SEDUÇÃO DA CARNE, Luchino Visconti, 1954 por João Bénard da Costa Afinidades
entre o cinema e a ópera - duas artes do tempo, duas artes
“parasitárias”, duas “artes de acréscimo”, ou as duas artes que mais
tendem para a “obra de arte total”, sonhada por Wagner - têm sido
pressentidas, notadas ou sublinhadas por muitos e desde há muito. Ultimamente,
tem-se generalizado outra e mais equívoca forma de aproximação. Quem
fala da “morte do cinema” terá tanta razão ou tão pouca como quem fala
da “morte da ópera”. É verdade que, no caso desta última, nada de
radicalmente novo aconteceu desde a estréia de Capriccio de Richard Strauss em 1942 ou, magnanimamente, desde a de The Turn of the Screw de Benjamin Britten,
em 1954. Mas também é verdade que nunca, como hoje, tão vastas
audiências viram e ouviram ópera e, mesmo por um balúrdio, é difícil
conseguir um lugar para as temporadas dos principais teatros líricos do
mundo ou para os grandes festivais. Nunca a ópera foi tão cara, nunca se
pagou tanto aos seus intérpretes e nunca as lotações estiveram tão
esgotadas. Normalmente - com exceções que apenas confirmam a regra -
para se escutar e olhar um repertório escrito há mais de cem anos. Há
quem diga que o mesmo está a acontecer - ou vai acontecer - ao cinema.
Talvez este nunca mais tenha os seus Verdi ou Wagner, talvez o lote de
novos grandes filmes seja escasso, mas, num futuro não muito distante,
as salas encher-se-ão para rever periodicamente o que foi realizado na
idade heróica dele. A
hipótese parece-me aventurosa e pouco fundada, mas o simples fato de
ser ponderada demonstra mais uma das analogias entre os dois “reinos”:
quem o diz reconhece a ambos - cinema e ópera - uma aproximável
localização em paragens limiares e liminares, onde partilham a luz e as
sombras, a celebração da vida e a súplica da morte, a encenação da
nostalgia e o apelo a uma recôndita harmonia. Apesar
disto - ou por causa disto -, de cada vez que o cinema tomou a ópera
como texto, os resultados não foram brilhantes. Por um lado, são
raríssimos os exemplos de óperas escritas propositadamente para o
cinema. Que eu saiba há apenas três. The Robber Symphony, ópera e realização do alemão Friedrich Feher em Inglaterra, 1936; Give Us This Night, ópera do alemão Erich Wolfgang Korngold e realização do americano Alexander Hall, em Hollywood, 1936; e Os Canibais,
realização e ópera dos portugueses Manoel de Oliveira e João Paes, em
Portugal, 1988. Por outro lado, são igualmente raríssimos os exemplos
conseguidos de transposição para o cinema de uma ópera. Julgo que
somente Die verkaufte Braut (A Noiva Vendida, de Max Ophüls, 1932), The Tales of Hoffmann (Powell e Pressburger, 1951), Bluebeard’s Castle (Michael Powell, 1963), Trollflöjten (A Flauta Mágica, de Ingmar Bergman, 1974), Moses und Aron (Jean-Marie Straub e Danièle Huillet, 1974) ou Parsifal (Hans-Jürgen Syberberg, 1982) merecem ser retidas como exceção. Mas o filme-ópera, a ópera feita cinema ou o cinema feito ópera, não é nenhuma das obras citadas. É o Senso de Luchino Visconti (1954). Por isso - sobretudo, por isso -, é um dos filmes da minha vida. Na
ópera (Teatro La Fenice, de Veneza) começa o filme, situado na
Primavera e no Verão de 1866, durante os últimos meses de ocupação
austríaca do Veneto, pouco antes do Risorgimento lá chegar. Estamos no
palco e ouve-se e vê-se o final do ato III de Il Trovatore de Verdi. Ainda
corre o genérico, quando Leonora e Manrico, na varanda de Castellor,
cantam “l’onde de’ suoni mistici”, “gioie di casto amor”, primeiro sinal
para as paixões paroxísticas que vão explodir durante o filme. Pouco
depois - sempre no genérico - Ruiz vem avisar Manrico de que se preparam
para lhe queimar a mãe. Este arranca-se dos braços de Leonora e vem até
à boca da cena cantar o celebérrimo “Di quella pira”. Precisamente
nesse momento, a câmera, até aí fixa sobre o palco da ópera, acompanha-o
