GRITOS E SUSSURROS, Ingmar Bergman, 1972
por João Bénard da Costa
Ingmar Bergman afirmou que a idéia (ou melhor, a gênese) de Gritos e Sussurros partiu de uma simples imagem que, durante meses, o perseguiu sem cessar e sem cessar, continuada e obstinadamente, via por toda a parte: a imagem de três mulheres, todas vestidas de branco, que falavam umas com as outras em voz muito baixa, movendo-se numa sala toda encarnada.
Muitas obras de enorme complexidade partiram de imagens aparentemente tão simples como esta. Psicanalistas e semiólogos podem ter muito para dizer. Eu gosto mais de pensar que tudo se organiza em torno de qualquer coisa que nunca se explica (toda a explicação é sempre falsa) e que essa imagem, quando é o fio de uma obra como Gritos e Sussurros, está para ela como a “Sarabanda” da Suíte para violoncelo solo de Bach. Não percebemos bem porquê, mas quando entra o violoncelo, sabemos que desce o anjo da morte e que se eleva o anjo da ressurreição. Mas os tais psicanalistas podem gostar de saber que Bergman dedicou este filme à mãe, cujo nome de solteira era Karin Akerblon. Karin é, no filme, o nome da personagem interpretada por Ingrid Thulin, aquela que se mutila numa seqüência que ficou como “a pedra de escândalo” desta obra e que, à época, meses antes do 25 de Abril, foi parcialmente e perversamente cortada pela nossa censura. Mesmo quando o não foi, muitos críticos a acharam extremamente exibicionista e houve quem muito se chocasse com o sangue que Karin vai buscar ao “orifício maldito” até o levar ao “orifício nobre”. E quem adjetivou desse modo os orifícios, dizia também que o sangue passava nesse plano “de la jouissance vers la parole”.
É a única seqüência em que o sangue aparece neste filme. Nunca há sangue no personagem de Agnes, a irmã que morre, não há sequer sangue na seqüência em que o marido de Maria se tenta suicidar, cravando uma faca no corpo. Este filme de corpos e palavras, este filme de grandes planos, este filme de sons de grande plano, ou, muito mais simplesmente, este filme de Gritos e Sussurros, é um filme em que o horror se inscreve no vazio, na profundidade de campo desses planos geniais em que as três irmãs se movem ou se imobilizam na casa da sua infância, reunidas ali, muitos anos depois, pela agonia e morte de Agnes. Mas se o sangue jorra só do corpo de Karin, o décor é sempre encarnado (a tal imagem que obcecava Bergman), e de uma seqüência a outra, seja no tempo presente, seja para os regressos ao passado (que aqui dificilmente se podem chamar flashback) é em encarnado que a imagem dissolve, como se diz em linguagem cinematográfica, ou se solve como me parece que aqui se pode dizer. “Desde criança, sempre imaginei o interior da alma como uma membrana úmida, tingida de encarnado” disse Bergman como única explicação. E talvez o seja. Mas esse encarnado, cor da púrpura e da pompa, é aqui também cor de luto e do passado, cor do que perdemos e nunca mais podemos recuperar. Quem quiser, pode também pensar que é a cor do inferno.
De qualquer forma, esse encarnado é o fundo e a forma deste filme e é dele que nos vêm essas quatro mulheres, vestidas de branco ou de preto, de cores sombrias ou cores claríssimas, para, diversamente, nos mostrarem as suas diversas lágrimas e os seus diversos suspiros. E vêm nesses grandes planos tácteis, que são o segredo do último Bergman. Só a título de exemplo refiro a seqüência do reencontro entre Maria e o médico (seu antigo amante) e a descrição pormenorizada que faz da cara dela. Nunca atriz nenhuma, como essa genial Liv Ullmann, se deixou despir assim diante de uma câmera, sem tirar uma peça de roupa e sempre em grande plano. Um microscópio a atravessa e esse microscópio é tanto a imóvel câmara como as palavras meigamente terríveis ou terrivelmente meigas ditas por Erland Josephson.
