NO SILÊNCIO DA NOITE, Nicholas Ray, 1950 por João
Bénard da Costa I was
born when she kissed me I died
when she left me I lived
a few weeks While
she loved me (poema
dito no filme por Dixon Steele [Humphrey Bogart]) “Sempre
achou que toda a gente o queria lixar. Na
verdade, ninguém o queria lixar. Mas quando alguém
acha que toda a gente o quer lixar, acaba sempre por
haver uma pessoa que faz esse papel.” (Rodney Amateau,
conselheiro técnico do filme, a
propósito de Nicholas Ray) Segundo e
último filme de Nicholas Ray para Humphrey Bogart e com Humphrey Bogart, In a Lonely Place é um dos cumes da
arte de Ray, umas das suas obras mais trágicas, mais excessivas e mais
confessionais. Ao longo de toda a vida, sempre que lhe fizeram a sacramental
pergunta sobre os filmes de que mais gostava, incluiu In a Lonely Place, a par com Rebel
Without a Cause e The Lusty Men.
Freqüentemente juntou-lhes They Live by Night e Johnny
Guitar. “Movie on the movies”, In a Lonely Place só singularmente se
inscreve nesse gênero, como só singularmente se inscreve no de filme negro
que também o é. No fundo, é um filme que escapa a qualquer categoria. “Feito de ambigüidades e silêncio” -
como escreve Eisenschitz - “está tão
longe das fórmulas de qualquer gênero como das afirmações sociológicas”. Ainda
estamos no genérico e já a imagem se fragmenta, com os olhos de Bogart
enquadrados no retrovisor de um carro, que avança a grande velocidade. Ao
primeiro sinal de stop percebemos que estamos em Hollywood e que Bogart é um
argumentista famoso (seqüência do diálogo com o casal do carro que se detém
ao lado do dele). Famoso, mas na mó de baixo, como a seqüência seguinte - no
famoso restaurante Paul - nos vai mostrar. Meia dúzia de apontamentos e
Hollywood anos 50 está dado: a menina do vestiário que têm uma história para
um filme; o agente; o velho ator Charlie Waterman, declamando Shakespeare. Há
novos ricos (Júnior, que troça do ator e lhe deita as cinzas no copo) e há a
raiva de Bogart contra esta nova gente, explodindo na segunda seqüência violenta
do filme. Antes, já tínhamos visto miúdos a pedir autógrafos e a tentar
distinguir nobody de somebody. Nessa
fabulosa seqüência, a identificação Bogart-Ray é claramente sublinhada. Como
Ray, Bogart diz que não faz filmes de que não gosta, que não faz filmes por
acaso, “just another picture”. E o noble prince, como lhe chama o ator,
admite os seus fracassos, mas não admite que gente sem talento se meta com
quem o tem ou teve. Se há nessa seqüência um assombroso retrato mitológico de
Bogart (os copos, aquelas mãos, a violência contida, a soberana arrogância)
há também um auto-retrato de Ray, mais até projetado na sua imagem futura do
que naquela que então tinha. Alguém se refere à personagem como a “um homem doente” e essa expressão
engloba-os a ambos. Dixon Steele é Bogart (e que Bogart!) mas é Ray, também. Dez anos
depois, Fereydoun Hoveyda numa crítica a Party
Girl (e num texto que Nick particularmente amou) dizia haver sempre “nos heróis de Ray, um sentimento de
inferioridade compensado por uma procura frenética de superioridade e domínio
sobre os outros (…) um forte sentimento de culpabilidade, uma ‘falha’ que os
personagens sentem como castigo e cuja responsabilidade acabam por atribuir
ao mundo inteiro”. Exemplificava com Mason no Bigger Than Life, com Dean no Rebel,
com Derek no Run for Cover, com
Robert Taylor no Party Girl. A lista
podia ser muito mais extensa. E “o
exemplo mais alucinante”, para citar a expressão do crítico, talvez não
seja Mason, mas precisamente Bogart em In
a Lonely Place. É porque
na dúvida de si próprio e porque se sente cercado na selva (na selva de
Hollywood, neste caso) que Boggie assume essa violência frenética que
o irá perder. Ao
princípio perde Mildred, a menina do vestiário que sonhava com grandezas e
que estava disposta (apesar das aparências) a vender-se ao primeiro. E o
filme dentro do filme surge na noite fatal no apartamento de Dixon. O filme
que ela lhe conta e Bogart já não ouve (nem nós ouvimos bem, porque à
narração dela se sobrepõe a voz off
de Bogart, a pensar como se pode ver livre daquilo) é o filme que vamos ver,
