PEGGY
SUE, SEU PASSADO A ESPERA, Francis Ford Coppola, 1986
por João
Bénard da Costa
“Du Berlioz, c’est ce que je
préfère”, dizia aquele rapaz meio maluco, chamado Richard (André
Jocelyn), ouvindo, num jardim, o Romeu
e Julieta. Sei lá porquê (talvez porque eu o prefira também),
essa frase ficou-me no ouvido e com a Serenata
para 13 instrumentos de sopro (K.361) é o que ainda hoje mais
recordo do filme À double
tour de Claude Chabrol, que vi no Império, em Lisboa, mais ou
menos na mesma altura em
que Peggy Sue (Kathleen Turner) se “graduou” em Santa Rosa, na “classe
de 1960”.
E Peggy Sue “du
Coppola, c’est ce que je préfère”, embora, como no caso de
Berlioz (há muitas semelhanças entre Berlioz e Coppola) prefira muitas coisas
dele: The Rain
People, os três Godfather
(por ordem crescente), One
from the Heart, Bram
Stoker’s Dracula. Qualquer deles é “o mais belo Coppola”,
qualquer deles o podia ter escolhido para os “100 melhores filmes da nossa
vida”.
Mas Peggy Sue,
que parece ter sido uma encomenda, que dizem ter sido uma expiação depois do
estrondoso fracasso de Cotton
Club e que quase toda a gente tratou em tom menor, é o filme de
Coppola a que mais vezes torno e que mais vezes me torna.
Compararam-no a Back
to the Future de Zemeckis (1985). Compararam-no a It’s a Wonderful Life
de Capra (1946). Para além do óbvio (a viagem ao passado) não tem nada, mesmo
nada, que ver. Back
to the Future era uma brincadeira sem conseqüências e um pretexto
para recriar os anos 50, com o complexo de superioridade que o tempo jamais
autoriza. O episódio de It’s
a Wonderful Life, em que James Stewart volta ao passado, é a
demonstração exemplar do que esse passado seria, se se pudesse realizar o
desejo que exprime numa noite de desespero: “Quem me dera não ter nascido!” O
anjo da guarda, para lhe dar uma lição, faz-lhe a vontade e o mundo que James
Stewart revê, se não tivesse estado nesse mundo, é tão horrível, que, mesmo
no fundo da fossa em que está, dez minutos passados só suplica ao anjo que o
traga de volta. Para ele, a “viagem no tempo” foi pesadelo pior do que tudo,
foi viagem ao inferno. Nada iguala a sua alegria quando regressa. Bastou-lhe
essa experiência para descobrir que “it’s
a wonderful life”. Mas aqui e agora, com nós próprios como
protagonistas de nós próprios.
Peggy Sue
propõe o movimento inverso. É feio e baço o mundo do início e do fim do
filme, ou seja o mundo contemporâneo da obra (o filme foi rodado em 1985 e
estreado em 1986). A festa dos 25 anos da “classe de 60”, as pessoas com 40 anos
em vez de 15 (já não com a cara com que nasceram mas com a cara que
mereceram), o “crazy
Charlie”, marido ou ex-marido (Nicolas Cage) visto em plano subjetivo
por Peggy Sue, todo de branco e saracoteante, descendo a escada que o leva ao
palco, os reis e as rainhas, o bolo de velas, a falsa, falsérrima alegria. Ou
então o mundo espetacular em
que Beth, a filha (Helen Hunt), vem mostrar, como nos
anúncios, que tal mãe, tal filha, ao perguntar, por desgraça dos cosméticos,
qual é uma, qual é outra. Percebe-se, a cada rodopio da câmera, como esse
mundo, aquela história e aqueles personagens são repulsivos (sem sequer serem
infernais) e, embora a questão nunca seja posta, percebe-se que Peggy Sue se
pergunte como foi ali parar, como tudo acabou assim e dali para a frente só
pode ser pior. Percebe-se que Peggy Sue queira morrer e que o coração lhe
pare, quando para ela avança o bolo de velas. E é enquanto a protagonista
está entre a morte e a vida (como em A
Matter
of Life and Death de Powell e Pressburger) que “viaja no tempo”,
regressando aos 18 anos, à Santa Rosa natal e à época em que “era feliz e
ninguém estava morto” e “a alegria de todos e a dela estava certa como uma
religião qualquer”.
E, passada a cena da transfusão de sangue (capital e obscura), quando já se
está meio-cá-meio-lá, o filme muda 180º de tom e de estilo, a partir do plano
- o mais bonito, o mais comovente - em que Peggy Sue,
ainda com o vestido de alças azul que tinha mandado fazer para a festa de
1985, se imobiliza diante da casa branca - tão branca - em que nasceu e viveu
até aos 18 anos. Há um travelling minnelliano sobre a casa e depois uma panorâmica à Kazan, que a acompanha até
à porta entreaberta, devagar, devagarissimamente. Peggy Sue hesita e bate à
porta. De dentro, ouve-se a voz da mãe (Barbara Harris): “Who’s there?” “Peggy… Peggy Sue”
responde, baixa e lentamente, aquela a quem não sei se devo chamar a própria,
de tal modo o rosto se lhe transfigurou, enquanto a panorâmica continua para
mostrar o interior da casa, subjetivamente visto em maravilha. E,
sempre em off,
a mãe, com o tom mais cotidiano do mundo, diz-lhe que entre e que deixou a
porta aberta para ela. Não entende, nem pode entender, o abraço seguinte,
quando Peggy Sue lhe diz que se tinha esquecido como ela fora tão nova e
evoca o cheiro tão bom do Chanel 5. E a maravilha continua, quando ela sobe
ao quarto de solteira e vê a cama, as bonecas, os jogos, os sapatos, o disco
no pick-up.
