ROSA DE AREIA, António Reis & Margarida Cordeiro, 1989

por João Bénard da Costa


O crepúsculo inicial ou a aurora final


Um filme


Le temps s’en va, le temps
s’en va, ma Dame;
Las! Le temps non, mais nous
nous en allons

Pierre de Ronsard


Em Berlim, Fevereiro de 1989, Rosa de Areia, o último filme de Margarida Cordeiro e António Reis, teve estréia mundial. Já estamos por demais habituados a estas primeiras núpcias de filmes portugueses no estrangeiro para que o fato choque alguém. Devia chocar, mas não choca. Também não chocará quando daqui a bastante tempo (um ano? dois? três?) Rosa de Areia for finalmente distribuído em Portugal, eventualmente, até, primeiro na televisão (primeira também - honra seja feita - a apostar no filme) e só depois numa sala de cinema. Continuará a não chocar se o público deixar a dita sala às moscas. E chocará um bocadinho - mas não muito, é fait divers - se uma douta comissão - como sucedeu com Ana - vier a declarar ex cathedra que o filme não tem qualidade. Um dia, depois, eu sei. Mas também sei que a longo prazo estaremos todos mortos. E para nos ressuscitar só fica o filme.


Não quero ser ave agourenta. Queiram alguns (não é preciso invocar o Santo Nome em vão) que as coisas se passem de modo diferente e de modo diferente se passarão. Já alguns, só alguns, quiseram que o filme existisse (RTP, Secretaria de Estado da Cultura, Fundação Calouste Gulbenkian) e o filme existe. Mas, para ser inteiramente sincero, não creio, não creio que se vá além disso, nem que o filme seja recebido, em Portugal, de modo diverso do que o foram Jaime, Trás-os-Montes, Ana, os três sublimes filmes anteriores de Margarida Cordeiro e António Reis.


Neste pessimismo só eles me não acompanham. Os grandes visionários podem ter dúvidas, podem ter muitas noites de agonia, mas a sua fé move montanhas. E já é muito dissonante que eu comece este texto com tanto pessimismo. Por isso, a ele não torno. Porque vos vou falar de uma das grandes obras fundadoras e fundamentais que o cinema já nos deu. Perante ela, acreditamos que tudo pode estar ainda no início, esse início donde nos falam António Reis e Margarida Cordeiro.


Pegando no epígrafo de Ronsard, só nós é que nos vamos. O tempo não, o tempo não, minha senhora.


Tratar por tu o universo


Por isso, em Rosa de Areia, o tempo pode ser nenhum (rigorosamente indefinido como em tantos planos acontece), pode ser a Idade Média, o século XV, o século XVI, ou pode ser o tempo futuro, o tempo de que Carl Sagan nos fala noutro plano do filme. Por isso, também o termo plano é pobre e particularmente desajustado. Dizer plano-seqüência (e, na verdade, o filme é a soma e súmula de 97 planos a que se costuma chamar assim) não me ajuda, nem ajuda a entender a prodigiosa construção do filme. Porque não há diferença de significação e de significado, entre um plano de segundos de uma seara ondulante, ou de um campo de flores às vezes pacificado, e uma seqüência de quatro ou cinco minutos que narra uma história: o porco executado ao abrigo de uma prescrição mosaica; o relato da imolação pelo fogo de centenas de camponeses esfomeados; a história do pai que ressuscitou dos mortos para dar de beber à filha um vinho feito de sol, de poeiras e de chuva.


Precisamente depois do episódio da execução do porco, precisamente depois do plano que a ele se segue - o mais erótico e críptico do filme - onde vemos os carrascos, de tronco nu, moles de músculos arrancados a uma revisitação cottafaviana do peplum italiano, a lavarem-se do sangue do animal, precisamente depois, dizia eu, voltamos a ver as Parcas que desde o início nos conduziram nesta peregrinação. Estão junto a rochas e montes, como saliências deles e recitam um texto védico que nos pergunta para onde vão as meias-luas, para onde se apressam as virgens de diferentes rostos, porque nunca param as águas, porque nunca descansa o vento, porque nunca descansa o espírito. Que relação obscura existe entre o episódio anterior e esse plano (e já expliquei quão mal utilizo esses termos)? Pode responder-se que existe uma relação poética, como se pode chamar poema cinematográfico a todo o filme. Mas a palavra ou a expressão só não é redutora se a entendermos etimologicamente (no sentido da poiésis) e nos esquecermos de qualquer conotação com as definições pasolinianas de “cinema-poesia”. Não há cinema mais direto, menos subjetivo (mesmo que se pense na “subjetividade livre” de Pasolini) do que o cinema de Margarida Cordeiro e António Reis. Jamais os autores penetram na alma dos seus personagens (se existem personagens e se têm alma) adotando a sua psicologia ou a sua língua, para continuar a seguir a teoria do autor de Teorema.


