NO QUARTO DA VANDA, Pedro Costa, 2000 por João Bénard da Costa Perto do final de No Quarto da Vanda (2000), há um dos planos de que eu mais gosto, o plano de uma velha cabo-verdiana, com uma miúda também de Cabo Verde. A
velha está sentada num quarto e a câmera “está sentada” atrás dela,
deixando-nos ver apenas o que está no campo de visão da velha. Em
seguida surge uma criança, que, depois de entrar e sair, detém-se na
soleira da porta, junto a uma bicicleta. A criança vira-se, então, para
nós (para a câmera e para a velha) e, apoiando-se ora num pé ora no
outro, faz balouçar a bicicleta, que, assim balouçada, buzina.
Descobrindo o efeito sonoro do movimento, a criança repete-o um
sem-número de vezes, sempre de costas voltadas para a rua e sempre a
olhar para a velha. Esta não esboça a menor reação ao jogo da miúda,
mas, embora não lhe vejamos o olhar, sabemos que está com toda a atenção
nela. Atenção que, de certo modo, é devolvida, pois a brincadeira da
criança, sendo também uma brincadeira solitária, é uma brincadeira para a
velha, ou uma brincadeira com a velha. Nem uma nem outra dizem uma só
palavra, a velha sempre imóvel e a miúda repetindo sempre o mesmo
movimento. Nesse filme de longuíssimos planos, esse é um dos planos que
mais dura. Nesse filme de rituais, esse é um dos planos mais
ritualísticos. Nesse filme de mistérios, esse é um dos planos mais
misteriosos. Nunca
até esse momento - pelo menos ao que julgo, só com duas visões do filme
- essas personagens nos foram mostradas. Nunca mais as voltaremos a
ver. Pode ser que sejam avó e neta, pode ser que sejam, como todos são,
vizinhas nesse esventado bairro das Fontainhas. A velha - já o disse -
não tem reações. A criança está manifestamente divertida com a sua
brincadeira, mas, a partir de certa altura, um estranhíssimo mal-estar
começa a dominar a situação e há um crescente peso letal no que vemos, o
que nunca varia. Abruptamente
(quase todos os cortes desse filme são abruptos) Pedro Costa corta, e
vemos, numa bandeja rodeada por moedas e uma folha da funerária da Venda
Nova com alguns dizeres, como que uma fatura. Esse, pelo contrário, é
um plano brevíssimo, que nem nos dá tempo de ler o que está na folha.
Mas, sem nenhuma pista para isso nem indicação em que me apóie, dei por
mim a “inventar” uma história, que não está no filme. Alguém morreu
naquela casa, talvez o marido da velha, talvez o avô da criança. Atrás
da velha, pode bem estar um cadáver ou um caixão, que a criança vê, mas
nós não vemos. A concentração da velha vem da sua súbita solidão, apenas
com aquela criança, de quem, a partir desse momento, é a única proteção
e a única guardiã (um pouco como a avó de Vanda e de Zita, essa avó por
alma de quem Zita jura e de quem as duas tanto se lembram). A
brincadeira da criança é a sua resposta à morte, o seu modo de chamar a
avó à vida. O som da bicicleta é um dobre de finados e um toque de
alvorada, um modo de esconjurar fantasmas numa casa povoada por eles.
Pouco depois (creio que é o terceiro plano depois desse) Pango dirá
(após um dos mais sublimes grandes planos de Vanda): “morar em casas
fantasmas que outras pessoas deixaram. Estive em casas que nem uma bruxa
queria lá morar. Mas também estive em casas que valiam a pena. Foram
casas que as pessoas abandonaram, mas, se estivesse lá uma pessoa de
bem, eles até nem mandavam abaixo. Foi assim... casa atrás de casa”.
Depois de um longo silêncio, em que, no escuro da imagem, os contornos
se tornam mais nítidos, o “Nhurro” (como Vanda também lhe chama), de
quem vimos, muito antes, a única lágrima do filme, acrescenta: “Já
paguei mais pelas coisas que não fiz do que pelas coisas que fiz”.