com pouquíssimas alterações. O “estúpido
argumento” contado ao argumentista é o argumento de In a Lonely Place num raccourci
dramaticamente prodigioso, porque nem nós nem ele (Bogart) lhe damos, na
altura, qualquer importância. A atenção
(nossa e dele) já está centrada na vizinha, que, ainda no pátio da casa,
vinda de fora do enquadramento, se interpõe entre os dois, de casaco claro,
mãos nos bolsos, atravessando-se. Vemo-la, depois, à janela, ouvindo os helps da pobre Mildred, demasiado
excitada com a sua própria narrativa. E assim surge do escuro e em claro,
Gloria Grahame. Impossível
aqui não recorrer ao confessionalismo. Sabe-se que os estúdios queriam para
esse papel Ginger Rogers e que Ray jogou tudo O encontro
dos protagonistas ocorre na esquadra da policia, sob o signo do falso amigo,
antigo camarada de armas, agora suspeitoso que Dixon tenha algo que ver com a
morte de Mildred (morte que, aliás, nunca será explicada no filme, numa
elipse significativa). Laurel volta as costas a Dixon e, nunca se dirigindo a
este (num plano prodigiosamente encenado) é, na verdade, sempre a Dixon que
se dirige: ao contrário do que este diz, não vestia um négligé na noite da véspera: referindo-se-lhe, comenta: “I like his face”. Há copos
de papel por onde se bebe café e uma imensa sujidade. Sujidade do décor que rima com a de quase todos os
personagens: o capitão da polícia, aparentando simpatia, mas já com convicção
feita; um amigo que desconfia; uma mulher que quer engatar um argumentista
célebre para deixar de ser atriz em low
budget pictures. O único personagem limpo, o único que confia, é o
violento Dixon, que acredita nos piropos de Laurel e no tom fraternal de Brub.
“She likes my face”, diz, contente
consigo próprio. Na manhã
seguinte, desenvolvem-se as pistas do amor e da traição. Laurel começa a
apaixonar-se por Dixon, mas isso não a impede de continuar a desconfiar dele
e de continuar a fazer jogo duplo com a polícia. Em
oposição - nessa vertiginosa oposição dos filmes de Ray - há o tão belo
personagem do agente, o único capaz de amar até ao fim Bogart. “My agent, my alibi”. Essa apresentação
corresponde profundamente a uma e outra coisa? Could be, como A partir
daí, décor e espaço, fundem-se e
dividem-se cada vez mais. Laurel vem viver para o apartamento de Dixon (o
plano da cama e das almofadas), mas muita coisa se passa fora do olhar de
Dixon, em off de Dixon. Muita coisa
se passa nas costas de Dixon, como aquele plano fabuloso sobre as costas nuas
de Gloria Grahame, em que a gorda massagista (numa relação mais que ambígua)
reforça a distância entre os dois. Há muitos
beijos, há diálogos prodigiosos (“I was
looking for someone for a long time. Now I know your name, where you live, and how you
look”). Mas o cerco aperta-se à roda de
um homem, ele também, apesar das aparências, “novo demais na terra”, dum homem cujo tremendous ego era apenas o reverso do amor imenso que tinha para
dar e jamais recebera. Outro stranger
here, destruído por quem é incapaz de reconhecer e acreditar. Soará
depois uma canção (“Never be my love,
till you”) e o till you fica a
ressoar muito tempo nesse “momento perfeito”, com o fabuloso beijo de Gloria
Grahame. Momento perfeito que se prolonga na seqüência da praia, no
piquenique a quatro, de noite, até Dixon descobrir que todos o traíram e
todos lhe deram o beijo de judas. Um dos
mais geniais momentos do cinema de Ray é a seqüência seguinte: o tão
vertiginoso quanto silencioso regresso da praia, naquela louca velocidade do
carro de Bogart. Laurel ainda esboça o gesto da oferta do cigarro, mas não tem
resposta. Ou tem-na: na agressão brutal ao outro automobilista, que mais
reforça o medo e a suspeita dela e mais tudo perde em total negrume com as
sobras a tomarem conta de tudo. Todo o barroquismo de Ray, toda a arte de
Ray, está nessa seqüência capital. Como está no seu desfecho. Fim dos travellings, chegada à casa, plano
fixo e Dixon a abrir a boca pela primeira vez: “I’ll take that cigarette now”. E, em grande plano, diz o poema
que serve de epígrafe a este texto e faz Laurel repeti-lo. Inadjetivável?
