VIAGEM À ITÁLIA, Roberto Rossellini, 1954 por João Bénard da Costa Fim de
Outubro ou princípio de Novembro de 1955. Eu tinha 20 anos, ainda não
conhecia ninguém do grupo que um ano mais tarde formou o CCC da JUC. Também
não lia os Cahiers du Cinéma, que nem
de nome era dos meus ouvidos. Desde 1950 - ano da estréia de Stromboli em Portugal - que me andavam
a dizer que Rossellini perdera as qualidades iniciais (essas de Roma, città aperta, que tanto me
fizeram chorar quando eu ainda andava de calções) ao deixar-se apanhar pelas
saias de Ingrid Bergman. Deus Onipotente não perdoara aos adúlteros. O pecado
só lhes tinha feito mal. Ele, já nem era neo-realista, já nem era nada. Ela,
uma sombra triste do que fora. Verdade ou
conseqüência, nem Stromboli, aos 15
anos, nem Europa ‘51, aos 18 (com o
Tucho) me deixaram - ai de mim! - marcas duráveis. Só muito mais tarde abri
os olhinhos. Nem sei por que fui ao Éden, numa tarde de Outono, em que havia
muita luz e fazia muito sol. Certamente foi mais por fidelidade a Ingrid
Bergman (e talvez a George Sanders) do que a Rossellini. Mas fiquei colado à
cadeira. No fim, no milagre, desatei a chorar. Os meus companheiros (melhor,
as minhas companheiras) desataram a rir. Do filme e de mim. Como era
possível, João? Ainda hoje me espanto como foi possível, João. Não foi a
carne nem o sangue quem mo levaram. Mas algum Deus que está no céu. Aceito
que o propriamente dito. Disse da
minha justiça, à esquerda e à direita. Nem um eco. À esquerda diziam-me que
era coisa de católico, nos dias mais beatos. À direita, que era coisa de
neo-realista, nos dias mais estúpidos. A esquerda tinha mais razão do que a
direita. Em coisas de fundo, acontece. Demorou um
ano - já disse - a encontrar gente (católica gente) que sentira o mesmo que
eu. Ela levou-me a ler um número
célebre dos Cahiers,
seis meses anterior à minha visão, Quando, em
Abril de 1958, revi o filme no Jardim-Cinema, 26ª sessão do CCC, já éramos
um grupo a defender a genialidade da obra. E um bonito texto do Pedro Tamen -
sempre muito pedagógico e sempre a fugir dos provocadores - converteu mais
incrédulos do que o próprio filme: “Depois, há um milagre que não sabemos se
o foi (um paralítico que corre brandindo as muletas) e outro que, esse fim,
sabemos que foi: duas pessoas descobrem-se no mais dentro, no mais fundo,
fundem-se, são finalmente capazes de dizer que sim e que se amam, que sim,
que sim, que se amam”. Em 1958, já os Cahiers
du Cinéma colocavam Viaggio in
Italia no terceiro lugar da lista dos “melhores filmes da nossa vida”,
depois de Sunrise de Murnau e de La règle du jeu de Renoir. Com o
tempo, essa posição vanguardista e elitista deixou de o ser. Hoje, já
ninguém se escandaliza com nada. Viaggio
in Italia é pacificamente aceite entre as glórias da nossa terra (a terra
do cinema) e, de cada vez que o programo, a sala esgota. Não há gato nem cão
que queira ter voto na matéria que ouse sequer uma reticência. Juro pela
unanimidade crítica das cinco estrelas se for reposto no Ávila. Mas quem vê
caras não vê corações. A não ser que se chame Roberto Rossellini e há mais de
dezoito anos que ninguém se chama assim. Viaggio in Italia, para
quem nunca o tenha visto, o que é? Como Sunrise
de Murnau, como O Convento de
Oliveira, como Lucky Star de
Borzage ou como Os Contos da Lua Vaga
de Mizoguchi, é a história da separação e da reconciliação de um casal. O
casal Joyce, casal inglês de meia-idade (trinta e muitos, quarenta e poucos)
bem instalado na vida, que vem à Itália vender uma propriedade que herdara de
um tio chamado Homer (Joyce e Homero podem ser nomes casuais, podem não o
ser). Casal são-no, porque são casados. Casal não o são, porque estão razoavelmente
fartos um do outro. A viagem - rumo a Nápoles e nos arredores de Nápoles -
dura sete dias (número mágico). Alex, o marido (George Sanders), namora por
aqui e por ali, engata (ou é engatado) por uma pega, aborrece-se de morte.
Katherine, a mulher (Ingrid Bergman) faz muito turismo: Museu Arqueológico de
Nápoles, ruínas de Cuma (antro da Sibila), Templo de Apolo, Vesúvio, Pompéia,
a solfatara de Pozzuoli. Recorda um
poeta que a amou e morreu novo e tuberculoso, finge ciúmes do marido,
farta-se com ele e dele. Ao sétimo dia, a propósito de uma discussão absurda
sobre o Bentley deles, decidem divorciar-se logo que voltem à Inglaterra.