Como em Benilde, este filme quase todo passado no interior de uma casa, sai dela no princípio e no fim. Depois do genérico, enquanto ouvimos sons como gotas de água e antes da entrada da Mazurka de Chopin, a câmara passeia-nos pelo jardim: a estátua, de costas, de uma mulher nua com uma harpa (“harpa de sangue” foi como Herberto Helder se referiu num belíssimo poema ao sexo da mulher); os raios de sol poente entre as folhagens; uma árvore enorme e antiqüíssima. Depois - e durante tanto tempo não há uma palavra - essa sucessão de relógios, de pêndulos, de ponteiros, como se através do tempo chegássemos até ao primeiro grande plano de uma personagem do filme: Agnes a dormir, com a cor da morte e da agonia, até que a grossa boca de Harriet Andersson se revolve num rictus de dor e num choro sem lágrimas. E os seus murmúrios fundem-se com as baladas do relógio, até que se levanta e escreve no diário com que acabará o filme: “é segunda feira de manhã e estou com dores. Minhas irmãs e Anna revezam-se a vigiar-me”. Nunca um corpo deu de tal forma a imagem da letalidade como esse corpo de Harriet Andersson, o mesmo que vinte anos antes, na obra de Bergman, servira para figurar o desejo de Monika, como tão recentemente vimos.
Depois vem a panorâmica sobre a casa das bonecas e, do fundo dessa infância, como mais tarde na seqüência da lanterna mágica, ou na “aparição” da mãe, solta-se uma dor tão terrível como a do corpo de Agnes, por isso mesmo tão impossível de aproximar e de tocar. No fim, na mais célebre seqüência do filme - a tão chamada “Pietá de Bergman” - nem Karin, nem Maria ousam responder ao tremendo apelo da morta: Fiquem comigo até que eu perca o medo, o horror. Nenhuma é capaz de lhe tocar, de tocar nesse mistério visível de uma morta que chora, entre o momento da morte e a sua descida à terra. Ninguém é capaz do contato físico. Ninguém, a não ser a fabulosa Anna, a criada, aquela que quase nunca fala e que, muito antes, dera o seu peito a Agnes, reconduzindo-a ao seio materno, única consolação possível, ou único abrigo possível, para a solidão que é nossa e que é delas. Por isso, já depois é quase obsceno o apelo de Maria a Karin para que lhe toque, para que a beije. O que para sempre se perdeu foi a encarnação, a fusão dos corpos. Disso, todas morrem como nós morremos. E isso torna esse final tão diverso da associação cinematográfica que mais facilmente ocorre: a ressurreição da protagonista de Ordet de Dreyer. Porque, em Dreyer, víamos a ressurreição da carne e aqui vemos só a agonia no horto. O que Agnes pede é o que Cristo pediu: Fiquem comigo esta noite, em que até o Pai parecia tê-lo abandonado. E só Anna foi capaz de ficar.
Foi ela também - ela, Anna - a única que ficou na casa depois de se terem ido embora todas, mortas ou vivas, com os fantasmas mortos (as imagens da mãe, a noite do vinho, do copo e da mutilação de Karin) ou vivos (os dois maridos). E, sozinha, Karin abre o diário de Agnes e lê a página em que esta recorda uma visita das irmãs e como foi bom estarem as quatro juntas, como nos velhos tempos. E regressamos então ao jardim, todas essas mulheres vestidas de branco, com brancos chapéus de sol, a passear, até se sentarem no balanço, que lentamente as imobiliza na infância e no passado. E na legenda final - novamente encarnada - Bergman diz-nos que desse modo acabaram as lágrimas e os suspiros.
Terão acabado mesmo? Pelo menos, ficam conosco e nunca conheci ninguém que conseguisse ver impassível este filme. Truffaut dizia que Gritos e Sussurros era um filme que começava como As Três Irmãs de Tchekov (“faz hoje um ano que a nossa mãe morreu”) e acabava como O Cerejal. Outros, lembraram-se de Strindberg. Por mim, este filme recorda-me sobretudo o poema de Jorge Sena da mesma ordem de grandeza: A Morte, o Espaço e a Eternidade. É o poema em que se diz que não para morrer fomos feitos, é o poema que melhor nos fala do terrível absurdo que estes gritos e sussurros são. Mas contra ele, ou eles, nada podemos fazer. Nenhum espaço nos arranca a eles, nenhuma eternidade nos compensa desta dor. E termino como José Blanc de Portugal terminou um dia uma crítica que escreveu a esse poema de Sena: “perante grandeza assim é forçoso calarmo-nos”. O silêncio é a única resposta possível, humana e nossa, ao som do violoncelo de Bach e à lágrima que corre dos olhos fechados de Harriet Andersson.
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