ORDET, Carl Theodor Dreyer, 1955 por João Bénard da Costa Foi em 1932. Carl Theodor Dreyer tinha 43 anos e acabara de rodar Vampyr,
o mais humilhante fracasso comercial da sua vida, o filme que pôs termo
a uma carreira, até aí, relativamente contínua (dez longas metragens
entre 1920 e 1932). As dúvidas sobre os outros e sobre ele próprio
tornaram-se mais atrozes, embora as conhecesse desde criança e,
sobretudo, desde que, aos 17 anos, o pai que julgava ter lhe revelou que
não era pai dele e lhe contou a história de pecado que atravessava as
suas origens. Como Kierkegaard, influência maior na sua obra (embora só
expressamente citado em Ordet) Carl Th. Dreyer vai viver toda a
sua vida com esse segredo que nunca partilhou. E foi quando, mais do que
nunca, acreditou na sua maldição que, num teatro de Copenhague, viu Ordet, peça do pastor Kaj Munk (1898 - 1944) que se tinha estreado em 1926. Nesse dia, Carl Theodor Dreyer reencontrou um sentido para a vida e reencontrou um sentido para a sua obra. Ordet seria o seu próximo filme. Não foi. Vinte e três anos decorreram entre a visão de Ordet nos palcos e a visão de Ordet no cinema. Vinte e três anos em que Dreyer só conseguiu fazer mais um longa-metragem (Dies Irae),
vinte e três anos durante os quais Kaj Munk atingiu os píncaros da sua
fama e, lutando contra os nazis, foi morto por eles. Vinte e três anos
em que, paralelamente a Dies Irae e a Ordet (projetos sempre anunciados e incessantemente trabalhados) Dreyer começou a erguer o monumento chamado Jesus Judeu que nunca conseguiu filmar. Mas
se podemos e devemos chorar a estupidez e a mesquinhez de todos os que o
impediram de trabalhar, não podemos nem devemos chorar que Ordet
não tenha sido filmado pelo Dreyer revoltado de 1932, mas pelo Dreyer
pacificado de 1955, aos 66 anos de idade. Porque, para este filme, (e
basta comparar o seu ritmo e a sua respiração aos de Vampyr ou Dies Irae)
era necessária a “grande idade” e era necessária a maravilhosa
sabedoria e a maravilhosa sageza que esta obra, luminosamente, refletem.
Ordet é um mistério tal que me recuso a acreditar que pudesse ter acontecido antes ou depois. Ordet
- disse - baseia-se numa peça de teatro. Dela, guarda o filme a unidade
de espaço, já que, raras vezes, saímos de casa dos Borgen, décor quase
único do filme (eu não me esqueci das dunas, do vento e de Johannes, mas
nada disso me contradiz). Mas a expressão teatro filmado, mesmo no
sentido mais nobre, é completamente desajustada a qualquer análise desta
obra, talvez a que mais tocou o cerne do cinema. Ordet
é um filme com muitos diálogos. Mas quando, na memória, revemos os seus
personagens, eles quase sempre nos volvem silenciosos, muito mais
feitos de longa luz e de breves sons do que do verbo. Revemos o branco
das barbas e do cabelo do velho Morten, na ira ou na resignação. Revemos
o acordo profundo com o mundo e os outros que emana da serenidade de
Inger. Revemos a inquietação e a fraqueza de Mikkel. Revemos a estatura
enorme, guturalmente demenciada, de Johannes. Por aí fora, ou por aí
dentro, com todos, todos os outros. Ou então uma ou outra frase de um
diálogo que não podemos entender. Inger a dizer a Andre que se ele amou
muitas mulheres é porque nunca amou nenhuma. Mikkel a falar do corpo de
Inger, esse corpo, a que só nessa altura prestamos atenção. Ordet
é o filme dos longos planos-seqüência, alguns dos mais longos
planos-seqüência já feitos em cinema. Mas o que nos fica é a mobilidade
deles, a darem-nos o “calor por dentro” de que também fala Inger. Ordet
é um filme de atores, de grandes atores. Mas o que fica - outra vez -
são os rostos deles, nunca este ou aquele aspecto particular da sua