Horas depois, o carro em que viajavam, muito calados, é forçado a parar
porque uma procissão atravessa a estrada. Saem, cada um de sua vez, para ver
o que se passa. A certa altura, a multidão desata a gritar “milagre” a
propósito do tal paralítico. Na confusão, cada um deles é empurrado em
direções opostas. Katherine chama pelo marido. Quando este a consegue
alcançar, abraçam-se e juram nunca mais se separar. Nem
Katherine nem Alex parecem pessoas muito interessantes. Nada lhes acontece de
muito particular. Qualquer pessoa está
mesmo a ver que divorciar-se é o que podem fazer de melhor. Uma
procissão, o “ave” de Fátima e os dois nos braços um do outro a jurar amor
eterno. Milagre da Virgem que protege o santo matrimônio? Quem nunca tinha
visto e só isto ler, percebe facilmente as reações da época. Só que
dizer isto ou não dizer nada é praticamente a mesma coisa. Não
porque a história não seja isto,
mas porque sob isto, ao lado disto, ou sobre isto (e nenhuma das preposições é boa) se passa tudo o que
é essencial e não é traduzível em palavras. Não vou
citar nenhum exemplo dos mais célebres, como a perturbação de Katherine face
aos nus masculinos do Museu de Nápoles, o passeio solitário dela ao Templo de
Apolo, a “ionização” na solfatara,
com o fumo e o cheiro a sufocá-la, o esqueleto visto nas catacumbas, a
descoberta, durante as escavações em Pompéia, dos corpos calcinados de um
casal abraçado, há dois mil anos abraçados. Não vou falar da confusão das
ruas de Nápoles ou de Capri, das mulheres grávidas que se cruzam
constantemente com Katherine, das zaragatas conjugais a que assistem e que
tanto chocam reservados ingleses. Vou
referir-me apenas à seqüência inicial, quando, no Bentley, Katherine e Alex
se dirigem para Nápoles. Primeiro, um diálogo, pedagogicamente concebido, que
nos dá todas as informações úteis: quem são eles, onde se dirigem, o que
vieram fazer à Itália. Depois, o marido adormece e percebemos que é a mulher
quem guia. O marido acorda e propõe à mulher trocar de lugar. Em vez do corte
e novo plano do carro com as novas posições, assistimos à troca toda, com
toda a minúcia. No segundo minuto do filme, segunda paragem: agora é uma
manada de bois que atravessa a estrada e os impede de prosseguir. Irritação
de Alex, que já comentara que as estradas em Itália são um perigo. Segue-se
uma bifurcação: uma seta indica Nápoles para a esquerda e Latina para a direita.
O carro vira à esquerda (já sabíamos que o destino era Nápoles), mas a câmera
vira-se para a direita, como se o outro caminho fosse o bom e eles o não
soubessem. Pouco depois, Katherine faz uma expressão de horror: “Que é isto? Sangue?” E Alex responde, irônico,
que foi só um mosquito
que se esborrachou no vidro.
Falam dos perigos da malária. Aparentemente,
nada se passou de particularmente
interessante. Mas, nesses cinco minutos de filme, quem for capaz de ver, viu
o essencial. A viagem é conduzida pela mulher, como sempre o será ao longo do
filme, porque é ela quem vê quase tudo o que o marido não vê, como é ela quem
o chama no final. Mas ela sem ele não existe. Por isso, ele tem de conduzir
também e tudo o que lhe acontece, depois, é tão fio condutor quanto o que lhe
acontece a ela. Em cada bifurcação, há sempre duas possibilidades. Seguir o
que está predeterminado implica deixar aberto o desconhecido. A qualquer
plano ou ordenação sobrepõe-se a desordem e o imprevisto: bois não querem
saber de Bentleys e podem parar - ou atrasar - uma viagem. Uma mancha de
sangue pode não ser uma tragédia mas pode não ser tão banal como parece. Na
vida não há símbolos, há sinais. A cada momento, cada sinal. E é a
acumulação de todos esses momentos e de todos esses sinais que, a cada
momento e a cada sinal, vai minando aquele homem e aquela mulher que parecem
fatalmente seguir numa outra direção (a ruptura) e não menos fatalmente estão
a seguir noutra (a redescoberta). Quando perdem o pé (o carro, a casa, a
direção, a estrada), tudo o que de vital e mortal se acumulou neles explode,
tão irracional e tão racionalmente, como a fé da multidão no milagre da
Virgem. E é essa explosão - essa erupção, essa ionização, se quisermos ficar
ao pé dalgumas imagens do filme - que os atira um para o outro, no mesmo
abraço dos cadáveres de Pompéia. Talvez que eles também - que sabemos nós? -
não estivessem a fazer amor, nem mesmo se amassem. Talvez que, surpreendidos
pela erupção do Vesúvio, se tivessem agarrado para não morrerem sós. Só que
dois corpos juntos, juntos mesmo, dois mil anos ou dois segundos, são o
milagre total. No Evangelho de Pseudo-Tomé há uma variante, mais profunda e
mais certeira, da conhecida passagem dos sinópticos em que se diz que a
verdadeira fé move montanhas. Em vez da passagem: “Se tiveres a verdadeira fé
e disseres àquela montanha move-te, a montanha mover-se-á”, diz-se: “Se um
homem e uma mulher viverem em verdadeira paz um com o outro e um deles disser
àquela montanha move-te, a montanha mover-se-á.” Em vez da fé, a caridade. É
o cerne do cinema de Rossellini. Nem eu nem
ninguém vos pode jurar que, regressados ao carro ou a casa, Alex e Katherine
não recomecem as quezílias. Mas o milagre aconteceu. Não é bom que o homem ou
a mulher estejam sós. Viaggio in Italia,
como disse Rohmer, é um drama com três personagens. O terceiro é Deus. E em Viaggio in Italia quem O não vir não
vê nada. É só um
filme? Precisamente. |
2009 – Foco |