SINGULARIDADE DE UM CINEASTA PORTUGUÊS por João Bénard da Costa Na
arte do cinematógrafo, que conta apenas 113 anos, Manoel de Oliveira é o
primeiro criador a celebrar 100 anos, em atividade. Uma atividade
iniciada em 1929, há quase 80 anos, tinha Manoel de Oliveira apenas 20.
Foi nesse ano que começou a rodar Douro, Faina Fluvial
apresentado publicamente, em versão muda, a 21 de Setembro de 1931, no
mesmo dia em que morreu o nosso primeiro cineasta - Aurélio da Paz dos
Reis - e na mesma sala onde, muitos anos mais tarde, a então chamada
Cinemateca Nacional efetuou as suas primeiras sessões. Mas
a singularidade de Manoel de Oliveira vai muito para além da sua
extraordinária longevidade e da sua extraordinária criatividade. Manoel
de Oliveira é, indiscutivelmente, o mais célebre realizador português e
o reconhecimento da sua obra ultrapassa em muito as nossas fronteiras,
sendo, também indiscutivelmente, um dos nossos cinco ou seis criadores
mundialmente consagrados e sendo o nosso cineasta internacionalmente
mais famoso. Aqui,
atenção que os portugueses não costumam tratar bem aqueles que “ousaram
mais ser | que a outra gente” para citar um verso de Sophia.
Detratores, que lhe não faltam, como nunca faltaram em Portugal aos
poucos que tiveram ou têm a grandeza dele, objetarão que esse
reconhecimento internacional se reduz a um escasso número de
conhecedores, já que propriamente Oliveira não é uma celebridade
popular, não é Amália nem Cristiano Ronaldo. Não é também um ídolo
cinematográfico das multidões, como o foi Chaplin ou como o é Woody
Allen. Não o foi nem nunca pretendeu sê-lo. O
cinema, segundo uma frase célebre, é uma arte, mas é também uma
indústria. Em termos de indústria, Manoel de Oliveira não dirá nada a
ninguém. Para ele, o cinema sempre foi arte, como o foi para Bresson ou
como é para Jean-Marie Straub. É no domínio da arte do cinema, o único
que lhe interessa, que Oliveira é mundialmente reconhecido como um dos
maiores, para alguns até como o maior cineasta vivo e em atividade. Situação
paradoxal. Num país da Europa ocidental com a mais pequena produção e
com mais lentos começos cinematográficos, nada fazia prever, nesses
longínquos anos 20, que em Portugal surgiria um dos nomes maiores da
chamada sétima arte. Até ele, em Portugal, o cinema de ficção tinha sido
obra de estrangeiros ou estrangeirados e só na geração dele surgiram
homens com outras ambições. Leitão de Barros por exemplo, assinou os
seus melhores filmes à época em que Oliveira começou. Mas os outros
tornaram-se casos de memória, mesmo que de boa memória. Oliveira
ultrapassou os caminhos e já todos se tinham retirado ou tinham morrido
quando Oliveira alcançou fama mundial. Pacientemente, após muitas
interrupções e muitos anos de silêncio, aguardou a sua hora, que alguns,
como Bazin ou Langlois, previram nos anos 50 ou 60, mas que só chegou
aos festivais e às primeiras páginas da imprensa generalista ou
especializada nos anos 70, ao tempo da chamada “tetralogia dos amores
frustrados”, sobretudo com Amor de Perdição (1978) e Francisca (1981). O
milagre Oliveira começou quando o realizador tinha 70 ou mais anos,
começou quando a grande maioria dos grandes cineastas terminou a sua
obra. Algumas
características exteriores (interiores também, mas isso era outra
conversa que não cabe neste texto) apuseram-se ao nome de Oliveira:
filmes de enorme duração, filmes estáticos com a câmera fixa em planos
com o máximo de duração possível. A lenda não corresponde à realidade.
Das suas 30 longas-metragens, incluindo a que está a rodar neste
momento, só três (Amor de Perdição, Le soulier de satin e Vale Abraão) ultrapassam as três horas de duração. Se
a câmera, para ele, não é uma borboleta - voa aqui, voa acolá -, o
movimento e o tempo, na obra de Oliveira, são coisas muito diferentes e a
incessante movimentação das personagens é a ação que tanto o acusam de
não ter. Mas a arte do cinema não foi feita para se olhar, foi feita
para se ver, embora poucos saibam ver como Oliveira o sabe. Quem o
acompanhar não tem descanso nem parança, como ele próprio a não teve
desde os anos 80. Agustina
escreveu: “A turbulência das nossas reações humanas faz com que a
solidão nos escape e que o encontro com Manoel de Oliveira seja difícil.
Queremos sujeitá-lo a um padrão de vida, a uma seqüência de palpites
sobre a história das pessoas que não se coadunam com a obra dum artista
como ele. (...) a sua personalidade única parece-me fazer parte da
integral verdade da criação.” Não sei dizer melhor. Quer
Oliveira se debruce sobre o mistério da mulher, quer interrogue a nossa
história - história do país em que nasceu, história da humanidade que
inventou a arte - quer aborde as relações entre a literatura, o teatro, a
pintura e o cinema, o que predomina na sua obra singular é a palavra
visual, na sua própria expressão, a expressão que melhor me parece
marcar a densidade do que fez. Para
mim, a história da arte ou a arte da história nestes últimos dois
séculos, em Portugal, leva dois nomes: Pessoa e Oliveira. É esta a sua
verdade, é esta a sua grandeza. Singular? Singularíssima, como todas as
obras que não têm paralelo com nenhuma outra. Não a merecíamos. Mas tivemo-la e temo-la. E foi dita em português e foi vista de Portugal. (Lisboa, 28 de Novembro de 2008) |
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