Essa penetração, mesmo entre eles, parece impossível. No final, uma voz em off pergunta ou insinua que “é preciso, talvez, escolher um fio, ao acaso”. Obtém como resposta (ou como continuidade) que “a idéia destas histórias é tua, e não sou eu que vou interferir nelas”. E as últimas palavras do filme, junto à terra nua que fora também (pelo ecrã da parede) sua imagem inicial, dizem “e, no entanto, será que houve, jamais, alguma coisa, nalgum lugar, nalgum tempo?”.


Quem é o “tu” a que se atribui “a idéia destas histórias”? Quem é o “eu” que não vai interferir nelas?


Como Bachelard um dia escreveu (no prefácio à tradução francesa do Ich und Du, de Martin Buber), a questão é irrelevante quando transcende o substancialismo do primeiro pronome pessoal: “Que importam as flores e as árvores, o fogo e a pedra, se não amo e não tenho lar? É preciso ser dois - ou, pelo menos, ai de nós, ter sido dois - para compreender um céu azul, para invocar uma aurora. As coisas infinitas, como o céu, a floresta e a luz só acham nome no coração daquele que ama. A brisa das planuras, na sua doçura e mansidão, é o eco de um suspiro enternecido. Por isso, a alma humana, enriquecida por um amor eleito, anima as grandes coisas entre as pequenas. E pode tratar por tu o universo, porque conhece a embriaguez humana do tu”.


Este texto de Bachelard é, porventura, a melhor explicação originária de Rosa de Areia e da singularidade, inocente e perversa, do seu olhar. Muitos excertos de L’air et les songes podiam ser também citados. Porque este é um filme “que trata por tu o universo”, um filme sobre o ar e os sonhos, as flores e as árvores, o fogo e a pedra, o céu e a montanha, a luz e o som. E é essa grande coisa que é o cinema que nele se anima, tão convocada pelo olhar mais inicial, como pelo olhar mais crepuscular, num círculo em que o tempo mensurável e o tempo do destino são concêntricos. E, na passagem de uma terminologia bachelardiana a uma terminologia jüngeriana, Rosa de Areia é também o filme que nos recorda que é quando a noite é mais densa que o orvalho é mais fecundante.


Bachelard e Jünger teriam amado esta Rosa do Deserto, manhã de crepúsculos, crepúsculo de manhãs.


Um ordenado rigor


Disse o suficiente, julgo eu, para se ter já percebido que Rosa de Areia, ao contrário de Trás-os-Montes e de Ana, não tem um fio narrativo, pelo menos na acepção convencional do termo. Tênue era esse fio nos filmes anteriores, mas existia. Em Trás-os-Montes, transportavam-no as crianças, através da sua maravilhosa iniciação à magia e aos ritos. Em Ana, transportava-o a personagem titular, essa avó telúrica para quem a visão de um cometa e o apelo de uma vaca constituíam a mesma aura de sacralidade.


Rosa de Areia - apesar do lugar que no filme tem a mesma paisagem primeva e matricial - Trás-os-Montes, sempre como lugar de origem e lugar de fim - não segue essa estrutura guiada ou centrada. Os únicos guias no mundo deste filme, no tempo deste filme, são os autores, tão expostos quanto secretos para usar palavras deles. E expostos - mais expostos ainda do que nos filmes anteriores - porque a ordenação das imagens não obedece a outra lógica que não a do seu próprio imaginário, nunca tão assumido e tão fulgurante como aqui. Secretos - mais secretos ainda do que nos filmes anteriores - porque nenhum mensageiro se introduz entre eles e a mensagem que cada plano é. Nos planos iniciais julgamos encontrá-lo, quer no velador do sono das crianças, (aquele que lê um obscuro texto de Kafka que fala de “uma pequena comédia”, de “uma inocente ilusão”) quer na rapariga cega que um travelling acompanha, entre searas e ventos, paralelamente à câmera, na profundidade de campo, até depois se virar para ela - e para nós - do plano afastado até ao plano próximo.


