SARABANDA, Ingmar Bergman, 2004 por João Bénard da Costa 1. Apetecia-me começar este texto sobre o último
filme de Bergman comentando uma frase de Liv Ullmann que li algures: “Filmes
e pessoas não envelhecem da mesma maneira.” É tão certo. Mas, como os críticos
portugueses acentuam, quase invariavelmente, o retorno do mesmo Bergman como
um regresso da casa dos mortos (alguém que já tinha uma lápide em cima e
vibrante elogio fúnebre e que, de repente, reapareceu algo obscenamente,
quebrando a lousa por sua própria mão), reprimo o apetecimento. Se há coisa
que me apetece ainda menos é entrar em polêmicas, ao falar de um dos filmes
mais desmedidamente belos alguma vez feitos. O filme mais intenso, o filme
mais suave, dessa intensidade e dessa suavidade a que Julia Dufvenius (uma
das muitas imensas surpresas de Sarabanda)
se refere, quando, no princípio do seu primeiro diálogo (ou monólogo) com Liv
Ullmann, lhe fala do que o pai lhe exige para interpretar a sonata op. 25 de
Hindemith (Cena 2). Deixo, pois, essa conversa de tempos e de velhos,
para apenas reter dela o que na Cena 9 Liv Ullmann diz a Erland Josephson,
quando o compara a um personagem de um filme antigo. Erland Josephson reage à
notícia da tentativa de suicídio do filho (Börje Ahlstedt, que em tempos foi
o tio Carl de Fanny e Alexander)
com comentários de uma maldade desmedida. Desse filho que agoniza no
hospital, após tomar todos os comprimidos que tinha e não tinha (onde é que
eu já ouvi isto?), cortar os pulsos e a garganta, não crê na morte. “Quem
falhou tudo na vida, até no suicídio vai certamente falhar.” Ela não o
reconhece em tamanha crueldade. E usa então a comparação citada. Em que filme
estaria ela a pensar? É bem possível que num filme de Bergman, onde o Deus
Aranha teceu fios equivalentemente perversos. Mas se tudo neste filme de
Bergman reenvia a outros filmes de Bergman (quase se poderia citar a
filmografia completa), nenhum filme me pareceu menos um filme antigo, e
obviamente não estou a pensar no digital HD que não menosprezo mas também não
sobrevalorizo. Há muitos anos que não via um filme tão novo, um desses filmes
que parece reinventar tudo e onde tudo parece acontecer pela primeira vez. Deixem-me apenas que vos diga que não percebo que
se fale de um silêncio quebrado, 21 anos depois da estréia de Fanny e Alexander. É verdade que
Bergman disse, à época (1982), que não voltaria a filmar. Já o tinha dito
antes, muitas vezes, e quebrou a promessa. Como a quebrou, em 1983, com Depois do Ensaio e com O Rosto de Karin; em 1986, com Os Dois Bem-Aventurados, e com o
documentário sobre Fanny e Alexander;
em 1997, com Na Presença de um Palhaço;
em 2000, com Os Construtores de Imagens.
Foram filmes para a televisão e não para o cinema? Mas não foi esse também o
caso de quase todas as suas obras desde Gritos
e Sussurros, em 1972? Não foi esse o caso, nomeadamente, de Cenas de um Casamento, de que
alegadamente Sarabanda seria a
continuação? Bergman que o disse também o desdisse e não bastam nomes
idênticos para idênticos atores (Liv Ullmann/Marianne, Erland
Josephson/Johan) para concluir por essa solução (as filhas de então não se
chamavam Sara e Martha, como agora se chamam). Essa questão é irrelevante,
como é irrelevante o tempo do pousio, se acaso o foi. Prefiro passar à nova
música. 2. É verdade que nem sequer o é. O lugar central
ocupado pelo quarto andamento da quinta “Suíte para Violoncelo Solo”, de
Bach, já existira em Gritos e Sussurros,
para não falar da onipresença da segunda suíte na chamada “trilogia de Deus”.
Mas, desta vez, Sarabanda - Concerto grosso. Andamos pelo barroco,
quando a dança perdeu as conotações lascivas que levaram à sua proibição na
Espanha do século XVI, para se tornar uma vagarosa e solene dança
processional. No filme, conserva-se a lascívia (discretíssima, mas
perturbantíssima, na relação incestuosa entre Börje Ahlstedt - Henrik, o
filho de Erland Josephson - e Julia Dufvenius - Karin, a filha dele - com
quem o pai partilha a cama e a quem beija sofregamente na boca). E sem querer
insistir (até porque Bergman só é elíptico quando quer), para mim um exemplo
fulgurante de imagem lasciva é aquele plano sublime (só possível graças à
imagem digital) em que, no fim da Cena 6, Karin se vê sozinha no ecrã todo
branco, com o violoncelo entre as pernas, ponto luminoso perdido na
distância, parecendo surgida de um filme de Michael Powell. Sexta cena. Sex. Posso bem estar a delirar, mas
essa cena batizada “A Proposta”, passada entre um avô de 86 anos (a
propósito, Erland Josephson tinha 80 à data da rodagem, 86 era a idade de
Bergman) e uma neta de 19, é, sem dúvida, a mais erótica do filme. Toda
vestida de encarnado (da única vez que se veste assim, roubando a cor a Liv
Ullmann) cercada pelos sons altíssimos da 9ª de Bruckner, Karin, antes de
entrar no escritório do avô, controla cuidadosamente a aparência e vestes, e
avança depois, sem que ele a ouça, até o despertar com um beijo e uma vênia.
