O RAIO VERDE, Eric Rohmer, 1986 por João Bénard da Costa Muito pequeno eu era quando vi e possuí, pela primeira vez, a reprodução da tela de Filippo Lippi chamada A Adoração do Menino Jesus,
que está em Berlim, na Gemälde Gallerie. O quadro representa o
nascimento do Menino. Mas o menino não está em nenhum presépio. Muito
louro, muito rechonchudo, de dedo na boca, não tem o corpo deitado em
nenhumas palhinhas mas nas ervas macias de um prado verdejante. Muitas
florinhas à roda. A paisagem corresponde a um desfiladeiro, mas não
transmite qualquer impressão de aspereza ou de perigo. Tudo é
verdíssimo, verde musgo, dessa cor que, muito mais tarde, aprendi a
associar aos jardins do Éden. Se o céu é azul, como desde Fra Angélico
sabemos, o Paraíso é verde, de verde desse verde como só no Paraíso
houve, como só na Mata Coberta da Arrábida há. Um verde que apetece
lamber, que apetece comer e que absorve todas as outras cores do quadro,
desde o manto azul celeste da enorme Virgem até ao encarnado da túnica
de Deus Pai, que, lá em cima, preside à Adoração. Entre o Pai e o Filho,
a Pomba do Espírito Santo despeja uma chuva de raios dourados sobre o
Menino. Mas mesmo esse ouro se esbate no verde, verde de perdição, verde
que também se encontra em Masaccio, mestre de Lippi, verde que também
passou a Botticelli, por exemplo à Primavera. Mas em nenhum deles
o verde é tão convidativo, tão sonhador como neste quadro de Fra
Filippo, que aguardei trinta e sete anos para ver em carne e osso, em
Berlim, correspondendo a tudo o que durante trinta e sete anos
imaginara. Muito pequeno eu era - menos pequeno, mas ainda tanto - quando li Le rayon vert
de Júlio Verne na velha tradução portuguesa da Aillaud e Bertrand,
tradução de um “oficial da armada” chamado V. Almeida d’Eça. Júlio Verne
ensinou-me que o último raio de sol sobre o mar, em tardes
limpidíssimas, era da cor do verde de Filippo Lippi. “Um raio de um
verde maravilhoso, de um verde que nenhum pintor conseguiu jamais com a
sua paleta” (obviamente, Júlio Verne nunca viu o quadro de Filippo
Lippi) “um verde de que a natureza nunca reproduziu as gradações, nem
nos tons variados dos vegetais nem na cor dos mares mais claros. Se o
Paraíso é verde, é verde como esse raio, que é, sem dúvida, o verdadeiro
verde da Esperança.” Quem
leu o livro, sabe que o protagonista percorreu trópicos e equadores
para conseguir ver esse raio, o que só no fim conseguiu. Mil vezes, em
crepúsculos transparentes, mil acidentes impediram a transparência
total. Uma nuvem derradeira, a vela dum barco. O raio verde é dificílimo
de ser visto. Mas, se se acreditar em Miss Campbell, personagem de
Verne, quem vir o raio verde nunca mais se enganará em coisas de
sentimentos. Ilusões e mentiras dissipam-se à visão dele. “E aquele que
for tão bem-aventurado que o consiga ver uma vez só, uma vez só que
seja, passa a ver claro no próprio coração e no coração dos outros.” Eric Rohmer lembrou-se da história de Júlio Verne para o quinto filme da série a que chamou “Comédies et Proverbes” e que se iniciou em 1981 com La femme de l’aviateur. Mas, ao contrário de La femme de l’aviateur, de Le beau mariage, de Pauline à la plage e de Les nuits de la pleine lune, Le rayon vert, integrado na série, não abre com nenhum provérbio. A epígrafe inicial é um verso de Rimbaud: “Ah! Que le temps vienne / ou les coeurs s’éprennent.” Sempre estabeleci, mas deve ser coisa minha, uma relação obscura entre esta epígrafe e o provérbio, esse sim, que introduz Les nuits de la pleine lune: “Qui a deux femme / perd son ame. / Qui a deux maisons / perd sa raison.”
