O SANGUE, Pedro Costa, 1989
por João Bénard da Costa
De O Sangue se tem falado como de um
filme obscuro. Melhor seria falar de um filme escuro, nome do cão que quase
logo no princípio conhecemos. Alguma atenção - mas já estamos tão
desabituados que no-la peçam assim - dissipará as aparentes obscuridades do
filme. A mesma atenção só lhe reforça o lado escuro, que, neste caso nada tem
que ver com o lado negro. É escuro porque é noite - é quase sempre noite - e
é em noites destas que há sonhos e pesadelos e vem lá o lobo mau. De noite -
em noites dessas - não vemos as cores e por isso este filme - contra
quaisquer modas, modernismos ou pós-modernismos - só podia ser um filme a
preto e branco, ou a escuro e claro, no escuro tão escuro e no claro tão
claro da prodigiosa fotografia de Martin Schäfer.
Distraio-me por um bocado no cinema português (já volto) e se há filmes que O Sangue me fez vir à cabeça são obras
tão diversas como The Night of the
Hunter de Charles Laughton, La nuit
du carrefour de Jean Renoir ou Stars
in My Crown de Jacques Tourneur. Ogros e meninos, medos tão antigos,
névoas tão baixas. E Clara. Tão Clara como a branca das neves do filme de
Renoir (“pede-me coisas”). E o tio marcado na orelha como Mitchum nas mãos,
no filme de Laughton, e talvez como ele, ocultando a conciliação do murder e do love. Repare-se que chegou no Natal e diz que no Natal chegava
sempre, muito antes que Nino, que se lembrava de tudo, dele se lembrasse.
Muito antes do genérico, este filme é cortado de planos negros - planos
inteiramente escuros - que jamais são fondus.
É depois do primeiro deles que vemos Vicente em grande plano de frente para
nós e de frente para o pai (Canto e Castro). Por um breve instante ficam
assim, sem dizer nada. Até que o pai levanta o braço e nos dá a primeira
bofetada do filme, inesperada e rápida. Vicente não esboça um gesto de defesa
ou de fuga: “Faça de mim o que quiser”. Depois passamos aos ruídos
(trovoadas, ventos, motores) e aos sonhos e pesadelos de Nino, e das várias
outras crianças que nunca mais veremos e sonham os mesmos sonhos ou estão
dentro do mesmo sonho. A luz apaga-se e acende-se, como se acorda e adormece,
até que finalmente - em eco de bofetada inicial e quase provocando o mesmo
efeito de surpresa - surgem, muito brancas, as letras do genérico. Passou uma
eternidade. E dela vem, na escola, Clara, num fabuloso contra-luz. Passará
outra eternidade, até vermos a luz do dia.
Eram dois adolescentes e uma criança e se se voltasse ao cinema americano há
entre eles a mesma secreta aliança que havia entre as rebeldes de Ray. Mas
não são rebeldes, embora se separem do indissolúvel na noite do cemitério
quando roubam a Nino o segredo que não compartilham. E nessa divisão começa a
divisão deles, o percurso que no final os isolará, sem raízes, tão perdidos
do espaço como o estiveram daquele tempo.
Antes, muito antes, tentara Vicente suportar sozinho o peso do seu sangue
(seqüência da farmácia) quando procura ocultar de Clara a ferida da primeira
solidão. E só quando esta lhe agarra a mão - porventura o mais belo grande
plano do filme, ou o mais belo plano do filme - se lhe entrega com o pedido
de salvação, precedendo a noite do cemitério.
É a seqüência
mais onirizante do filme (durante ela, Nino dorme); é também a seqüência mais
elíptica, como se os dois tentassem redimir uma culpa oculta, sabendo já da
impossibilidade da mancha do corpo não alastrar. “Os sonhos existem mesmo?” E
a resposta é a árvore assombrada, a dívida reclamada, e as figuras de
substituição paterna (credores, tio) minando o incesto sangrento. O homem com
um grande termômetro no chapéu, sonhar e inventar são coisas muito diversas.
Não há mundos sem dívidas, como não há mundos sem culpas. Na noite mítica do
amor, Vicente e Clara descobrem-se sós e têm medo. Se ninguém será como eles,
tudo e todos existem para o mal. “Estás a tremer... Pede-me coisas... Mais
perto... Mais”. Depois só resta a névoa da festa, a profundidade de campo e a
posse por Clara do corpo de Vicente, enquanto um outro fio de sangue - ferida
do tio - os conduzirá para a cidade junto de bichos mais antigos e mais
famintos (as piranhas e as tartarugas do aquário, Isabel de Castro) que nos
ritos da magia negra ofuscam a magia escura dos juncos e dos pântanos e da
noite em que Nino
dormiu com a cabeça pousada no colo de Vicente e Clara. São os décors de Alphaville visitados pelos foragidos
da noite, em termos de cinema outra aliança secreta dos mundos de Ray e de
Godard, dos amantes assustados do primeiro plano de They Live by Night ao Rimbaud citado por Belmondo, junto ao mar,
no último plano de Pierrot le fou.
Morremos tanto pelo sangue que herdamos como pelo sangue que fizermos jorrar.
É uma obscura consciência disso aquela a que o filme de Pedro Costa introduz,
como se cada violação das regras ancestrais (em termos míticos e em termos de
cinema) assumisse a terrível responsabilidade do parricídio, sabendo-o
inelutável mas também fatal. Por isso este filme, repetindo o movimento do
aparelho dito circulatório, se detém perante as portas que abre tanto quanto ou
tanto como sobre as portas que fecha. É simultaneamente a afirmação da
impossibilidade de fuga e a proclamação da necessidade dela. Não há saídas
para frente, como não há saídas para trás. Mas se não fossem estas viagens,
esta não seria possível. É sobretudo a memória delas que este filme
bruxuleante cerca. Talvez com ele se feche o círculo mais secreto do nosso
imaginário. Talvez seja apenas um esboço de outras formas que ainda não
conhecemos.
Como em tempos escreveu Cristoven Paiva talvez não haja mais horizontes para
estas imagens do que as nossas pálpebras. “Glicínia iluminada pela noite / E
metade da minha solidão”. Só as pessoas muito antigas e as obras muito novas,
podem evocar assim o sangue fresco e fundo. E cortar a negro os corpos que
habitam.
VOLTAR
AO ÍNDICE
|