representação. Vendo Ordet percebemos o que Dreyer quis dizer
quando disse que o rosto humano era o único solo que um cineasta nunca
deve deixar de explorar. “Vê-lo animado do interior e transfigurando-se
em poesia”. Tanto o rosto nobre de Morten, como o rosto pequenino do
alfaiate, tanto o rosto aberto de Inger como o rosto demente de
Johannes. Ordet
é o filme de corpos e almas. Quando o pastor, tentando reprimir a
revolta de Mikkel, lhe diz que a alma de Inger já está junto de Deus,
ouve como única resposta a frase a que não se pode objetar: “Não lhe
amava apenas a alma, amava-lhe também o corpo”. Por isso, Ordet é o filme da ressurreição. É
depois dessa réplica de Mikkel que o irmão “tontinho” (Johannes)
irrompe na câmara mortuária, sem quaisquer sinais exteriores da loucura
que manifestara durante todo o filme. E pergunta se alguém se lembrou de
pedir a Deus que ressuscite Inger. Blasfêmia? Blasfêmia é, como ele
diz, não haver já entre os crentes alguém com fé. E enquanto parece
desistir (“apodrece, porque este é um tempo de podridão”) aproxima-se
dele a criança (que sempre manifestara, face à morte da mãe, absoluta
paz, que os crescidos atribuíam à infância e ao fato de “ainda não
perceber nada”) a pedir-lhe que se despache e acorde Inger. “Crês que o
posso fazer?” Perante a absoluta certeza da criança - um leve e curioso
sorriso - Johannes ordena à morta, em nome de Jesus Cristo, que volte à
vida. Há
um terrível silêncio à roda. Há um plano fabuloso de Inger no caixão,
coberta por um lençol de linho branco, luminosíssimamente branca e há um
contraplano da criança. Nada, ninguém se move. Até que a criança começa
a sorrir e olha para o tio com o desarmante aplauso de quem nunca
duvidou do desfecho. Depois, vemos Inger soerguer-se e ser recebida nos
braços de Mikkel. Os velhos comentam que na verdade este é o velho Deus
de Elias, eterno e sempre igual e a palavra final, dita enquanto Inger
beija carnalissimamente o marido, é vida. No
cinema não há nada mais fácil do que conseguir um milagre. Todos sabem
que a atriz que está a fazer de Inger não está morta e que ressuscitá-la
depende apenas de uma ordem do realizador. Mas o prodígio daquela mise en scène
(desde a composição dos planos à sua iluminação) é fazer-nos acreditar
que, na verdade, vimos um milagre e vimos um corpo morto ressuscitar em
toda a glória da vida. Na mais clássica das planificações torna-se
evidente para nós a promessa de Cristo. “Se um dia, com verdadeira fé,
disseres àquela montanha que se mova, a montanha mover-se-á”. As
montanhas nunca se moveram, como os mortos nunca ressuscitaram (a não
ser no “caso especial” de Cristo também evocado no filme). Vi isso
acontecer (e é, sem dúvida, o mais pasmoso dos milagres) neste filme. Se
me disserem que é cinema eu respondo que não é, não. São
luzes que tornam tudo transparente e tudo iluminado “como se fosse uma
janela / à noite, vista do exterior”. Estou a citar - mal - um poema de
João Miguel Fernandes Jorge que faz parte dos “Três Poemas de A Palavra
de Carl Theodor Dreyer”. E estou-me a lembrar do som do filme. Quando
Inger morre, o cunhado mais novo pára o pêndulo do relógio, cujo
“tic-tac” fora o único ruído dessa seqüência de agonia. Quando Inger
ressuscita - durante o último plano - ele mexe os ponteiros para
acertar, de novo, o tempo. À morte chamara Johannes o “homem da
ampulheta”. Tudo está na areia que escorre, na passagem das horas. “E
então o tempo, sim foi coisa que passou”. Só a Palavra e a Imagem o
podem suspender assim. E, por isso, disse S. Paulo que, maior do que a
fé, era o amor. Ordet de Dreyer é o filme desse amor. |
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