Reencontramos muitas vezes ou algumas vezes essas personagens, se for legítimo chamar-lhes assim, mas não são mais condutores do que todos os outros que iremos conhecendo ao longo do filme. Esses, como todos, são relevos de um sonho, oueds temporários onde nasce a rosa do deserto, para citar uma frase da brevíssima sinopse do filme. A sua missão - se missão tem - é apenas a de presidir à conformação dessa flor, a de nos acordarem ou adormecerem para a sua efêmera fragrância. Quem são? Não sabemos, mas acompanhamo-los.


Do mesmo modo, guia não é o tema musical que ouvimos durante o genérico, as Variações Sinfônicas, de César Franck. Depois delas, nunca mais ouviremos música no filme e não prenunciam sequer uma estrutura a que a forma “variações” se possa aplicar. Num filme de tantos temas, não é possível “variar”, mas apenas prosseguir, adensando. Por isso, depois, só há lugar para os sons e os silêncios - imagens sonoras tão relevantes como as imagens visuais - na banda som mais bem trabalhada de qualquer dos filmes de Cordeiro e Reis (e quem viu Trás-os-Montes e Ana sabe já da importância que os autores lhe deram nesses filmes).


Em duas seqüências, voltamos a ouvir algo a que convencionalmente se pode chamar música. São as seqüências em que surge uma mulher toda de negro vestida com um boomerang e depois com um tambor associadas ao plano em que se faz referência a guerras passadas, violências passadas, paroxismos e excessos. Como fantasma de um chefe guerreiro, ou do “soldado isolado” referido pouco antes, no diálogo, essa mulher - que nunca antes vimos e nunca mais veremos - parece simultaneamente desposar e chorar tal violência, ficando no filme como nota mais aguda dela. Com ela, a banda sonora explode, na percussão ou no silvo, em ritmos que, uma vez mais, tanto podem ser originários como prenunciadores de dissonâncias futuras.


Será por acaso que essa seqüência - a mais musical - é a mais violenta?


Será por acaso que a ela se sucede o plano em que um dos autores - António Reis - surge no filme de costas para comandar o regresso da alma penada? (“Vem, alma errante! (...) Vem comigo, alma! Para tua casa! Ao abrigo das tempestades, do vento e da noite escura!”).


Não o creio. As libérrimas associações do filme jamais parecem comandadas por acasos e nenhuma escrita automática é invocável a propósito deste filme, onde a ordenação mais oculta é a mais rigorosa.


Com Deus diante dos olhos


É, pelo contrário, uma rima poderosa que unifica os episódios que se sucedem entre o belíssimo plano élfico das raparigas a correr na clareira do bosque (plano que fortemente recorda outro semelhante que existe em Ana e com a mesma função) e o episódio da ressurreição do morto. É a “secção” mais violenta e agreste do filme, desde que abandonamos um imaginário à Corot (o tal plano a que chamei élfico) e os discretíssimos rumores (guizos, chocalhos, sopros, brisa) da descida da fraga que ecoa o de Trás-os-Montes, e entramos nas grutas e no oculto.


No alto de um monte, o vento é fortíssimo, muito mais implacável na sua estridência do que os corpos esvoaçantes que começam a evocar a guerra que parecem ver, mas de que apenas nos é dado esse off sonoro. Depois, os ruídos tornam-se mais misteriosos, dir-se-ia que “raspando” a própria imagem, como se o discurso de horror fosse mais o dos sons do que o das palavras. Um imenso travelling atira-nos para o fundo de uma cova num imaginário surreal, até um dos mais fabulosos planos do filme em que a câmera se imobiliza perante um cão negro e cego que parece arrancado ao mais tenebroso bestiário barroco, a Dionisio Minaggio e aos insólitos jardins dos governadores espanhóis de Milão do século XVI.


A essa imagem alucinante (que me evoca igualmente o plano da raposa n’A Caça, de Manoel de Oliveira) sucede-se a do poço com água amarela, que lentamente sobe e extravasa numa analogia mais misteriosamente horrível. E é depois que se sucedem as seqüências do boomerang, da invocação de António Reis e do regresso da alma doente (outro fio oculto para Ana) com a composição soberba da imagem (o espelho, o corpo do jovem).


E, precedido pelo rufar do tambor da mesma mulher de negro, entramos no episódio que certamente mais dará que falar: a leitura do processo e sentença do porco homicida, na Vila de Castelo Branco, em Março de 1428.