Segue-se o plano do gato, o plano mais desmedidamente surreal de um
filme que também habita nessa dimensão, ou sobretudo habita nessa
dimensão, tendo em vista que nada é o que parece e nada aparece que seja
só o que é. Lembrei-me, então (volto ao plano da bicicleta), da Casa de Lava
(1994), segundo longa-metragem de Pedro Costa, quase todo passado, se
bem se lembram, em Cabo Verde e entre cabo-verdianos. Esse filme também é
o exterior do interior que Casa de Lava é, ou o interior do exterior que Casa de Lava
é. Pessoalmente, para alguém mais conhecedor da cultura cabo-verdiana, o
balançar ritmado da miúda poderá ser, mais expressamente, o que de
forma obscura entrevi nele. Ou não. As visões mudam, conforme se está
dentro ou se está fora, e No Quarto da Vanda (a não ser no quarto
de Vanda propriamente dito, no quarto das meninas e nalguns declarados
exteriores) nunca sabemos ao certo se é dentro ou fora que estamos.
Podem ser casas, ruínas de casas, caminhos entre casas, relento ou
abrigo. Fora ou dentro, quase nunca se está certo, quase nunca é certo. O
espaço, bem como o tempo, perdeu fronteiras no bairro e para as pessoas
dele. Antigamente, sabemo-lo por Vanda e por Zita, não era assim.
Ninguém sabia que Geny vendia droga ou onde a vendia. Mas agora
lembro-me que também me recordei de Geny ao ver a velha cabo-verdiana,
essa Geny, máscara impressionantíssima, que só vemos no princípio do
filme e bem pode ser - ou não ser - a que morrera na ambulância, quando o
filho lhe negou o dinheiro para a droga, a Geny que um dia estava e no
outro dia já não estava, como quase tudo, ou quase todos ali. Lembrei-me
também - estou ainda no plano da bicicleta - de um texto admirável que
Pedro Costa escreveu, há muitos anos, para um catálogo da
Gulbenkian-Cinemateca, sobre o último plano da seqüência em que, em Terra dos Faraós, a rainha Nailla morre para salvar do veneno de uma
cobra o seu filho, o príncipe Zanin. Pedro Costa escreveu, então: “Tudo
o que se passa nesse extraordinário plano não pode ser dito. Ele não é a
imagem do filme Terra dos Faraós, mas todo o filme está contido
nele. A pressão do Tempo, a Morte no plano, no filme, explode-nos na
cara (...) Não há remédio; não podemos deixar de ver. Deve haver um
limite para além do qual a imagem estática, frontal, ascética, torna-se
insuportável e esse traço invisível, essa ferida, jamais poderemos
deixar de a ver”. Mutatis mutandis, essas palavras são premonitórias para o plano da miudinha com a bicicleta em No Quarto da Vanda. Esse plano é por igual insuportável, num filme que também é um “longo pesadelo”, como Terra dos Faraós
foi para Pedro Costa, num filme que também é “um filme negro, sufocante
e perdido desde o princípio. Só lá poderemos entrar perdidos também”. Não
é só esse plano, a que por obscuras razões fiquei tão preso, que é
insuportável. Todo o filme o é, desde que as sombras de Vanda e Zita
formam o écran logo no primeiro plano do filme, quando se ouvem
as primeiras tosses e se vêem as primeiras moscas, e se atinge o
primeiro clímax, “que nome tão feio”. Além disso, houve a moça que matou
o filho por um conto e quinhentos, certinho. Quando digo insuportável,
não o digo no sentido que dará consolo aos aflitos, às almas sensíveis
que não são capazes de matar uma galinha, mas são capazes de comê-la, a
que se refere Sophia num poema. Digo-o para me referir a um filme que
está para além do limite do que se pode ver, mas que jamais podemos
deixar de ver. E “a imagem só tem uma salvação: tornar-se criadora ou
destruidora”. Quando a imagem se arremessa como se arremessa nesse
