível. O “câncer” em muitos “heróis” aparece em olhos esbugalhados, sobrancelhas arqueadas, bocas distorcidas e punhos cerrados, à medida que eles afirmam sua vontade, desafiam a insegurança e erguem-se contra o céu. “A maioria dos meus personagens são [anarquistas]. Em seus corações são contra todo tipo de sistema.” Nenhum deles irá desistir - exceto Moe Williams (Thelma Ritter) em Anjo do Mal, pois já viveu o suficiente para sentir-se cansada. Os outros nunca hesitam. “Eu a atropelei”, orgulha-se um personagem em A Lei dos Marginais (1961), reportando o assassinato de uma garotinha.

Contudo, os poucos sobreviventes descobrem que não era de todo suas vontades os impulsionando, e sim alguma coisa a mais. “Estava tudo na minha cabeça”, diz um detetive maravilhado. Eles estão “doentes”, diz Fuller. Perderam a consciência apenas por estarem vivos. O jornalista de Paixões Que Alucinam é infectado menos pela “doença” do asilo do que pela própria arrogância. “Eu queria relembrar que o cérebro tem seu ponto de não-retorno”.

Mas se identidade é ficção, onde está o caráter? Se os filmes de Fuller compelem-nos a escrever o final, seria porque a razão conduz à insanidade em um ciclo vicioso?

Não existe vida habitual em Fuller, apenas violência nas margens da sociedade - exceto em Cão Branco, onde há pessoas como as que conheço. Não subestime, porém, um homem da imprensa: Cão Branco não é “cachorro ataca homem”, mas sim “homem ataca cachorro” - três pessoas projetam nele suas mais profundas paixões, como cientistas malucos indiferentes à prepotência.

Vovô exala bondade, orgulhoso em ter programado um cachorro cuja finalidade é matar negros, os quais ele considera “doentes”.

Keys (Paul Winfield), ao contrário, é um antropólogo negro cuja cruzada para desprogramar o doente é tão obstinada que ele protege o cachorro da polícia, mesmo depois deste ter fugido e matado um homem. Os grandes closes nos olhos de Keys, porém, dizem que sua maior motivação é o poder. “Se eu não o parar, atiro nele”, promete; até consegue pará-lo, mas o cão, em seguida, ataca um homem branco parecido como o Vovô, e Keys, então, atira, porque não é violência o que ele quer desprogramar, apenas racismo. Assim como Vovô, Keys não pode reconhecer o Hyde em seu Jekyll.

Julie Sawyer (Kristy McNichol), por sua vez, é uma atriz de 20 anos, cuja erótica presença, um ponto aparentemente irrelevante adicionado ao filme, está no centro do mundo de Fuller. Mulheres são uma fonte de violência nesse cinema neuroticamente centrado no homem, pois elas seduzem e rejeitam. Geralmente são amazonas ou vadias, tornadas imorais à força. Numa dúzia de filmes, homens as espancam brutalmente. A beldade que inspira o assassinato de Jesse James é repugnada não pelo assassino, mas por sua culpa. A de Dragões da Violência (uma paródia da primeira esposa de Fuller) também inspira o amante a ir matar. Então, nas palavras de Fuller,

um dia, ela não o quer mais. E você escuta o som da caneta. Ela está assinando um cheque. Ela se divertiu com ele na cama, agora já se esqueceu. Ele foi apenas uma prostituta para ela. E ele se enforca.

As mulheres de Fuller são cães brancos. À semelhança da bela em O Beijo Amargo, elas podem ir, num piscar de olhos, de enfermeiras a assassinas.

Julie, no entanto, não possui mentalidade de criminosa. Seu amor conduz ao desastre e à morte simplesmente porque ela é uma mulher (como a maioria das mulheres de Fuller). Vive sozinha numa montanha, temendo envolver-se com alguém (como a maioria das pessoas de Fuller). O cachorro, então, torna-se um substituto para seu namorado; ele é forte e selvagem. Os mamilos eretos, as longas pernas expostas, a montagem de Fuller mostra ela seduzindo cachorro e rapaz simultaneamente,

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inocentemente despertando e negando o desejo (brincando com o cão pela sua calcinha) dela e de seus admiradores, até quase ser estuprada (por um estranho, suplente de todos os homens).

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A partir de então, ela anda vestida, protegendo seu cachorro assassino, negando o desejo até o fim quando, sabendo que o cão está curado, ela finalmente libera sua força vital e se precipita fatalmente, expondo-se ao máximo.

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Mas Vovô aparece e Julie o xinga de “doente filho da puta”. Como Keys e Vovô, Julie não consegue reconhecer o cientista louco, o Hyde, nela mesma. Como podemos distinguir razão do desejo?