Ao contrário da guerra (figurada na banda sonora, como disse), ao contrário do “episódio” posterior do distribuidor do pão (relator do que só ao longo entrevemos), o processo do porco é inteiramente figurado, com personagens vestidas à época e reconstituição do patíbulo. E se o horror sonorizado ou narrado (as violências das mortes) funcionava por elipse, aqui funciona por visualização, “quadro vivo”, na própria monstruosidade kafkiana do processo e do fato (verídico e histórico). Monstruosidade que atinge o paroxismo quando o juiz afirma que, em cumprimento de preceito legal e teológico (baseado numa passagem do livro do Êxodo) significou ao porco a sentença capital, “olhando nos olhos o animal criminoso” e com “Deus diante dos olhos” condena o “culpado” a ficar “pendurado na potência até à morte” e “aí ficará longo tempo, até apodrecer, para memória da enormidade do seu crime e para incitar à reflexão os outros que poderiam querer imitá-lo”.


O realismo da seqüência introduz vertiginosamente o irrealismo da visão e a irrisão de uma justiça que procura, para o animal, justificar-se com os mesmos fundamentos que utiliza para humanos. Abstendo-se de qualquer excesso (não vemos morrer o porco) António Reis e Margarida Cordeiro perceberam que só essa visualização (pela sua carga de insólito, de absurdo) podia servir de correlato à violência não visualizada, que a nossos olhos - ao contrário daquela - já seria banal pela cotidiana invasão de imagens semelhantes.


O que justifica essa visão é a sua diferença de natureza e de objeto. Sendo o mesmo, o horror é diverso e daí a circularidade desses vários “episódios” carentes de “alimento, ajuda humana e vida”.


Por isso também, essas chacinas não podem ficar confinadas a um passado remoto. A mancha amarela que a rapariga, mais tarde, risca no chão, associável à da água do poço, reenvia a outro círculo em que o tempo histórico se une com o da ficção científica. O círculo das imagens é tão perfeito como o dos sons. E as palavras são como o vento que passa.


Tudo é imagem. Tudo é fragmento. Tudo é uno.


Espaço, caça, pátria


Na quarta das Elegias de Duino, Rilke fala de uma misteriosa “promessa”. Os amantes, diz, prometem-se Weit, Jagd und Heimat (Espaço, Caça e Pátria). Os que se reúnem pelo amor, situam-se no Weite, o espaço, ou, mais precisamente, o “largo”. É neste espaço alargado, dilatado, aberto, que terá lugar a “caça”. O Heimat, a pátria, o lugar de regresso, é o terceiro momento da “promessa”, mas esse momento não está situado no tempo. Como diz Rilke, não é “uma das estações do ano secreto”. A “pátria” é, mais aproximadamente, a abolição do tempo e a sua reabsorção num novo espaço que a Décima Elegia chama


Stelle, Siedelung, Lager,
Boden, Wohnort (Lugar,
Residência, Terreno,
Solo, Morada)


É uma semelhante promessa que me parece anunciar-se e enunciar-se na Rosa da Areia de Margarida Cordeiro e António Reis.


Já me referi ao mistério do “eu” e do “tu” no diálogo final, que insinua um olhar bifronte, uma dualidade amante.


Essa dualidade, esse olhar começa por pousar-se no espaço de Trás-os-Montes, espaço já mitológico nos filmes dos dois autores, pela referência que de Trás-os-Montes e Ana unem esses filmes a este no que é muito mais do que um décor. Rosa da Areia não começa em Trás-os-Montes, mas a parede nua inicial (o “muro do tempo” para voltar ao léxico jüngeriano) só se descerra para nos levar a ver crianças “profundamente mergulhadas na noite” que a voz do poeta não desperta, mas parece introduzir a sonhos semelhantes dos das crianças de Trás-os-Montes e Ana (sobretudo ao sonho do miúdo doente em Ana, velando pela avó).


