UMA NOITE NA ÓPERA, Sam Wood, 1935 por João Bénard da Costa A Night at the Opera
é o mais célebre e popular dos 14 filmes dos irmãos Marx. Estes em
1934, haviam abandonado a Paramount, no termo de um contrato de 5 anos
que os ligava àquela firma. Duck Soup não foi um grande sucesso e
a firma de Zukor decidira não renovar a ligação. Foi Thalberg quem os
levou para a Metro, onde fariam entre 35 e 41, além do filme de hoje, A Day at the Races (1937), At the Circus (1939), Go West (1940), e The Big Store (1941) (entretanto, haviam feito para a RKO, Room Service em 1938). Foi a fase da sua melhor glória e maior celebridade. Os
historiadores “marxianos” e os seus mais fervorosos adeptos têm sido
bastante críticos em relação à intervenção de Thalberg nesta fase da
obra dos Irmãos. Estes, que
nunca primaram pela “boa língua”, também não pouparam o produtor.
Thalberg ter-lhes-ia imposto os números musicais desses filmes - que
pouco têm a ver com o resto deles - sacrificando assim o seu ritmo e
intensidade. Se é verdade que essa imposição prejudica o equilíbrio
destas obras - os “momentos musicais” são quase sempre pausas
aborrecidas, que apetece ver passar rapidamente para de novo voltar aos
Irmãos - também é exato que eles foram propositadamente pensados para
esse fim. Depois dos filmes Paramount havia a idéia - e Thalberg tinha-a
- de que o quê afastava o público dos Marx era precisamente o seu ritmo
diabólico, e que, dada a velocidade dos diálogos e situações, os
espectadores não agüentavam essa “carga” e, começando a perder palavras e
pormenores (até porque as gargalhadas na sala impediam de ouvir tudo)
se desinteressava ou cansava. Daí que tais números fossem concebidos em
função dum necessário descanso. É evidente que o ritmo e a imaginação
foram prejudicados e nunca mais foi atingido o “paroxismo” de Duck Soup, mas talvez se deva a essa “intromissão” a muito maior consagração dos Marx junto do grande público. E, ainda hoje, A Night at the Opera
(apesar de tais quebras e dos “números” de Allan Jones e Kitty Carlisle
que não só nada têm que ver com o filme, como obviamente contrariam o
seu “espírito”), é uma obra mais aceita do que os filmes precedentes. Neste filme, pela primeira vez, os Marx são 3 (Zeppo nunca passou à Metro e nunca mais interveio). Como já sucedera em Duck Soup,
estão socialmente separados; Groucho é o empresário, Chico e Harpo são
funcionários (se tais palavras podem “funcionar” neste espantoso
universo). De novo, Groucho tem pela frente Margaret Dumont - elemento
indispensável do universo dos Marx - que aqui é a rica milionária, Mrs.
Claypool. E, quase logo no início do filme, no jantar do restaurante de
Milão, há entre ela e Groucho Marx um dos mais antológicos diálogos
“marxistas”. Perante os ciúmes da milionária, Groucho explica-lhe que,
se estava a jantar com a jovem loura, é porque a loura lhe lembrava a
velha gorda. E, num crescendo de delírio, continua: “That’s why I’m
sitting here with you. Because you remind me of you. Your eyes, your
throat, your lips... everything reminds me of you. Except you. How do
you account for that?”. Depois
há a intrusão do par amoroso que os Marx defendem. Essa proteção foi
também uma idéia de Thalberg que os achava, nos filmes anteriores,
demasiados agressivos e antipáticos. Era preciso uma “causa nobre” por
cuja defesa eles lutassem, de modo a torná-los mais “simpáticos”. Como é
óbvio essa “simpatia” nada tinha que ver com o seu fundamental
anarquismo e com a sua permanente agressão. Mas não foi por aí que se
estragou muita coisa, pois que o espectador rapidamente se esquece do
“móbil” e perante a sua imparável fúria destruidora, a dimensão
“simpática” não conta rigorosamente para nada. E,
em todo o resto, nem Thalberg, nem Sam Wood - realizador
particularmente odiado
pelos Marx - nem o par de cantores, conseguiu tirar fosse o que fosse à
imparável energia dos Irmãos, que, como habitualmente, foram os
verdadeiros e únicos autores do filme. Não
vale a pena comentar as celebérrimas seqüências da cabine no navio (de
novo são passageiros clandestinos) do contrato negociado entre Groucho e
Chico (com os sucessivos cortes das sucessivas partes) da chegada a
City Hall com as barbas dos três aviadores e os discursos, ou da
perseguição pelos vários quartos, com a célebre réplica de Groucho à
pergunta que lhe é feita para saberem se está sozinho (“Alone with my memories”). Mas
vale a pena atentar na não menos genial seqüência da ópera, pelo que
ela representa na intromissão do menos romântico ou sentimental dos
universos - o dos Marx - no lugar por excelência desse romantismo, que é
a ópera. Para lá das peripécias do argumento, o conflito que se
estabelece não é entre os Marx e Lasparri, mas entre os Marx e “O Trovador”,
ópera talvez não escolhida por acaso. Porque a convenção operática
assenta em vários ingredientes que, retirados, lhe fazem perder todo o
sentido e revelam a “falsidade” da arte ou a sua evidente ilusão. Ao
contrário do que possa parecer a uma pessoa com preconceitos
desfavoráveis e superficiais em relação à ópera - e sobretudo à ópera
romântica - essa forma de arte revela mais do que qualquer outra a
precariedade dessa ilusão, e daí a sua força atrativa. Desmontá-la, como
fazem os Marx - misturando na sua linguagem outras linguagens - é pôr a
nu esse artifício sobre que assenta qualquer emoção artística e colocar
sobre esta interrogações seríssimas e certeiras. Talvez que os Irmãos
não tenham tido a plena consciência de tudo quanto estavam a pôr em
causa, mas quando Harpo faz cair por detrás da Cigana Azucena, no “Stride La Vampe”
os mais diversos cenários, provocando as duplas gargalhadas - dos
espectadores do filme e dos espectadores no filme - o que os Irmãos
estão a destruir é o cenário da mais absoluta ilusão inventada pelo
homem. A ilusão artística, sobre a qual também eles - Marx - assentam e
da qual também vivem. Depois de terem invadido o espaço político, destroçando-o (Duck Soup) os Marx neste filme invadem e destroçam o espaço artístico. Nunca talvez a contestação total tenha sido levada tão longe. |
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