Para chegar o tempo do raio verde, para chegar o tempo em que se pode
ver claro dentro de nós e dentro dos outros, para chegar o tempo em que
as almas se fundem, é preciso terem acabado já as perigosas noites de
lua cheia, não haver várias mulheres nem várias casas. Le rayon vert, na série “Comédies et Proverbes”, é o filme mais só, é o filme mais desamparado. Solitária
e desamparada é a secretariazinha Delphine (Marie Rivière). Os
adjetivos não me ajudam muito e não a ajudaram nada a ela. Delphine,
desde que uma amiga lhe pôs os cornos e, em vez de passar férias com
ela, resolveu passar férias com o namorado, na Grécia, se é solitária e
desamparada, é chata como as coisas chatas. Como construir um filme
sobre uma protagonista que não é bonita nem simpática e nos melhores
momentos apenas nos faz uma certa pena? Como construir um filme com uma
protagonista que chora baba e ranho porque queria passar férias em boa
companhia, não o consegue e chateia de morte toda a gente que não tem
culpa nenhuma disso? Como construir um filme sobre uma protagonista que
não diz nada de particularmente interessante e se limita a desbobinar
lugares comuns sobre astrologia, relações humanas, solidão e amor e a
falar, falar, falar, sem que da boca dela saia uma só frase que retenha a
nossa atenção? Já não me lembro quem, comparou-a a uma personagem de
Simone Weil, insignificante e pobre, mas à procura de Deus. Eu penso
mais no que Péguy escreveu sobre a Santa Teresinha do Menino Jesus,
quando pôs Deus a dizer aos anjos qualquer coisa como isto: “Julgam que
para fazer santos preciso de gente muito especial? Vou pegar uma mulher
parvíssima, limitadíssima, possidoníssima e, com essa matéria, vou fazer
a santa que vos há-de espantar a todos.” Rohmer pegou em Marie Rivière e
fez essa Delphine, mais irritante que todas as burguesas dele (e, meu
Deus, como ele sabe fazer burguesas irritantes!) e construiu a
personagem que é aquela que mais me espanta em toda a história do
cinema. Porque, sem ponta por onde se lhe pegue, sem ponta que se nos
pegue, não conseguimos despegar os olhos dela, sentindo, contra a
personagem e contra a atriz, que dali vai acontecer qualquer coisa de
espantoso. Mas Rohmer é o último dos cineastas que sabe que o essencial,
no cinema, não é da ordem da linguagem, mas da ordem do ontológico. E
todas as paixões de Rohmer, de Hitchcock a Mizoguchi, de Murnau a
Rossellini, pegaram em Delphine e a levaram de Cherbourg para Biarritz e
de Biarritz para Saint-Jean-de-Luz, para transfigurar à luz do raio
verde. 1986 foi o ano. Pode-se
dizer que Delphine é uma personagem apanhada no que Huysmans chamou
melancolia. “A vítima da melancolia mantém com o espaço a mais dolorosa
das relações. Ou lhe falta espaço, ou o espaço lhe sobeja. Tem horror à
finitude dele, mas a sua infinitude aterroriza-a da mesma maneira. Daí a
busca melancólica das viagens e das distâncias: ao desorientado, as
viagens prometem um fim, aos cativos uma evasão.” Talvez seja por isso
que, entre uma segunda-feira, 2 de Julho, e uma segunda-feira, 6 de
Agosto, Delphine tanto procure nas viagens o que quer e não sabe o que
é. Encontros extraordinários só tem três: ainda em Paris, no Museu
Guimet, uma estátua antiga de um atleta nu. Uma amiga mete-se com ela:
“Do que tu precisas, é de um homem assim: bonito e sujo”. Bonito e sujo?
O segundo encontro extraordinário dá-se em Cherbourg. Num dos seus
passeios erráticos, encontra, caída no chão, uma carta de Tarô. Volta-a e
é a Dama de Espadas. Não é muito usual encontrarem-se cartas dessas
caídas no meio do chão. A Dama de Espadas vai presidir a tudo o que se pode chamar o “buraco negro” de Le rayon vert:
as férias insuportáveis em Cherbourg, o regresso efêmero a Paris, a
viagem para as montanhas, finalmente Biarritz, insuportável como
Biarritz em Agosto. De vez em quando uma cor mais verde: bosques onde
ela passeia, fatos de banho de turistas, umas escadas junto ao mar
verde. E é numas escadas dessas que ela reencontra, caída, uma segunda
carta de Tarô: agora um Valete de Copas. Estamos perto do fim do filme e
começamos a perguntar por que é que ele se chama Le rayon vert e
qual a relação com o livro de Verne. Até que, junto às mesmas escadas,
Delphine ouve, casualmente, a história do raio verde, contada por uns
turistas entradotes que resumem o livro e dizem, todos, já o terem
visto, ao menos uma vez. Delphine não entra na conversa, os turistas nem
reparam nela. Mas é a partir desse momento que o raio verde começa a
funcionar e a mudança de Delphine começa a dar-se. Uma sueca de topless
desafia-a para uns engates. A coisa até funciona, mas Delphine continua
a não funcionar. Chegada a hora de mais verdade (é verdade que verdade
bem rasteira) foge ao companheiro que a escolhera e corre escada abaixo,
outra vez a chorar que nem um bezerro. Decide voltar a Paris. E é na
estação, enquanto lê O Idiota de Dostoievsky (livro que esteve a
ler durante todo o filme), que lhe aparece um rapaz, igual a todos os
outros, mas que, ao contrário de todos os outros, l’éprenne. É
ele que lhe propõe um fim de semana em Saint-Jean-de-Luz. Já na praia,
propõe-lhe ficarem juntos. A tarde, uma tarde limpidíssima, sem uma
nuvem, chega ao fim. Antes de lhe responder, Delphine pede-lhe que se
afastem um pouco até junto ao mar. “Sim ou não?”, pergunta-lhe o rapaz.
“Espera”, responde-lhe Delphine e vemos o sol a pôr-se no mar. O último
raio de sol. E Delphine, num júbilo indescritível: “Sim.” O sim mais
jubilatório do cinema. Eu nunca vi o raio verde. Ouvi dizer que Rohmer, que filmou Le rayon vert
em 16 milímetros, câmera à mão e sem qualquer script prévio, gastou
metade do pequeníssimo orçamento que teve a mandar segundas e terceiras
equipas do filme para todos os pontos da costa francesa, a fim de filmar
o raio verde. Vi o filme dezenas de vezes e, seja ou não seja
daltônico, nunca consegui ver o raio verde que Delphine viu no fim. Há
um sol redondíssimo e amarelíssimo, há um mar todo azul, mas verde eu
não vi. Mas acredito que Delphine viu o raio verde e que, a partir desse
plano, plano final do filme, outra Delphine existiu e uma espantosa
história de amor começou. Se não é este o milagre do cinema, não sei nem
o que é milagre nem o que é cinema. Como
Rohmer uma vez disse: “No cinema, a imagem do mundo exterior forma-se
automaticamente, sem a intervenção criadora do homem. Todas as artes
estão fundadas sobre a presença do homem. Só no cinema fruímos da sua
ausência.” Le rayon vert, a obra mais mágica que os anos 80 me deram, é esta presença e é esta ausência. |
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