Logo a seguir, se afirma esse espaço, libérrimo e solto, o espaço inconfundível dos filmes anteriores e das aparições anteriores. Esse espaço é, também, o espaço da montagem, tal como esta foi entendida pelos cineastas russos com que, desde Jaime, António Reis tem secretas e eletivas afinidades: Dovzhenko, Tarkovsky, Paradjanov. Um olhar muito incauto pode dizer que em Margarida Cordeiro e António Reis, como nos cineastas citados, não há montagem, no sentido retórico do termo. Mas não há filmes mais milimetricamente montados, não há filmes onde a montagem não seja tão respiratória, não há filmes onde montagem e espaço se confundam de forma tão absoluta e tão totalizante. Basta ver com atenção esse prodigioso início, desde a seara dovzhenkiana, até ao travelling da cega; desde o aparecimento primeiro da imensa mole granítica (o vento, o vento) até a visitação do anjo andrógino de calças amarelas que a cega acompanhará, desde o plano da apanha da batata até ao da giesta e da constituição do grupo germinal.


Que propõe o anjo à rapariga cega e, depois, às outras aparições? No sentido rilkeano, uma caça ou uma caçada (Jagd) em que a imaginação não é jogo de imagens (visuais e sonora) mas a própria substância do mundo, esse mundo a que se dirigem por “tu”, com medo e assombramento.


Explicita-o o episódio da igreja (“ancestral, silenciosíssima e vazia” como no poema de Cristóvão Pavia), explicita-o a associação (feita do diálogo) da insensatez à beleza, da frieza à compaixão. E explicita-o, sobretudo, a magnífica encenação do texto de Montaigne, novamente confiada ao velador inicial. Ao princípio, move-se como se estivesse num aquário, num elemento líquido, até que a câmera recua e descobrimos a assistência a quem se dirige. O aquário volve-se em palco ou tela e o cinema é expressamente convocado (filme dentro do filme) para essa caça às imagens, colocada sob o signo da raposa.


Caçada, para além da poesia, num mundo de amère beauté, ou na mais forte imagem de Rilke, do “primeiro grau do terrível”. E é a uma ascensão nessa beleza e nessa terribilidade que somos conduzidos no episódio que acima evoquei, perante esse “vento pleno dos espaços do mundo” também referido nas Elegias. O último degrau dela é a ressurreição do pai morto (“demasiado tarde”) e o lindíssimo texto zen do homem perseguido por um tigre que caiu num poço onde outro tigre o esperava.


É depois dessa narração, culminando a mise en scène desenvolvida ao longo do que chamei “a caça”, com um domínio e tensão plásticos a que só, eventualmente, foge a “seqüência” do espancamento na igreja (a única no filme que me suscita reservas) que se faz referência ao “crepúsculo inicial da história” no que é, para mim, o movimento visualmente mais impressivo de todo o filme. É quando “a beleza extrema desses corpos frágeis”, antes do fim da noite, emerge no primeiro nu dos filmes de Cordeiro e Reis e no movimento da criança que abre a porta e se perde na noite. É uma composição magrittiana que culmina esse reinado da mise en scène e o ciclo do surreal.


Saint-John Perse vem então chamar-nos, por outras palavras, a cette terre jaune, notre délice, no regresso à pátria, ou seja às moradas. E o filme adquire então a sua dimensão plenamente cósmica, em que esta terra e esta beleza são apenas um lugar entre mil milhões, mil milhões, mil milhões.


Regressa o anjo, regressa o imaginário telúrico, enquanto explode o cogumelo atômico e a paisagem parece liquefazer-se, tão carnal e tão abstrata como nas Nymphéas de Monet. O amarelo dá lugar ao rosa e o eu e o tu dissolvem-se na “mesma pessoa... a mesma imagem, talvez...”.


Do “crepúsculo inicial da história” regressamos à “aurora final”, fechando-se o círculo que é a mais contrastante das metáforas utilizadas no filme. Do fundo dele, brota a água de diversas cores que une as nascentes terríveis às nascentes de harmonia, os crepúsculos sangrentos aos crepúsculos pacificados.


Rosa de Areia é uma figura perfeita, carregando o simbolismo mágico de todas as formas perfeitas. Em cinema, é a mais bela versão do texto hindu do Matsya Purana que Malraux evocou na introdução a La Metamorphose des Dieux. “« O regresso ao real » pertence sempre a um ciclo de aparências em que o afloramento do sagrado incomunicável só pode prolongar a inundação”.


António Reis e Margarida Cordeiro ousaram segredá-lo no filme em que o cinema revela o que separa a visão da aparência da própria aparição. Dela, teceram os mais inextricáveis fios, sabendo que a tapeçaria ficará, como a de Penélope, para sempre inacabada, porque nela, simultaneamente “se desenham e apagam todas as formas”.


 

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