REBECCA, A MULHER INESQUECÍVEL, Alfred Hitchcock, 1940

por João Bénard da Costa


Alfred Hitchcock chegou a Hollywood na Primavera de 1939. Chegou, viu e venceu. O seu primeiro filme americano - Rebecca - foi um enorme sucesso, obteve o oscar de melhor filme do ano e, ainda hoje, sessenta e oito anos após a estréia, permanece como uma das obras mais populares e repostas do grande realizador inglês.


Rebecca baseia-se num bestseller da então popularíssima escritora inglesa Daphne Du Maurier que Hitch já adaptara ao cinema no seu último filme inglês (Jamaica Inn, de 1939), e em quem se basearia, muitos anos mais tarde, para The Birds. Os direitos de Rebecca foram adquiridos por Selznick, o famoso produtor que levou Hitchcock para a América, mas curiosamente, este já pensara adaptar a obra quando ainda estava em Inglaterra.


Em relação ao livro há uma modificação sintomática a assinalar. No romance de Du Maurier, Max de Winter tinha efetivamente assassinado a primeira mulher. Os códigos vigentes, à época, no cinema americano, não permitiam, contudo, que o herói fosse um assassino e, ainda por cima, um assassino impune. Daí a transformação do crime em acidente, aliás pouco crível, como Max reconhece na sua confissão à segunda Mrs. de Winter (“Quem me acreditará?”). Só que a concessão, neste caso, parece ter vindo enriquecer a obra, pois lhe introduziu outra ambigüidade e o tema permanente de Hitchcock: é mais culpado o autor do ato ou quem, interiormente, o desejou? Mais uma vez, esta é, entre outras coisas, uma história de um falso culpado ou de um falso inocente.


Tema permanente de Hitchcock, disse eu. No entanto, sabe-se que o autor dizia que Rebecca não era um “Hitchcock picture”, confessando-se surpreendido com o êxito de um filme a que chamou “a novelette” e que achou “old fashioned.”


Pode-se legitimamente discutir esta asserção. Se Rebecca não é a Hitchcock picture, no sentido do arquétipo que a expressão contém (e é curioso encontrar no filme a marca de Selznick quase tão visível como a de Hitchcock), é um fato que encontramos no filme muitas das constantes do universo hitchocockiano.


Começo pela dualidade feminina. Se muito se tem reparado (porque óbvio desde o título do romance e do filme) na não aparição da verdadeira protagonista da obra - Lady Rebecca de Winter, onipresente e oniausente do primeiro ao último plano -, tem-se dado normalmente menos atenção ao fato de Joan Fontaine, presente em quase todos os planos do filme, nunca ser nomeada e acabarmos por não saber quais eram os seus nomes de batismo e de família. Contra a presença de um nome, Rebecca (imagem sempre oculta), a presença de uma imagem, Joan Fontaine (nome sempre oculto).


É entre o nome (permanentemente invocado e só visualizado na letra que o personifica) e a imagem (permanentemente vista e só nomeada por referência ao marido) que o conflito se vai travar, tendo, como “terceiro personagem” (tão ou mais importante do que elas), a casa Manderley, completamente separada do mundo, presença tão onírica como a de Rebecca e tão real como a de Joan Fontaine.


Entre Rebecca e Joan Fontaine, entre a primeira e a segunda Lady de Winter, outras ambigüidades se introduzem que o fabuloso personagem de Mrs. Danvers tanto ajuda a pontuar. Todas as informações dadas ao espectador, ao longo do filme, apontam para uma total dissemelhança entre as duas mulheres de Max de Winter, quer no aspecto físico (Rebecca morena, Joan Fontaine loura), quer no aspecto moral e psicológico (a pérfida e seguríssima Rebecca, a doce e inseguríssima Joan Fontaine). Só que, contra essas informações, temos, na famosa seqüência do baile, a transformação de Joan Fontaine em Rebecca. Quando Max se volta e a vê e quando a cunhada murmura “Rebecca”, sentimos que não é apenas a identidade do traje que produz o choque, mas que existiria porventura uma secreta semelhança (só nesse momento plenamente revelada) entre Rebecca e Joan Fontaine. No fundo, talvez não seja forçado pensar-se que aquelas duas mulheres são uma só (como a Judy e a Madeleine de Vertigo, também uma morena e outra loura) e que Joan Fontaine é uma “reencarnação” de Rebecca.


