VIVER A VIDA, Jean-Luc Godard, 1962 por João Bénard da Costa 1. Apetece-me dedicar este texto à Joana, à amiga dela e ao amigo dela. “Há três tipos de mulheres: as que têm uma expressão, as que têm duas expressões, as que têm três expressões”. Lembrei-me disso (e isso é dito em Vivre sa vie) nessa noite, no Kremlin. No mesmo episódio (episódio VII) em que Raoul (Sady Rebbot) diz a Nana (Anna Karina) “Je pense qu’il y a une grande bonté chez vous”. Nana, ao princípio, não percebe bem e, quando ele repete (“chez vous, dans votre regard”) responde: “C’est une drôle de chose à dire.” Para dizer, talvez seja. Para ver, não é. Vivre sa vie, filme de um célebre diálogo de uma puta com um filósofo (Anna Karina e Brice Parain, ele próprio) é também um filme sobre as diferenças entre as palavras e as coisas. 2. Apetece-me dedicar este texto ao Joaquim Sapinho, à Carla Bolito e ao Francisco Nascimento. “Sinto-me muita sozinho quando não está ninguém à minha espera”, diz Lucas (Francisco Nascimento) a Paulo (Marco Delgado) no Corte de Cabelo, o filme de Sapinho. Nessa seqüência, e particularmente nesse momento, há aquela raríssima comoção que percorre a mais misteriosa seqüência de Vivre sa vie: a do interrogatório de Nana pelo policial à paisana. Quando o policial lhe pergunta o que vai ela fazer agora e se reacende - ou reobscurece - o grande plano de Anna Karina do genérico, para ela dizer “Je ne sais pas... Je... est une autre”. Carla Bolito vem de Judy Garland, dos melodramas de Minnelli, mas vem também de Anna Karina, que (lembram-se?) antes de vender o corpo, vendia discos de Judy Garland, na Avenue Wagram. “I can hardly believe they are real”. As duas. “On se dit toutes les choses qui nous viennent / C’est beau comme du Verlaine / On dirait. On dirait.” Podem dizer-se tantas coisas. 3. E posso dizer que a Dedicatória 1 e a Dedicatória 2 são o XIII e o XIV quadros do filme em doze quadros Vivre sa vie “pensado, dialogado, rodado, montado... numa palavra, encenado por Jean-Luc Godard” em 1962 e dedicado aos filmes da série B. 4. Quando, em 1958, Godard escolheu Tabu, Viaggio in Italia, La carrozza d’oro e Sommarlek, os títulos que até agora vos trouxe, como “o mais belo dos filmes”, todos e cada um deles, ainda não tinha feito nenhum, ele. Mais exatamente: tinha feito alguns curtas-metragens (Opération ‘Béton’, Une femme coquette, Tous les garçons s’appellent Patrick, Charlotte et son Jules, Une histoire d’eau) que, entre Hans Lucas, Eric Rohmer ou François Truffaut, ainda não tinham feito nascer Godard como Godard. Só em 1959, um ano depois de Bergmanorama, o meu artigo inspirador, JLG foi visto como JLG. 1959 foi o ano de À bout de souffle. 5. À bout de souffle é o mais belo dos filmes. Quinze outros títulos de Godard o são também. Por que escolhi Vivre sa vie? Porque eu acho que é, de todos, o que melhor rima com os versos de Bergmanorama. Porque que acho que é, de todos, o que mais ama uma mulher (Anna Karina). Porque eu acho que é, de todos, o que mais nos dá, dela, a única, dupla ou tripla expressão (vejam-se, para começar, os quatro grandes planos mágicos do genérico). Porque “il faut se prêter aux autres et se donner à soi-même”, como se lê em Montaigne, citado em epígrafe. Porque, em Vivre sa vie, Anna Karina já não pisca o olho à câmara, como no final de Une femme est une femme, mas baixa os olhos diante dela. Porque, algures entre esse olhar que não agüenta o da câmera, ou entre o da câmera que não agüenta o dela (olhar que tem a memória de Reri, de Ingrid Bergman, de Anna Magnani, de Maj-Britt Nilsson nos filmes já falados) nasceu o cinema moderno. Em sisudo. O tempo do olhar não poder mais. Não poder mais olhar. Não poder mais durar. Muita sozinho. 6. Na primeira seqüência do primeiro episódio (um bistrot), Nana, de costas para nós, vagamente refletida num espelho, diz a Paul (André S. Labarthe), o homem que se enervava de amar: “J’en ai marre, je veux mourir”. Coisas que se dizem e não se pensam, outra vez? Nós e Paul pensamo-lo, sem o dizer. Aparentemente, não faz nenhum sentido que a história de Nana acabe com a morte dela. Outros cineastas (Fritz Lang, por exemplo), com o horror às mortes inúteis, nunca teriam morto uma mulher como ela. Godard matou-a, em obediência ao modelo (série B) em que há sempre uma morte no final? Diz-se. Mas se se vir (é difícil ver), Nana é uma mulher para a morte. Por isso... 7. Por isso são de morte duas das quatro mais belas seqüências do filme. A do interrogatório na polícia (a mais breve e a mais misteriosa), a da visão de La passion de Jeanne d’Arc de Dreyer, a do Retrato Oval de Edgar Poe e a da conversa com o filósofo. 