O TESTAMENTO DE DEUS, Jacques Tourneur, 1950 por João Bénard da Costa Não
há muitos pontos de contato entre John Ford e Jacques Tourneur, entre o
realizador que veio da Irlanda e o realizador que veio de França. John
Ford fixou-se na América em 1913, na esteira de um irmão (Francis Ford)
que lá começava a ser conhecido como ator. Jacques Tourneur chegou à
América em 1914, acompanhando o pai, realizador célebre sob o nome de
Maurice Tourneur. Mas, se Ford já filmava em 1917, Jacques Tourneur,
após um regresso à Europa, só em 1936 dirigiu um filme americano e só em
1939 começou a carreira de realizador em Hollywood. Nos
anos 40, associou-se, na RKO, a Val Lewton e daí nasceu uma série de
filmes, zombies ou de zombies, que, enquanto houver no mundo saudade
serão sempre relembrados. Cat People (1942), I Walked with a Zombie (1943), The Leopard Man (1943), Experiment Perilous (1944), Out of the Past (1947). Mas eu falei de saudade e ainda não acabei de falar de pretéritos imperfeitos. E se não há filme que me faça mais saudades do que Como Era Verde o Meu Vale (por isso, com ele começa este ciclo) muito muito perto está Stars in My Crown
(1950). Um filme que nem distribuído foi na Europa, um filme que em
Portugal só foi descoberto nesta mesma Gulbenkian, há vinte e cinco anos
(13 de Outubro de 1981), trinta e um anos depois da estréia. Joe
David Brown (alguém sabe quem é?) escrevera um romance, que a Metro
comprou para fazer um daqueles filmes de “encher”, a ser rodado em doze
dias, com um realizador pago à semana. Mas, quando Jacques Tourneur leu o
argumento, ficou tão delirante que se ofereceu para fazer o filme de
graça. À
primeira vista, não é um filme nada parecido com as panteras e os
leopardos dos filmes precedentes. À primeira vista (história contada por
uma criança, numa vilinha que também tinha um passado feliz) também com
um pastor protestante - Joel McCrea (em papel predominante) - parece
filme de verdes vales, descendente dos de Ford, como tantos houve. Mas, em cinema, geralmente, nada engana mais do que as primeiras vistas. Porque, se no filme de Ford o vale é o vale do passado, em Stars in My Crown
as estrelas brilham desde o início até ao fim. Há nuvens - muitas
nuvens negras, muita contaminação subterrânea - mas a magia é sempre
mais forte. Se
há um mundo harmônico - o mundo dos beijos à beira-rio, das canções
repetidas na igreja, do sacerdote que parece um pistoleiro e é tão bom a
rezar como a bater - há também a casa do negro, sempre ameaçado e quase
linchado, há a água envenenada nos poços e há mesmo uma cena de magia
propriamente dita, quando chega à vila a troupe de prestidigitadores. E
se John (Dean Stockwell) tanto a quer ver, tanto espera dessa noite
mágica, não é só medo ou fascínio a razão de tanto tremer e de tanta
palidez. É nessa noite de bruxas que o miúdo adoece e quase morre. O
mundo da morte pode também ser o mundo mágico. Grande
parte do filme é a história dessa doença, que mata uns e salva outros
sem razão, é a história do conflito entre a ciência, um tanto ou quanto
faustica e a religião um tanto quanto simplificada. “It’s all over. No, doctor, it’s just the beginning”. Tudo
se cruza e entrecruza neste filme tão assombrosamente belo, tudo está
de novo na esfera entre. Um dia aproximei-o - sei lá porquê - do mundo
também mágico de Garcia Marquez. Talvez porque em Stars in My Crown todas “as coisas têm vida própria e tudo está em saber despertar-lhes a alma”.
Realismo mágico? Seja. Mas, como nos maiores exemplos de realismo
(penso num certo Straub que mostrarei lá para diante) eu nunca hei de
saber se é a magia que torna tudo real ou se é o real que à temperatura
de Tourneur se torna mágico. Os forties americanos, que começaram com Como Era Verde o Meu Vale e acabaram com Stars in My Crown, são o exemplo mais acabado dessa contradição ou dessa fusão. |
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