Em apoio desta hipótese há vários sinais: Joan Fontaine aparece a Max de Winter quando este (como mais tarde contará) revive o seu “vergonhoso contrato” com a primeira mulher, no mesmo sítio onde Max e Rebecca também tinham passado a lua de mel. No momento em que Max, suspenso do abismo, sobre o mar (a importância do mar nesta obra é capital) se “perde” nessa terrível memória, surge-lhe Joan Fontaine e, imediatamente, o protagonista se sente atraído para ela (pode aproximar-se essa memória do esquecimento do contrato nupcial no notário, após o casamento de Olivier e Fontaine). Por outro lado, o ódio de Mrs. Danvers por Joan Fontaine não deixa de ser ambíguo. É daquela a idéia de a vestir como Rebecca e as duas surgem-nos com os rostos fundidos no assombroso grande plano “catártico” em que Judith Anderson incita Joan Fontaine ao suicídio. Se Hitchcock insinua uma relação lésbica entre a governanta e Rebecca (pelo menos, Mrs. Danvers apaixonou-se por Rebecca e vive e morre dessa e para essa paixão) é também sexualmente ambíguo o seu amor/ódio pela segunda Mrs. de Winter, com traços fetichistas muito acentuados (Judith Anderson mostrando e acariciando as roupas interiores de Rebecca diante da sua nova Senhora; Judith Anderson querendo vê-la vestida como Rebecca).


Só que, a partir da noite em que Joan Fontaine vestiu a pele de Rebecca, a personagem transformou-se: o seu apagamento cessou e, após a confissão do marido (e é a primeira vez que, na obra de Hitchcock, a confissão tem um tão importante papel) ela passa a dirigir as operações e a comandar o comportamento de Max (é o desmaio dela que o salva durante o inquérito).


Notou-se a semelhança do filme com alguns dos grandes contos tradicionais: a Gata Borralheira, o Barba Azul. Mas se, até à noite do baile e da descoberta do corpo de Rebecca, Joan Fontaine é a “gata borralheira”, nessa noite abandona o borralho para, após a identificação do corpo da rival, conduzir o “jogo” e decidir a sua vitória. Vitória que exige a eliminação de Rebecca, de Mrs. Danvers e da casa, todas passando apenas a existir em sonho ou pesadelo, que são, afinal, a sua razão de existir. Por isso, a partir dessa seqüência capital, a câmara deixa de estar colocada no “ponto de vista de Rebecca” (repare-se que é esse o ponto de vista da genial seqüência da visita de Joan Fontaine, guiada por Judith Anderson, aos aposentos da sua predecessora) para se subjetivizar no olhar de Fontaine, no filme realmente (e mais desde que o marido se confessou) a única Mrs. de Winter. Aos seus pés vem cair o cão, até aí sempre associado a Rebecca, guardando-lhe as portas e os segredos. E, mais ainda, na noite da confissão, tempo e as duas mulheres fundem-se: quando Olivier evoca a noite da morte de Rebecca, vemos, na cabana, através do olhar de Fontaine, tudo quanto ele descreve (cinzeiros, cordas, etc...) como se tudo de novo se recapitulasse e viesse nessa noite, trazido pelo corpo de Rebecca e pela aparência de Fontaine (antes Judith Anderson perguntara-lhe se ela acreditava que os mortos podiam voltar para olhar os vivos).


De um outro ponto de vista, encontramo-nos uma vez mais, em plena lógica do sonho. No sonho se inicia o filme (“Last night I dreamt I went to Manderley again”) e a dimensão onírica dessa seqüência marca todo o filme, com a sua subseqüente associação à morte, à qual, desde a segunda subseqüente (contre-plongée de Olivier nas rochas de Monte Carlo), fica associado o amor entre Olivier e Fontaine (igualmente associados à morta Rebecca). Manderley é sempre o espaço desse onirismo. Quando o casal atravessa pela primeira vez o portão, é um dia de sol. Antes de chegarem à casa, subitamente tudo se obscurece e começa a chover. No fim, Olivier confunde o nascer do sol com a luz das labaredas: o novo dia é só o da consumação da casa e da personagem que existia por emanação dela: Mrs. Danvers.


Depois temos o tema do Barba Azul. Se o fascínio deste filme provém, em primeira leitura, da junção do estranho trio de protagonistas (um nome, um corpo e uma casa), numa segunda leitura retira-o da sua semelhança estrutural com esses contos de fadas. O encontro da Gata Borralheira e do Barba Azul dá-se num castelo cheio de tabus e esconderijos, onde há quartos a que é vedado o acesso, uma ala proibida donde se vê o mar, um espaço e um tempo em que reina o alter-ego de Fontaine, sobre o qual Max lhe proíbe todas as perguntas e onde os Cupidos se quebram.


O segredo da perdurabilidade deste filme fascinante está na sua estrutura dupla e dúplice, tanto quanto na sua estrutura mítica e onírica.


Entre o ar (as brumas, o nevoeiro) o fogo e o leitmotiv do mar (o “listen to the sea”) na simbologia dos elementos primordiais, o que fica é um apelo subterrâneo, convocando todos os nossos fantasmas e todos os nossos corpos, todos os nossos medos e todos os nossos desejos.


 

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