O avô lê-lhe então a carta da proposta (o convite do maestro russo para uma
carreira de solista) e oferece-se para lhe pagar os estudos e o violoncelo
digno de um Guarnerius. Como sempre, é mais um monólogo do que um diálogo e
pouco ou nada Karin responde à tentação altíssima. O avô despede-a, após a
conversa sobre Freud e os cigarros, a pretexto de muito cansaço e é então que
Karin tem essa autovisão, essa espécie de dissonância na composição da seqüência,
de que outros exemplos sumamente heterodoxos abundam durante o filme. Mas não me consigo despedir desta música sem citar
outra dessas dissonâncias, a mais brutal porque é a primeira. É a meio da
Cena 2, entre Liv Ullmann e Julia Dufvenius, quando esta conta àquela a sua
violenta cena com o pai. Subitamente, saímos do quadro e vemos (no que não é
um flashback) a dita cena intensamente física. Depois, a rapariga foge de
casa, em camisa de noite, percorrendo a floresta como a virgem da fonte, até
entrar na água escura de um pântano e desaparecer da imagem, sem que a câmera
se mexa. Ouvimo-la, então, em off, num uivo desmedido, até reaparecer no
plano. Jean-Michel Frodon, comentando essa cena, fala de morte e
ressurreição. E diz: “Nunca, talvez, se tenha mostrado esse duplo
acontecimento extremo - morte e ressurreição - de maneira tão poderosa. Nem
no cinema, nem no teatro, nem na pintura.” Tem razão. 3. “Concerto grosso para quatro instrumentos”. Atores
há cinco, mas quatro preenchem quase todo o filme. Um prólogo, um epílogo e
dez cenas. Mas nas cenas nunca estão mais do que duas personagens, exceto nas
dissonâncias aludidas. Mas há muitas outras personagens ausentes. E uma
há que, retomando uma designação antiga, eu poderia dizer, sem dizer nada que
não tenha sido já dito e redito, que é a “protagonista ausente” desta obra.
Falo de Anna, a mãe de Karin, a mulher de Henrik, que morreu de cancro dois
anos antes de o filme começar. Dela, temos recorrentemente, em casa do
marido, em casa do sogro, o retrato a preto e branco. Amou-a o marido, amou-a
a filha, amou-a o sogro e não parece que nenhum deles tenha amado alguma vez
mais alguém. Foi o “anjo” naquele “ninho de víboras”? Tudo e todos parecem
dizer que sim, única presença de amor feita, única presença feita para o
amor. Ela só parece ter estado de lado daquela origem que Erland Josephson
misteriosamente nomeia, quando comenta, na Cena 1, a beleza da paisagem que o
rodeia: “O mundo é pleno de belezas. Como deve ser bela a origem delas!” Ela
só parece assemelhar-se ao São João que repousa no colo de Cristo, na ceia
medieval da igreja da Cena 5 e que Liv Ullmann vem ver de perto, no fim dela,
única cena de onde o grande plano esteve ausente. Mas será verdade? Quando Henrik termina o seu
longo monólogo na cama com a filha (Cena 3) vemos-lhe o retrato em grande
plano. E há um breve efeito (outra vez o vídeo), em que os olhos do retrato
parecem disparar uma luz luciferina (um encarnado tão rápido, mas não mo
tirem) sobre a filha e o marido no leito conjugal. Muito depois (Cena 7), vem
a leitura da carta que Anna deixou ao marido, sobre a relação dele com a
filha. Essa carta é carta salvadora ou carta de perdição? Pelo menos, a
partir dela tudo se consome. Karin, que resistira à proposta do avô, não resiste
ao convite de Abbado, a sarabanda da Suíte não chega a ser tocada, e Henrik
suicida-se sem que a filha o saiba. E é depois (Cena 9) que surge a seqüência genial
da hora do lobo, Parecia que o filme não podia crescer mais? Mas há
ainda o epílogo. Como no prólogo, Liv Ullmann dirige-se à câmera (dirige-se a
nós) e, numa última dissonância, assistimos ao seu encontro com a filha catatônica,
que, por breves momentos, abre os olhos como que respondendo ao afago da mãe.
“E, pela primeira vez, nas nossas duas vidas, percebi, senti, que tinha
tocado na minha filha. Na minha criança.” O ecrã fundo
Mas a câmera pode o que o nosso olhar não pode. E
a câmera de Bergman pode mais que qualquer outra câmera, mesmo a de Griffith.
Neste filme, vai ainda mais longe. Ao acercar-se mais e mais dos quatro
rostos e das quatro vozes, para além dos corpos, dá-nos a ver almas.
Impossível? Não para esse gênio de todos os possíveis, chamado Ingmar
Bergman. |
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