A SUPERFICIALIDADE DOS HOMENS
por João Bénard da Costa
Cento e um anos depois de ter nascido e trinta anos depois de ter morrido, Roberto Rossellini volta a Lisboa para uma retrospectiva integral.
Com ele me estreei neste ofício de programador, já lá vão mais de trinta e três anos. Rossellini veio então a Portugal e ao Grande Auditório da Fundação Calouste Gulbenkian, para a inauguração de um Ciclo que lhe foi dedicado (Novembro de 1973 a Janeiro de 1974). Com ele vieram Henri Langlois e Silvia d’Amico.
A 30 de Janeiro, começou, agora, a retrospectiva da Cinemateca. Rossellini e Langlois deixaram este mundo no mesmo ano de 1977. Langlois em Janeiro, Rossellini em Junho. Em carne e osso, só voltou Silvia d’Amico. Há trinta e três anos tinha ela 33, metade da vida que já leva. Nessa altura viajou pela primeira vez com Rossellini e pela primeira vez tinha sobre ela os focos da celebridade. Agora, a emoção do reencontro dominou-nos aos dois. Roma, città aperta, o filme com que inaugurou a retrospectiva de 73, voltou a inaugurar a de 2007, numa magnífica cópia restaurada pela Cineteca Nazionale de Roma, no ano passado. Foi uma escolha deliberada pois, para muitos, a sessão de 17 de Novembro de 1973, no Grande Auditório Gulbenkian hiper-esgotado, foi a mais memorável sessão de cinema jamais ocorrida em Portugal. Silvia d’Amico o disse também, nas palavras que no dia 30 dirigiu ao público da Cinemateca: “a maior ovação que, ao longo de toda a minha vida, ouvi numa sala de cinema”.
Mas se, em 73, Roma, città aperta era um filme proibido, que só devido à exceção Gulbenkian conseguiu aparecer por uma noite - uma noite só, e em versão original, sem legendas - hoje nenhuma “circunstância externa” vinha reforçar a passagem do filme, aliás, tantas vezes mostrado em sessões da Cinemateca. Mas se, em 73, o delírio da assistência era tanto uma homenagem ao gênio de Rossellini como o clamor por uma Lisboa aberta, na Lisboa fechada em que então vivíamos, agora a cidade está aberta há mais anos do que Roma o estava em 1973. Não foi a “mensagem política” (“mensagens são para se entregar pelo correio” disse Rossellini, como o disseram tantos outros) não foi o “fruto proibido”, o que levou a Cinemateca, em 2007, a ter também lotação esgotada.
Memórias de 73? É possível, até provável, mas só para maiores de quarenta e muitos anos, que não eram a maioria da assistência. Os outros foram levados pela lenda e pela aura não apenas do filme em si - que tantamente as merece - como pela dos eventos de 73, tão contados e recontados que acabaram também por fazer parte do nosso patrimônio.
Roma, hoje, faz parte da nossa história. Da minha, seguramente. Da de Silvia d’Amico, inegavelmente e como ela o disse! Mas também de tantos outros que, presentes ou não, na histórica noite de 1973, para sempre o associaram a um aviso da aproximação do 25 de Abril. Já agora aproveito para corrigir umas coisas que li e ouvi, de quem só as podia ter aprendido de mim. Não foi Rossellini quem profetizou, em Novembro de 73, que a madrugada dos cravos estava no horizonte. A premonição - ou previsão, como lhe queiram chamar - veio de Henri Langlois, que talvez estivesse em melhor posição para ver a turba (“o cinema mudo”, “o cinema mudo”, como repetiu) do que Rossellini, sozinho, naquele palco imenso, sem conseguir falar durante vinte minutos.
As repetições são coisas normalmente a evitar. Mas se, evidentemente, se não pode comparar a sessão de 1973 com esta de 2007, eu gostei de ter vivido as duas e de ter sentido, hoje, como ainda são fundos os ecos das emoções dos anos 40 ou dos anos 70. E, com a atenção de um mocho, segui cada olhar e cada palavra de Silvia d’Amico.
2. As memórias continuaram-se a desfolhar ou a desfolhar-me quando folheei o volumoso catálogo que a Cinemateca dedicou agora a Roberto Rossellini e ao seu cinema revelador.
Transcrições do Expresso da época (era o princípio do Expresso) e do Cinéfilo que também estava a começar, trouxeram-me à memória muitas coisas. Um almoço em Sintra, por exemplo.
Entre dezenas de pessoas, idas e vindas, houve tempo, ainda, já a tarde ia alta, para uma conversa-entrevista com Rossellini a responder a perguntas de muitos, “uns rapazes que pareciam um enxame de moscas à volta dele” (como agora os recordou Silvia d’Amico) “rapazes da minha idade”, alguns deles já passados a um mundo melhor. “Mundo melhor” aliás, que esteve bastante presente nessa entrevista, com Rossellini a distinguir o “contingente” do “essencial” e a certa altura a pegar o “boi pelos cornos”. “Falemos então de cristianismo”, disse ele a páginas tantas que, por sinal, são as paginas 82, 83 do catálogo agora editado.
E falou dos paradoxos do cristianismo italiano, a que chamou “malabarista”, “racionalista-irracionalista”, “demencial-inteligente”. A conversa levou-o até L’amore, o primeiro filme que realizou após a chamada “trilogia de guerra” (Roma, Paisà, Germania) e se estreou no Festival de Veneza de 1948. L’amore que coisa é?
