GRIFFITH E AS CENSURAS CORRETAS por João
Bénard da Costa 1
- A Cinemateca conserva muitos cortes de censura. Ou seja, muitos
rolinhos de pedacinhos de filmes (em certos casos, rolões e pedações)
que os censores, antes do 25 de Abril, cortaram em inúmeros filmes,
quando achavam que estes genericamente podiam ser vistos, desde que
expurgados de certas cenas mais inconvenientes. Há cinco anos, Manuel
Mozos fez um notável trabalho de montagem desses cortes, o que permitiu
mostrá-los.
A
gente mais nova ficava abismada: “Era isto que eles cortavam?” Riam-se
muito e não queriam acreditar. Ou perguntavam que era feito dos outros,
os cortes que esperavam ver e não lhes oferecíamos. Ignoravam que, até
finais dos anos 50, as indecências já não existiam na origem, se os
filmes eram americanos e que mesmo nos filmes europeus, mais liberais em
política e em costumes, havia conta, peso e medida. De 54 até 74 mais
coiso menos coiso, foi-se mudando? Foi-se. Mas ou se mudou tanto que o
filme nem cá chegava, ou mesmo essas mudanças, ousadíssimas nessas
revoltas décadas, já são hoje tão banais que não contam conto nem
acrescentam ponta. A censura, em vez de provocar asco, provocou risota.
Sociologicamente era interessante. Nem mais nem menos.
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- A primeira vez que pensei nisto mais a sério foi há um bom par de
anos, quando, num congresso de cinematecas, se exibiram diversos filmes
publicitários, desses que, quando eu era imberbe, antecediam o filme
propriamente dito.
E
não vou tão longe que vos lembre um filme de John Emerson de 1916, com
Douglas Fairbanks no protagonista e argumento de Tod Browning, que, nos
anos 80, para minha grande surpresa, esgotou a lotação da Cinemateca num
ciclo dedicado a Tod Browning. Chamava-se The Mistery of the Leaping Fish
e contava as aventuras de um detetive chamado Coke Ennyday. Quem
estranhasse o nome era logo esclarecido no início, quando o sujeito
aparecia com um frasco de coca (a palavra cocaína em letras
convenientemente garrafais). Era um detective de altos e de baixos.
Quando estava em alto era imbatível. Quando em baixo deixava-se vencer
pelo mais inapto amador. Mas como o Poppeye dos desenhos tinha uma
receita infalível para recuperar a forma. Não eram os espinafres, era o
pó. Snifava um bocadinho e não havia mistério que não resolvesse, mesmo o
do peixe saltador. Em 1916, era provavelmente um filme cômico, próprio
para gente de todas as idades. Nos anos 80, tornou-se (em Lisboa pelo
menos) um filme de culto. Se tivesse estreado numa sala ou passado na
televisão, imaginem a berraria.
Foi
também o primeiro filme que pôs meia América a discutir com outra meia,
pois que o ponto de vista de Griffith, sobre o que aconteceu nos
estados do Sul após a Guerra da Secessão, horrorizou liberais e deleitou
reacionários. Chamaram-lhe racista, chamaram-lhe tudo. Griffith
publicou em sua defesa um manifesto chamado The Rise and Fall of Free Speech in América, mas passou o resto da vida a tentar redimir-se da tenebrosa fama que os progressistas americanos lhe arranjaram.
Muita água correu sob as pontes. Filmes mudos deixariam de ser vistos.
Griffith terminou a carreira em 1931 e morreu em 1948. O escândalo de The Birth of a Nation parecia bem sepultado.
Mas, nos anos 70, esses filmes julgados inválidos para o comércio
reapareceram em deslumbrantes restauros e foram relançados com pompa e
circunstância e acompanhados por orquestras ao vivo, como se usava
quando foram feitos. Tudo muito bem, já que era quase unânime a
aceitação de genialidade de Griffith, ou de Griffith “como o maior”, até
que se chegou a The Birth of a Nation. E, quando se anunciou que
o filme ia ser reposto com o mesmo aparato, caiu o Carmo e a Trindade,
ou seja, as comunidades negras norte-americanas. Recuperar essa
monstruosidade racista, esse filme com brancos pintados de preto, só
bons quando apatetados e vilões quando de vara na mão? A polêmica de
1915 reacendeu-se em 1985 com muito mais estrépito e com muito mais
ódio. A tal ponto que nenhuma Cinemateca americana ousou apresentar o
filme em versão concerto, apesar de ser dos raros casos em que a
partitura original se conservou.
A primeira vez em que o filme foi assim mostrado foi em Portugal (Lisboa
e Porto) em 1995. Não acreditam? Juro-vos que é verdade. E mesmo assim,
a maestra americana - Gillian Anderson - que recuperou a partitura e,
com a ajuda do britânico Nicholas McNair, a executou no CCB e no Carlos
Alberto, achou-se no dever de preceder tão históricas sessões com um
discurso em que disse que, ao rever o filme, não podia calar a sua
repulsa e o seu nojo perante tão repugnante racismo, que devia merecer
de todos a mesma visceral condenação. Não discutia que The Birth of a Nation fosse uma obra-prima, mas era uma obra-prima maldita devido à danada ideologia do seu autor. Ou seja, quase 90 anos depois da estréia mundial (essa estréia que tão comoventemente Peter Bodganovich recriou em Nickelodeon) “o filme em se que fundou uma arte” continua a ser, pelo menos na América, um filme proscrito e um filme censurado.
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