Precisamente. Mais
tarde, pode Laurel confidenciar à mulher do polícia que tem vergonha do que
sente. As palavras terríveis já foram ditas. “I love him but I’m afraid of him. He acts like a maniac”
(palavras que tanto se podem aplicar a Bogart como a Ray). A câmera avança
até um grande plano da cara dela e há o raccord
com o relógio. Já é só uma questão de tempo. Tempo da
inesquecível seqüência da toranja (a faca espetada): “Numa boa cena de amor nunca se deve falar de amor. Deve ser como
esta, assim, eu a preparar toranjas e tu, sentada aí, meio drogada, meio a
dormir”. O ator é o realizador, ou o realizador é o ator? Tempo do
café a subir, dos últimos beijos e das últimas mentiras. Tempo da prodigiosa conversa de Laurel com o
agente: “If you love him, you must
trust him, bad or good”. E só ele percebe as conseqüências horríveis da
mentira de Laurel, quando fingira aceitar casar com Dixon. Até ao fim, esse
fabuloso personagem selará essa confiança, mesmo depois de uma sova injusta,
de óculos partidos e olhos feridos, no mais belo dos apertos de mão, numa
casa de banho. Tempo de
um ator continuar a recitar Hamlet
e a chamar “sweet prince” a Bogart
e a beijar a mão da princess que
não era noble nem sweet. Tempo de
tudo se consumar, com desculpas e descobertas, como se não se tivesse tratado
de destruir um homem e a sua última possibilidade. À janela,
nesse permanente roupão debruado de pele, a mulher que dormia sem pijama,
Gloria Grahame, em grande plano, repete, de olhos rasos de lágrimas, os
últimos versos do poema: “I lived a few
weeks”. Chego ao
fim e reparo que quase me limitei a lembrar-me do filme. Tantas vezes isso me
acontece com Nick Ray. O que fica são as memórias dos planos, as memórias dos
diálogos, a memória da mise en scène,
a memória dos atores. E as saudades imensas de tudo isso, sempre a apetecer
ver outra vez, para perceber melhor como é feito, como é que se conseguiu e
sempre a perdemo-nos (ou a encontramo-nos) naqueles personagens, naquele décor de estátuas e fontes, de escadas
e estradas, de mar e de céu. Filme “entre a espada e a parede” como disse
Eisenschitz, a um passo do abismo, do caos? É verdade. Mas nisso mesmo
reside, como em todos os grandes filmes de Ray, o seu imenso fascínio. Uma só
falha, ou um só excesso e toda a estrutura se desmoronaria, de tal modo se
articula em torno do insólito, de tal modo são tão frágeis os seus alicerces. Mas nunca
há esse passo É muito
difícil estar assim, tão sozinho, no lugar do mais geral (Hollywood, dos
códigos e dos gêneros) e do mais pessoal (a história mais intima). Tão
difícil que é preciso ser-se genial para o conseguir. Quem não se convencer
disso com esta obra, nunca mais se convence. “Now cracks
a noble heart. Good night sweet prince / and flights of angels sing thee to
thy rest”. Não estou a inventar Shakespeare para cauções culturais. A frase está
no filme e é dita pelo velho ator, esse personagem tão belo como, cuja última
festa, também em In a Lonely Place se
interrompeu. |
2009 – Foco |