3. L’amore, muito menos conhecido do que os seus precedentes, é um filme em dois episódios que aparentemente só estão ligados entre si por uma intérprete comum: a genialíssima Anna Magnani, uma das mulheres da vida de Rossellini, que a considerava, como Renoir, a maior atriz de cinema do seu tempo.
Anna Magnani já fora a protagonista de Roma, città aperta, embora uma protagonista que morre a meio do filme, que agora reparei que também é, de certo modo, um filme em episódios. Mas adiante, que a pior coisa que há é abrir portas para conversas que não há tempo para desenvolver. Em L’amore não é preciso para nada dizer “de certo modo”. São mesmo dois episódios.
A idéia inicial de Rossellini era filmar Anna Magnani a representar La voix humaine, peça de Jean Cocteau de 1930, em um ato e para uma só atriz. Quando terminou a rodagem (em 1947, ainda antes de Germania anno zero) verificou que tinha um filme de 35 minutos, duração impossível para uma exibição comercial. Pequeno demais para “filme de fundo”, grande demais para “complemento”. Decidiu assim rodar um outro filme, expressamente dedicado “à arte dramática de Anna Magnani”, baseado numa história que Fellini lhe contou. Una voce umana é o título do primeiro episódio. Il miracolo o título do segundo. L’amore ou “Due storie d’amore” o título escolhido para o conjunto.
Una voce umana, que já foi encenado de mil maneiras, que já serviu de base a uma ópera e a muitos filmes de televisão, é a historia de três conversas telefônicas entre uma mulher dos seus trinta e muitos, quarenta e poucos, que está sozinha em casa, com um homem que foi amante dela. Ele telefona-lhe para dizer que se vai casar com outra bastante mais nova, e nunca o vemos nem o ouvimos. Em cena - ou no filme, no plano - só a mulher (Anna Magnani), um cão, um telefone preto e uma enorme cama. Obviamente, é o que se chama um “papelão” para qualquer grande atriz. Só que não há exibicionismo nenhum, nem da vedeta, nem do realizador. Como escreveu Rudolph Thome (pg. 538 do tal catálogo) é um filme “à procura da alma”, “em que vemos não só o que faz uma pessoa, mas também o que nunca se pode ver: o que essa pessoa sente e pensa”. Mais do que comportamentos, filma-se o pensamento, o que parece impossível de filmar.
Já alguém disse que se falasse ao telefone com aquela mulher, mesmo sem a conhecer, não teria querido outra. Mas os homens são muito superficiais e até aquele que por três vezes lhe telefona e pelos vistos a conhece bem, a deixa e desaparece.
4. Se Una voce umana tem por detrás Cocteau e um texto célebre, Il miracolo foi uma invenção de Fellini que contou a Rossellini ter lido a história num grande romancista russo, mas não se lembrava qual. Uma aldeia paupérrima e uma mulher (Anna Magnani), guardadora de cabras, ainda mais paupérrima. Até porque todos a acham atrasada mental. Um dia, uma “visão”. Um magnífico barbudo (Fellini, que escrevera o argumento, fez esse papel) diz-lhe que é S. José. Ela acredita piamente, loucamente, que S. José desceu do céu para a visitar. O santo dá-lhe de beber, dá-lhe muito de beber. Ela diz que já não vê nada, só uma luz muito intensa e já não sente nada, só um grande calor. Desaperta os botões do vestido. Adormeceu. Acorda com uma das cabras a lamber-lhe a cara. De S. José, nem rasto.
Volta para a aldeia, conta a história do milagre e todos troçam dela. Melhor é quando, alguns meses mais tarde, descobre que está grávida. Como não conheceu homem, não duvida ser uma nova Maria que dará à luz um novo Jesus.
O filme acaba com o nascimento do menino, com ela sozinha, no alto de uma montanha, junto de uma capela. Nenhum romancista russo escreveu essa história. Fellini inventou-a, mas como ainda era muito novo e pouco conhecido, teve medo da superficialidade dos produtores e tapou-se com o russo imaginário.
5. Enganou-se. A “superficialidade dos homens” manifestou-se ainda mais do que em Una voce umana. Muito tempo antes de 'Je vous salue, Marie', o filme foi considerado uma blasfêmia. O Cardeal Spelmann, da América, ameaçou de excomunhão quem o visse.
Foi então que Rossellini lhe mandou um telegrama, a transcrever na íntegra um sermão de São Bernardino de Siena. Custou-lhe 1.000 dólares, o que em 48 era dinheiro.
Um camponês, uma criança e um cão. O camponês foi trabalhar, deixou a criança a dormir à sombra de uma árvore e o cão a guardá-la. Quando voltou, a criança estava morta com duas marcas de dentes bem visíveis na garganta. O cão tremia todo. Desvairado, o homem matou o cão. Mas, quando o corpo do animal caiu, ele descobriu assombrado que o cão esmagara uma enorme serpente, que matara a criança e o estava a matar a ele. O cão chamava-se Bonino. O camponês, arrependido, enterrou-o na cova de um rochedo, e escreveu: “Aqui jaz Bonino, morto pela superficialidade dos homens”.
Passaram-se séculos. Chegaram peregrinos, descobriram os ossos, e pensaram tratar-se de um mártir. Rezaram e sucederam-se milagres. Edificaram uma igreja dedicada a São Bonino. Veio muita gente de muitas partes e houve muitos mais milagres. Concluiu São Bernardino de Siena: “O que importa é a fé dos homens. Nada mais conta. O resto é a superficialidade dos homens”.
Não sei como reagiu o Cardeal. A superficialidade dos homens é tamanha...
(4 de Fevereiro de 2007)
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