filme, falar de criação ou destruição deixa de ser dilemático ou muito
menos antinômico. Por
que é que - por exemplo - os planos regressam tantas vezes muito depois
de começados? Penso no plano da primeira transação (ou devia chamar-lhe
transfusão?) entre o negro e o russo, que começa, quase logo no início
do filme, em torno de falsos pretextos de ajudas domésticas (ninguém
fala com ninguém, ninguém ouve ninguém, ambos sabem a que vieram e a que
foram, “Deus Nosso Senhor nos ajude”) e termina, lá bastante para o
meio, quando o russo já se “orientou” - que nome tão bonito. E o russo
sai, sem saber já de que terra é, desorientado nessa desorientação. Porque
é que, por exemplo, entramos e saímos tantas vezes no quarto de Vanda
(estamos lá muito tempo, mas não todo o tempo) nesse quarto onde ela
está só, ou com a irmã, ou com o desamparado rapaz das flores, ou com
Pango? Há um limite? Há, mas não sabemos qual é e nunca me pareceu que
fosse quando ele se atinge que Pedro Costa sai de lá para percorrer
outros espaços e outros tempos do bairro. A Pango, Vanda dirá que ele
devia ter batido à porta, pois ela podia estar “descomposta”. Alguma vez
a vemos ou vimos “composta”, qualquer que seja o sentido que a palavra
possa ter? Já
o disse num outro texto. Não fiquei a amar Vanda. Com duas visões, o
meu amor vai mais para Zita, mulher às vezes quase botticelliana, sempre
de negro vestida, ou para o Muletas, tão triste, tão triste, com aquela
história da D. Rosa do 7º andar, que lhe espetou com dois iogurtes, em
vez do dinheiro que ele queria. “Foda-se. Dois iogurtes. Fiquei fodido.
Desci por aí abaixo e só pedia a Deus que os iogurtes fossem de
morango.” Já antes tínhamos ouvido histórias horríveis, como a da menina
“assim, bonitinha, que matou a filha”, ou como a história dos caldos
Knorr, ou como a da Nossa Senhora de Fátima. Todavia, nenhuma mais
bonita (“bonita” e “horrível”, que não são adjetivos que aqui se
oponham) do que essa dos iogurtes, que depois vai desembocar no melro
dourado. Há também a história de Pango, o mais doce de todos, o que
afinal bateu mesmo à porta, “com a pouca educação que o meu pai me deu”.
E aquele que era “teimoso, mas asseadinho?”, esse russo, sempre sem
eira nem beira, perdido por lá, como que vindo de um filme de Nicholas
Ray? Vanda, vai-me demorar mais tempo a amar, mas como dizer “não” a
quem a todos diz “sim”, àquela que tem os mais belos planos do filme e,
sempre ou quase sempre, a lista das páginas amarelas ao colo, tão
incandescente quanto a da luz das “chinesas” no escuro, quanto a da
prata que há por todas as gavetas, pontuação luminosíssima do filme? Aqui
obrigo-me a repetir-me. É nessa lista - único livro do filme - que
Vanda guarda a droga. É uma lista sórdida, com uma presença obscena, na
sua imensa fealdade, mas é simultaneamente (e não me perguntem o porquê)
o livro de horas, o texto sagrado, Antigo e Novo Testamento de uma
revelação por haver. É nela que os extremos se tocam, ou são tangíveis
os extremos, se, como os limites, os houver. Por que Vanda, que quase nunca sai do quarto [mas sai para aquele plano com os arbustos, o que mais ecoa O Sangue (1989) de outrora], que quase nunca sai da cama, não é uma personagem extrema? Prestem
toda a atenção ao diálogo dela com Pango. Para o doce Pango, aquela
vida “é a vida que a gente é obrigada a ter. Parece que é já um destino,
é um traço”. Mas Vanda pergunta-lhe - “Achas?” - e repete o que
começara por afirmar: “É a vida que a gente quer, acho eu”. No plano
seguinte, o mandarim está nas mãos do russo. Vanda já saiu, porque