8. É no III quadro que se situa o episódio chamado La passion de Jeanne d’Arc. 9. Nana diz a Paul que não lhe apetece ir jantar com ele, que prefere ir ao cinema. Diz-lhe adeus com a mão (nunca mais o veremos) e o plano (um fim de tarde nas ruas de Paris) encadeia com a fachada de um cinema de Saint-Michel, que anuncia, com letras de néon, o filme de Dreyer, filme mudo de 1928, realizado trinta e quatro anos antes do filme de Godard (gela-me pensar que também decorreram trinta e quatro anos entre o filme de Godard e os dias de hoje). 10. Corte. E passamos ao interior da sala, onde apenas estão dois espectadores: Nana e um homem, que depois saberemos que lhe pagou o bilhete. Num plano geral, muito breve e muito escuro, temos tempo de perceber que o homem está mais interessado em Nana do que no filme e que Nana, pelo contrário, só vê o filme e quase não repara no homem. Do filme de Dreyer, começamos por ver, luminosíssimamente branco, um intertítulo. «Viemos para te preparar para a morte.» Preparar quem? Joana d’Arc (Falconetti), de quem vemos, a seguir, o rosto em grande plano, cabeça raspada, levantando os olhos como numa súplica. Quem a vem preparar é Antonin Artaud (grande plano) e os outros dominicanos, juízes e algozes dela. “Est-ce maintenant, déjà?” Outros grandes planos, outros intertítulos (“Quelle mort?”). E voltamos à sala escura, para um grande plano frontal de Nana, com os olhos cheios de lágrimas. Antonin Artaud substitui-a. “Nous ne comprenons la route q’au terme de notre chemin.” Grande plano de Falconetti, esses grandes planos entre os grandes planos. Intertítulos onde se inscrevem as palavras vitória, libertação, martírio e, por duas vezes, morte. Depois, um grande plano, muito aproximado, tão belo como, de Anna Karina. As lágrimas escorrem-lhe dos olhos, pela cara abaixo. Ousadia - e vitória - de lidar de igual para igual com Dreyer e de tornar Anna Karina tão comovente quanto Falconetti? Ousadia - e vitória - de sustentar com o olhar da puta o olhar da santa? Isso, mas mais do que isso. Duas mulheres que, nas trevas, se preparam para a morte, destino inelutável delas. Por isso, o campo-contracampo Falconetti-Karina (que não é campo-contracampo) é uma das coisas mais imensas que já se fizeram em cinema. 11. Brice Parain conta a Anna Karina a história de Porthos nos Vinte Anos Depois. Como ele pôs uma bomba e depois fugiu e, quando ia a fugir, começou a pensar como é possível pôr um pé diante do outro. E, por pensar, parou de fugir e o subterrâneo caiu-lhe em cima e ele morreu. “Da primeira vez que pensou, morreu.” Toda a conversa - a puta e o filósofo - está nos limites do verossímil e do ridículo. Se acaba por ser um milagre é porque, como diz Nana, “a verdade está em tudo, mesmo no erro.” É porque ela, como Porthos, começou a morrer quando começou a pensar. 12. No XII quadro - o último - o primeiro episódio é o da leitura do Retrato Oval de Edgar Poe. O pintor que pinta a mulher amada e tão bem a pinta que, quando acaba o quadro, se convence que o quadro é a vida. Então volta-se bruscamente para olhar a mulher e a mulher tinha morrido. Depois da leitura, em sombras chinesas, Nana e o jovem que lhe lera o conto perdem a imagem e encontram o amor. Nana vai dizer a Raoul que quer deixar a vida. Contingentemente, morrerá. 13. Na seqüência da morte, começamos por ver, num longo plano fixo que nada parece justificar, um cruzamento de ruas dos subúrbios de Paris, ruas desertas. Só um minuto depois, chega o 404 de Raoul e chegam os outros, para o ajuste de contas. Tudo é tão rápido. Raoul protege-se com o corpo de Nana e o outro diz-lhe que não é por ele ter uma mulher à frente que vai deixar de disparar. Mas, na confusão, quem mata Nana é Raoul. Nana foi o corpo a mais. Sempre. E a última coisa que viveu da vida - a última coisa que viu na vida - do local onde se encontrava, foi esse cruzamento sujo e feio de ruas desertas. Por isso, ele durou tanto tempo, antes. Por isso, o não vemos, no fim. 14. No diálogo com o filósofo, este diz, a certa altura, que há uma vida cotidiana e uma vida a que chama superior. E acrescenta que chamá-la superior não é estupidez nenhuma “parce que c’est la vie avec la pensée”. No famoso ensaio La défaite de la pensée, Alain Finkelkraut cita essa passagem como exemplo de tudo o que perdemos e de tudo o que mudamos dos anos 60 para hoje. O exemplo é feliz. Só que não é só esse diálogo, nem sequer essa seqüência. É todo o filme. Vivre sa vie é um filme superior, exatamente na mesma acepção. “Et c’est pas bête de le dire. Et c’est pas bête de le dire.” |
2009 – Foco |