A única coisa certa a fazer, Fuller diz, é matar cães brancos.

Se eu ficasse sozinho com ele [Calley, o tenente que comandou o massacre de My Lai], eu o teria matado e ido para a cadeia. Esse homem é um exemplo do que posso chamar de Mal, e a única maneira de acabar com o Mal é eliminando-o. Sem julgamento, sem exame psiquiátrico.

Mas depois de matarmos todo mundo, quem nos colocará na cadeia? O próprio Fuller fez parte de um esquadrão de cães brancos em Agonia e Glória, que matam, conforme foram treinados, em sete países, até chegarem aos campos de concentração, onde matam com raiva. Em O Beijo Amargo, Towers é outro cão branco, que vai da cadeia ao pedestal pela única razão de que a vítima do seu ódio era “doente”. Vivemos em fantasias: como escapar do círculo vicioso?

Os quatro últimos filmes de Fuller, todos produções francesas, não buscam mais por soluções. Eles se refugiam no cinismo e na indulgência. Sempre seus filmes hollywoodianos se beneficiaram de técnicas de vanguarda, mas a fim de contar uma história. E se alguns desses projetos começaram como teses, eles acabaram, como em Paixões Que Alucinam, centrados em personalidades individuais, a exemplo também da montagem abstrata do confronto em Dragões da Violência. Nos últimos filmes, porém, as experimentações têm como objetivo elas próprias. Os personagens são manequins, tudo é farsa, pedantemente reflexivo. Talvez Fuller tenha sido influenciado por Godard, que o adorava pelos seus truques mais tolos, como enquadrar através do cano de um rifle.

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É provável que seu melhor filme seja Renegando o Meu Sangue (1957): história de perseverança, cenários épicos e música romântica. Desejo e violência estão encarnados em alguns dos mais belos e eróticos nus masculinos desde a Renascença - Indígenas, selvagens, fortes e livres. Começa em “9 de abril, 1865” com a rendição do Sul em Appomattox. A Guerra Civil terminou. Lee reverencia Grant, que retribui a cortesia, enquanto o cavalo daquele relincha suavemente.

Isso nós vemos de certa distância, em fragmentos entrecortados através dos tempo, muitos detalhes, muitos sentimentos para recebermos. É o momento definitivo na mitologia da América, a resolução do pós-guerra. Os gestos do assassino ganham asas, projetam-se sobre um continente em um longo gesto.

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A filmografia de Samuel Fuller com as cotações do autor

1949 Matei Jesse James ***
1950 O Barão Aventureiro **
1951 Capacete de Aço ***
1951 Baionetas Caladas **
1952 A Dama de Preto ***
1953 Anjo do Mal ****
1954 Tormenta Sob os Mares *
1955 Casa de Bambu **
1956 Renegando o Meu Sangue ****
1957 No Umbral da China *
1957 Dragões da Violência ***
1959 Proibido **
1959 O Quimono Escarlate ***
1960 A Lei dos Marginais ***+
1962 Mortos Que Caminham **
1962 The Virginian: “It Tolls for Thee” *
1962 The Dick Powell Reynolds Aluminum Show: “330 Independence S.W.” -
1963 Paixões Que Alucinam ***
1964 O Beijo Amargo ****
1966 The Iron Horse: “The Red Tornado” -
1966 The Iron Horse: “The Man from New Chicago” -
1966 The Iron Horse: “High Devil” -
1966 The Iron Horse: “Volcano Wagon” -
1966 The Iron Horse: “Hellcat” -
1966 The Iron Horse: “Banner with a Strange Device” -
1968 Tubarão (México°) *
1973 Em Ritmo de Assassinato (Alemanha°) **
1980 Agonia e Glória (restaurado) **
1982 Cão Branco ****
1984 Ladrões do Amanhecer (França°) *
1989 Uma Rua Sem Volta (França°)
1990 The Day of Reckoning (França°) *
1990 Tinikling ou ‘La madonne et le dragon’ (Tinikling or ‘The Madonna and the Dragon’, França°) *+

° Fuller, que não falava francês, alemão ou espanhol, rodou em inglês e foi responsável somente pelas versões em língua inglesa desses títulos (apesar de Ladrões e Day serem horrivelmente dublados).

Nota:

[1] Citações de Jean Narboni e Noël Simsolo, Il était une fois… Samuel Fuller, Paris: Éditions Cahiers du Cinéma, 1986, pp. 136, 137, 137, 240, 250, 222, 241.

(Senses of Cinema nº 50 [http://www.sensesofcinema.com/2009/feature-articles/samuel-fuller-tag-gallagher/], 2009. Traduzido por Matheus Cartaxo Domingues)


 

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