depois de ouvir a confissão de Pango, que saiu de casa para não fazer
mais mal à mãe, “não agüentou ouvir mais nada”. Nesse momento, e apenas
nesse momento, foi ela quem marcou o limite, o extremo. E, se nos
cemitérios ecológicos se proíbem flores que não sejam artificiais (e o
plano do cemitério de Carnide é o único plano não filmado nas
Fontainhas), no túmulo que o quarto de Vanda também é, ficam as flores
que os cemitérios não recebem, as flores que se levam aos vivos e se
levam dos mortos. Essas flores fundem-se com as páginas amarelas (ou com
a outra lista, azul, que jamais é aberta) na mesma liturgia
“fantomática” e sensual. Perdi-me
no tempo, como o filme também se perde, ao vagar da sua alucinante
montagem. No entanto, não me queria perder no espaço, prometi que
falaria dos interiores e exteriores, do dentro e do fora. Reparem
naqueles planos da venda das couves. Quem é que está dentro, quem é que
está fora? “Dona, quer alface ou couve?” Estamos na casa, ou fora da
casa, como em tantas outras situações? Nunca se sabe bem. Porque todas
as casas tombam e já são ou resto delas ou não elas, porque as ruas do
bairro casas são também, porque as pessoas já não se abrigam e num canto
qualquer se injetam ou procuram as veias do pescoço, como quando
nenhuma outra veia existe já furável, nesse plano que tem a sacralidade
de um ecce homo. Há casas que se tapam com tabiques de várias
cores, outras que são comidas por uma escavadora amarela, que parece um
bicho pré-histórico e, quando acaba, fica “de olho vidrado” a olhar o
que já consumiu. Casas há que se fecham todas para o ritual da droga,
mas lá dentro bruxuleiam as luzes mais exteriores. E quem se abriga sai
do abrigo como nele entrou, enquanto a própria idéia do “dentro” deixa
de fazer sentido, a não ser, sempre, sempre, no quarto de Vanda, ilha
cercada de fora por todos os lados, esburacada pelas “bombas”. Do
exterior, só temos a certeza no plano final, em que um resto de casa
parece um capitel perdido de coluna grega, ou num plano - de todos o
mais “inadjetivável” - em que, escurecida toda a imagem, um vulto
ascende ao alto de um montículo, como se um plano de Murnau viesse anoutar
(isso se diz?) o precedente grande plano “esfumado” de Vanda e o plano
seguinte, em que lhe começamos por ver a orelha e em que o rosto dela
tem o rigor dos Cristos de Mantegna ou a dissolução dos Cristos de
Holbein. Mas
é dentro ou fora que está o nº 181, do espaço junto ao qual se compram
colheres de prata por 150 escudos? Mas foi dentro ou fora que Vanda e
Zita tiveram uma “infância fixe”? Mas é dentro ou fora que há aquele
plano das florzinhas amarelas e do jornal velho, perdido de azul? Mas é
dentro ou fora que os espaços se marcam com cruzes amarelas, como as
casas dos pestíferos, noutras idades médias, ou como as casas dos
judeus, noutras idades novas? Qual é o espaço das lontras no écran da televisão ou qual é o espaço da mãe, no outro canto do plano? Volto
ao texto antigo de Pedro Costa: “O Tempo e o Espaço, tão saturados, tão
cheios de vazio e de tudo, entram em guerra”. E a salvação ou perdição
da imagem visual avolumam-se a uma dimensão ainda mais insuportável na
imagem sonora e no ruído mais cavo da escavadora final. Até o écran ficar todo negro e se ouvir, como do além, a música de György Kurtág. Do quarto da Vanda não se sai mais. Como já disse: o século XXI foi aberto com No Quarto da Vanda. “Não há remédio: não podemos deixar de ver”. “Jamais poderemos deixar de ver”. |
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