NOSFERATU, F. W. Murnau, 1922 por João Bénard da Costa O sangue, o mar, a mulher. Em torno destas três imagens se articula a primeira das múltiplas adaptações para o cinema da célebre novela de Bram Stoker e do celebérrimo Conde Drácula. A primeira, e seguramente (mau grado os muitos e admiráveis Dráculas futuros, de Tod Browning a Terence Fisher e Paul Morrisey) a mais bela, um dos mais belos filmes de todos os tempos. Aqui Drácula chama-se Orlok, e é Nosferatu, o não-morto, aquele cujo nome ressoa como um grito de ave de rapina e que tem o poder de obscurecer as imagens. Antes de retomarmos o fio à meada (fio que passa pelo sangue, o mar, a mulher) alguns dados históricos. Albin Grau, grande pintor alemão, e autor dos décors e guarda-roupa do filme, parece ter sido o inventor do nome Nosferatu e da idéia geral do filme que se afasta bastante do romance de Bram Stoker (contou, mas não deve ser verdade, que ele próprio tinha conhecido em Praga um homem que presenciara a abertura de um caixão contendo um desses untote [não mortos] de que fala o filme). Henrik Galeen, realizador dinamarquês radicado na Alemanha onde um ano antes de Nosferatu co-realizara com Wegner O Golem, foi o autor do argumento, o único que escreveu, seguindo muito de perto o estilo do célebre Carl Meyer. E Murnau com a sua paixão pelos décors naturais filmou praticamente tudo (à exceção dos interiores) nos locais da ação: Lubeck e Wismar, cidades medievais do norte da Alemanha, para as seqüências da terra de Hutter, nos Cárpatos para a terra do Vampiro, no Castelo Oravsky na Eslováquia para o castelo do conde (quem quiser ler o admirável Murnau de Lotte Eisner encontrará a indicação precisa de todos os locais). Nada é maquette ou décor como nos filmes tipicamente expressionistas, ou em Fritz Lang. Como notou Balázs o caminho para o sobrenatural passa pelo natural. E o filme foi feito com atores muito pouco conhecidos e com uma obscura vedete de music hall (Max Schreck) no papel do Conde. E aí há quem desconfie: diz-se que Max Schreck apenas emprestou o nome ao assombroso personagem, assombrosamente interpretado e que por trás da máscara se esconde outra pessoa. “Ninguém” - escreve um pouco fantasiosamente o crítico surrealista francês Ado Kyrou - “conseguiu jamais desvendar a identidade desse extraordinário ator que uma caracterização genial tornou para sempre desconhecido. Houve várias suposições, houve até quem dissesse que era o próprio Murnau. Quem se esconde atrás do personagem de Nosferatu? Nosferatu em pessoa?” Seja como for, Klaus Kinski, Nosferatu para Herzog, disse ter visto o filme mais de 50 vezes quando preparou o papel e continua a não perceber como é que um corpo era capaz de tanto, como eram possíveis aqueles movimentos, aqueles gestos. Podemos voltar ao filme. E começar pelo sangue. Das imagens ele está ausente, mas tudo o que está entre elas e nelas é de sangue que nos fala. O sangue é a vida dirá Renfield que antes preveniu Hutter de que a viagem lhe custaria algum suor e talvez um pouco de sangue. E o sangue é a alma de Nosferatu, por oposição à terra em que o vampiro se transforma durante o dia. Da terra vêm os ratos, a peste, a morte. Do sangue, a vida, o amor, a comunicação (a simbologia do sangue na sua ilustre genealogia judaico-cristã daria, à luz deste filme, para páginas e páginas de conversa). Ligando-a agora aos pontos de partida e de chegada acolhidos, recordemos que é através do sangue que se estabelece a misteriosa comunicação (dos santos? dos demônios?) entre o “nome que ninguém pronuncia” e Ellen, esse duplo de Nosferatu, aquela que não precisou de atravessar a ponte para que os fantasmas viessem ao seu encontro. Quando Hutter se corta e tem lugar o primeiro cerimonial do sangue (em off) não vemos o vampiro a beber, mas Ellen levanta-se da cama, nas pontas dos pés, caminhando (muito antes de Renfield) ao encontro do Mestre. E no duplamente obscuro plano do seu encontro final com o Conde, a um cando da imagem, já chamada a mais erótica de toda a história do cinema, pelo seu sangue (o sangue puro) morre Nosferatu, sem escutar os avisos do discípulo. O plano do galo é o do orgasmo-vida-morte. É a troca do sangue, é o sinal de passagem e pouco perdemos (porque já lá está) que a censura da época tenha proibido a transmutação de Ellen em novo Nosferatu. O mar - não se está a pensar no espaço do navio dos mortos e na fabulosa viagem de que ninguém se salva, como Nosferatu nos famosos contre-plongée contra as velas. A partir da “noite de núpcias” (batismo de sangue) de Hutter (e aproveita-se para sublinhar como Hutter é femininamente retratado) intervém nas transições entre o “cá” e o “lá” os célebres e imitadíssimos planos de ondas a rebentarem de Murnau sem função aparente e servindo como arquétipo dos raccords: elemento de ligação e comunicação de tudo a culminar num dos mais belos e insólitos planos deste filme: sentada num banco, entre cruzes, Ellen espera, prevê e revê. A imagem mais surreal da história do cinema? É no famoso plano em que o mar (navio, Nosferatu) entra na cidade e dela se apossa. A Mulher - não é preciso ser-se muito sabido em símbolos para se saber que o sangue e o mar são outros nomes dela. Desde o início (plenos de felicidade familiar) que aquele ser habitado invoca o que vai acontecer. Astruc disse em relação a todo o filme o que é particularizável nesses planos: “Um horror sem nome espreita na sombra, por detrás desses personagens tranqüilos, instalado a um canto do enquadramento, como um caçado à espera da presa”. Esse horror sem nome são, nesses planos, as flores (ligar ao tema central posterior do personagem do professor, das plantas carnívoras e ao incrível plano do grifo) e aos gatos (prenúncio dos lobos e cavalos “do lado de lá da ponte”). Depois, através dela tudo se comunica, culminando no seu apelo (ele vem, tenho de ir com ele) pronunciador e paralelo do de Renfield, no plano subjetivo em que se vêem na rua os caixões (cortados pelas traves da janelas donde vê) ou nesse outro inadjetivável, em que abre a janela e, de braços também abertos, se oferece ao mestre, cuja sombra, depois, percorrerá lentamente o seu corpo. Muito mais que do medianeiro Hutter a viagem é dela, sendo pois no seu espaço que através do seu corpo se entrevê (as casas vistas para além das janelas) que Nosferatu ganha a imagem (no espelho) e perde a sombra (o fumo dos pés). O espaço não dá para mais e ainda quase nada se disse da portentosa riqueza deste filme único. |
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