Ingmar Bergman escreveu que a gênese de Morangos Silvestres (1957) estava
ligada a uma estranha experiência pessoal dele, quando, um dia em que viajava
de automóvel de Estocolmo para Dolarno, sentiu um “súbito e irreprimível
desejo” de voltar a visitar a casa da avó, onde tanto tempo vivera em criança. Mas,
quando entrou em casa, assaltou-o um “medo terrível” de reencontrar o passado
intacto, de nada
ter mudado. “O que é que aconteceria se, de súbito, voltássemos à
infância?”, interrogou-se Bergman. E pensou então fazer “um filme
completamente realista, sobre alguém que abre uma porta, existente na
realidade e, de repente, ao virar de um canto, se encontra noutra época da
sua existência. Diante dele, o passado desfila, vivo.”
Bergman nunca fez esse filme, nem Morangos,
em que o passado também desfila, o é. Esse filme é Peggy Sue. Com
uma capital diferença: o que para Bergman seria o máximo do horror (o medo
terrível de nada ter mudado) para Coppola é o céu e não o inferno. A vida
ensinou-me que as pessoas se dividem nestas duas categorias: aquelas para
quem uma viagem como a de Peggy Sue seria uma experiência infernal
(reencontrar o passado intacto, repetir tudo o que foi, como foi) e aquelas
para quem tal seria a maravilha das maravilhas: viver com consciência, o que
se viveu sem ela.
Para mudar? Tal como, em It’s
a Wonderful Life, James Stewart volta atrás como castigo do
desejo de nunca ter nascido, Peggy Sue, desta vez sem intervenção de qualquer
anjo, volta como resposta ao lugar-comum que diz no início: “Se eu tivesse
vinte anos e soubesse o que sei hoje.” Regressada aos 18 anos, Peggy Sue sabe (nunca perde
a memória do que aconteceu depois) mas esse saber não lhe serve de nada. Repete
tudo, e repete sobretudo aquilo que mais chorou no início: o seu amor e o seu
casamento com Charlie.
Mudam algumas coisas anedóticas e sentimentais. Responde ao professor de
álgebra que não estudou a matéria porque já
sabe que a álgebra de nada lhe vai servir no futuro. Faz amor com
o outsider
poético que é Michael Fitzsimmons (Kevin J. O’Connor) de quem no princípio
diz ter sido o único dos colegas (além de Charlie) com quem desejou ir para a
cama e nunca foi. Mas, no essencial, não muda nada e quando o seu único
confidente (o único a quem conta a sua estranhíssima história), o rapaz dos “quatro
olhos”, Richard Norvick (Barry Miller) lhe propõe que mude o destino e se
case com ele, recusa, como teria recusado há vinte e cinco anos. Na noite “fatal”
(a noite dos 18 anos dela, a noite em que sabe
que se entregou a Charlie, engravidou e por isso teve de casar) ainda tenta
fugir e ir para casa dos avós, esses avós que ainda não estavam mortos e a
quem ela ainda não sobrevivia “como um fósforo frio”. Mas a persistência de
Charlie arranca-a de lá (arranca-a mesmo à estranhíssima cerimônia maçônica
presidida por John Carradine) e, na mesma estufa e debaixo da mesma chuva, o
desejo dela (e o desejo dele) é mais forte do que o conhecimento do que vai
suceder. Peggy Sue
Got Married. Dois verbos no passado podem mais do que qualquer
substância futura. Nenhum remake
altera o original.
Porque eu estou a falar de um filme e no cinema estamos. E a aposta genial de
Coppola foi opor o filme do passado ao filme do presente. Se sentimos tanta
paz e tanta felicidade (tanta nostalgia também) no regresso aos anos 60, é
porque Coppola recapitula e retoma a estética e os valores dos anos 60, como
quem volta a um paraíso perdido.
Em tantos, tantos momentos do filme (a compra do Cadillac pelo pai, as aulas,
as canções de Buddy Holly, de Dion, de Fabian, o “She Loves You” dos Beatles, as
conversas sobre sexo com os pais ou com os namorados) o que volta - mais do
que qualquer realismo “cópia conforme” - é a mítica dos grandes filmes de
Hollywood, dos finais dos anos 50 e dos princípios dos anos 60. Estamos a ver
imagens de Coppola, mas estamos também
a ver imagens de Some
Came Running de Minnelli, de Strangers
When We Meet de Quine, de Splendor
in the Grass de Kazan, de To
Kill a Mockingbird de Mulligan, de Sweet Bird of Youth de Brooks e de
tantos, tantos outros. Mas estamos a vê-los, como Peggy Sue, do lado de cá e
do lado de lá. Toda a viagem
carnal é viagem metafísica. O que talvez só o cinema consiga dar,
ao dar “que meu amor, como uma pessoa, esse tempo”, como queria Álvaro de
Campos no poema “Aniversário”.
Porque todos os tempos se confundem no tempo do cinema. E não julgo que tenha
sido por acaso que Coppola situou este filme em Santa Rosa, onde mais
de quarenta anos antes, Hitchcock (Shadow
of a Doubt) filmou outra história de personagens que se cruzam
nos séculos e desencontram no presente um outrora a que não sabem nem podem
voltar.
Por mim, se uma fada me aparecesse a perguntar o que eu mais queria da
varinha de condão, pedia-lhe a viagem de Peggy Sue. Ver tudo outra vez com
outra nitidez. Que só então seria nítida, porque nítida e mesma, e nítida
mesmo.
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