no seu movimento e, do ponto de vista dele, descobre-nos o teatro, da
platéia à geral, em amplos movimentos concêntricos. São eles que, no fim
do ato e coincidindo com os aplausos, conduzem essa representação a outra representação: a manifestação política das galerias contra o ocupante austríaco. Ópera só voltará a aparecer em Senso
alguns minutos depois, quando, acalmados os ânimos e presos alguns
manifestantes, começa o ato IV. Durante esse intervalo, conhecemos os
protagonistas: a condessa Livia Serpieri (Alida Valli) e o seu velho
marido (Heinz Moog); o marquês Roberto Ussoni (Massimo Girotti), primo
da condessa, seu platônico protegido e chefe dos patriotas italianos
(por ele e contra o marido, escolhera a condessa o abraço
revolucionário); o jovem e belo tenente Franz Mahler (Farley Granger)
que insulta os italianos, se recusa covardemente a aceitar o repto de
Ussoni para um duelo e, depois, o denuncia à polícia. Quando começa o ato IV de Il Trovatore,
Livia Serpieri chama o tenente ao seu camarote, para o tentar convencer
a deixar Roberto em paz. Mas, durante o breve diálogo com o oficial “de
quem falavam todas as senhoras de Veneza”, estabeleceu-se entre eles
outra espécie de corrente. No palco, lá muito, muito ao fundo, ao pé da
torre onde Manrico está preso, Leonora, disfarçada, canta que “In quest’
oscura notte ravvolta / Presso a te son io. E tu nol sai!”. Nem nós,
nem os protagonistas do filme lhe damos muita atenção. O primeiro plano
já pertence a Livia e Franz. É para nós e para eles que uma “oscura
notte ravvolta” vai começar. Nunca mais se ouve ópera no filme. Mas a ópera, o drama per musica,
vai começar quando Livia abandona o teatro e, sobretudo, quando volta a
encontrar o tenente, a um canto da Piazza di San Marco, onde fora
despedir-se do primo, condenado a um ano de exílio. E quando Franz
Mahler se oferece para a acompanhar pelas ruas de Veneza (oferta
recusada, recusa não aceita) principia a ouvir-se a verdadeira música
desta ópera: a Sétima Sinfonia de Bruckner (o adagio e o scherzo).
E começam os “duetos”, de Franz e Livia, ou as “árias” de cada um
deles. Não são cantadas. Mas não há termos mais adequados para o que
murmuram (“tu parli talmente piano”, diz três vezes Franz a Livia) ou
para o que gritam (os uivos de Livia, no final, clamando por Franz,
depois de o ter mandado para o pelotão de fuzilamento, em Verona). E
sempre o que os personagens dizem em-cantado é sustentado a Bruckner, e
sempre as vozes são tão inseparáveis dessa música como na ópera o são.
Depois de se ter visto Senso, nunca mais se pode ouvir a Sétima de Bruckner sem “sentir” que lhe falta essa dimensão de vozes. Depois de se ter visto Senso, é impossível pensar nas suas imagens sem “ouvir” Bruckner. Por isso, e num dos mais curiosos paradoxos a que a história da relação cinema-ópera deu lugar, a descendência de Senso
não é cinematográfica, mas operática. Se se quiser pensar numa
posteridade para este filme, ela não está em nenhum outro (nem sequer em
Morte a Venezia, onde Visconti tentou com a Quinta Sinfonia
de Mahler um efeito semelhante e muito mais célebre), mas nas
encenações de 1955 e 1956 com que o mesmo Visconti revolucionou todos os
caminhos da encenação operática neste século. A espantosa criação de
Alida Valli, no papel da condessa Livia Serpieri, só teve seqüência nas
da Mulher para quem Visconti fez essas encenações: Maria Callas. Em Senso, a voz e a imagem de Alida Valli preparam os caminhos para a voz e para a imagem de Callas. As ruas de Veneza (quem nunca viu Senso nunca viu Veneza), os celeiros de Lonedo (quem nunca viu Senso nunca viu Palladio), as praças de Verona (quem nunca viu Senso
nunca viu Sanmicheli) foram, em 1954, os palcos excessivos, exacerbados
e exorbitados para a mais fantomática presença da mais fantomática das
vozes. |
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