NARCISO NEGRO, Michael Powell & Emeric Pressburger, 1947 por João Bénard da Costa Black Narcissus é um filme que faz irresistivelmente pensar em dois cineastas e em dois filmes que estão nos antípodas de Michael Powell: Robert Bresson e Les anges du péché (1943); John Ford e Seven Women (1966). Baseado num romance da escritora inglesa Rumer Godden (a autora do livro que cinco anos mais tarde inspiraria a Renoir o inadjetivável The River), Black Narcissus foi inteiramente filmado em estúdios (ao contrário do filme de Renoir), numa Índia imaginária e mítica. Powell afirmou que julgava “ter percebido bem o livro, de que gostei imenso. Li-o durante a guerra, anos antes de o filmar, e impressionou-me imenso. Só que não era filme para fazer durante a guerra. Tive imensa vontade de o realizar porque gosto da vida solitária, da vida ao pé das grandes montanhas (...) Sempre quis fazer um filme sobre as lendas sagradas e as gestas da Índia”. Para esta obra, contou Powell com Jack Cardiff e, pela primeira vez, com o concurso simultâneo dos grandes art directors alemães Alfred Junge e Heinz Heckroth (com Junge já Powell trabalhara antes). Porque um dos prodígios deste filme é a constituição do décor como seu cerne. O palácio hindu de Esmond Knight e Sabu (“palácio não no sentido que a palavra lhe evocara”) com a sua imagética à “Khamasutra” é revestido, com a chegada das freiras doutra imagética (“saint-sulpiciana” e “Kitsch”) que, mau grado o seu fundo cristão, se revela tão, ou mais erótica do que a primeira, anunciando e enunciando os fantasmas que vão possuir todas aquelas mulheres. “Só há duas maneiras de se viver aqui: como Dean ou como o eremita” diz-se a certa altura do filme. Dean é o homem dos copos e das mulheres (chega a entrar de tronco nu – numa das muitas audácias do filme – no palácio convertido em convento); o eremita é o homem que se recusa a qualquer comunicação, e nem sequer fala. As freiras que aceitaram um presente envenenado julgaram que bastava substituir um décor e impedir a entrada de homens. Mas não podiam impedir a entrada do vento (reparem na sua onipresença na espantosa banda sonora) e com ele de todas as suas memórias e de todos os seus fantasmas. Aos deuses hindus chega-se pelo sexo ou pela abulia, como qualquer “vulgata” ensina. Um e outro caminho estavam proibidos àquelas mulheres com voto de castidade e vida de caridade. Daí que elas não pudessem viver ali, onde o perfume do black narcissus contamina até a velha Flora Robson. Mas tudo se vai passar entre Deborah Kerr e a incrível Kathleen Byron, a portentosa revelação deste filme. Pessoalmente não conheço seqüência mais erótica do que aquela (momento supremo deste filme supremamente belo) em que Deborah Kerr lhe entra no quarto e a vê vestida de encarnado. Nenhuma nudez podia ter tido um efeito erótico assim: porque despida de freira, Kathleen Byron não exibe apenas um corpo, mas através da cor, a carne e o sangue oferecidos e escancarados, em suprema provocação ao manto de castidade de Deborah Kerr. O jogo de contracampos em grandes planos (culminando naquele close-up de Kathleen Byron a pintar a boca-sexo) é simultaneamente o cúmulo do exibicionismo e o cúmulo da perversão. Repare-se que, antes, nunca víramos Kathleen Byron “profana” ao contrário do sucedido com Deborah Kerr, nos vários flashbacks. Víramos o seu olhar, adivinháramos-lhe o ódio e o amor, mas nada nos preparava para essa ostentação do corpo, como se, literalmente, Sister Ruth atirasse à cara da superiora tudo o que esta fora e tudo o que esta reprimira. Simultaneamente, Kathleen Byron denuncia a hipocrisia de Deborah Kerr, declara o seu cinismo (é depois dessa noite que diz a Dean que o ama) e exibe a natureza do seu amor-ódio por Kerr e Farrar. E, à luz da vela, na longa vigília, contamina Deborah Kerr, até ao orgasmo-desmaio e até aquele inaudito fondu (que hei-de levar para a cova) onde David Farrar se “freiratiza” em Deborah Kerr na fusão das duas imagens. O décor “distingue” então sobre o filme todo: plano ultra-insólito com o miúdo, o grande plano de “filme de terror” dos olhos de Kathleen Byron, a água, o relógio, os sinos, até à luta de morte (vampírica) que termina, em torno da tensa corda, na morte de Sister Ruth. E o último pedido de Sister Clodagh a Dean é que vele pela tumba de Ruth, o sinal da incrível fusão dos personagens. E é por aqui que Black Narcissus evoca Les anges du péché. Só que enquanto, no também perversíssimo filme de Bresson (embora com aparências contrárias) a transfusão de Anne Marie em Thérèse se processava através da Graça, em Black Narcissus processa-se através do pecado. Mas os extremos tocam-se: se era o Pecado (nesse sentido) que juntava a leiga e a freira do filme de Bresson, aqui é a Graça (o vento, a Índia) que une indelevelmente Ruth e Clodagh. Em estilos completamente diferentes (provavelmente os mais diferentes que imaginar se possam, no extremo do espectro do cinema), Powell e Bresson realizam exatamente a mesma coisa: a experiência poética total. Raymond Bellour, numa bela análise do filme, cita Blanchot: o texto tradicional como imagem dum círculo branco contendo no centro um núcleo negro. E salienta que Powell procedeu exatamente como Lautrémont: “aumentar o núcleo negro até o fazer cobrir toda a superfície do círculo, desenvolvendo ao máximo as pulsões do inconsciente, de modo a que toda a racionalidade desapareça”. É essa entrega ao irracionalismo total que aproxima, a meu ver, o filme de Powell do de Bresson. Se o autor de Les anges escolheu a “écriture blanche” Powell optou pela “oeuvre au noir”. Se Bresson escolheu o despojamento formal, o autor de Gone to Earth escolheu o delírio e o excesso, a fuga e a codificação, num imaginário igualmente críptico. A aproximação com Seven Women de John Ford é talvez ainda mais obscura. Porque não a faço pela idêntica situação de clausura em “orientes de sonho ou não” das mulheres de Ford e das mulheres de Powell. Nem pelo paralelismo que se possa fazer entre a relação Margaret Leighton-Sue Lyon no filme de Ford e as de Deborah Kerr-Kathleen Byron no filme de Powell (o lado homossexual). Onde os dois filmes, igualmente antagônicos em estilo e linguagem se aproximam é na inscrição do sexo feminino (o sexo não aparente) como lugar de todos os conflitos éticos e estéticos, é na suprema metáfora vaginal, elidida em Ford pela figura do “grupo” e elidida em Powell pela obsessiva repetição de grandes planos. Em Ford, o corpo feminino coletiviza-se; em Powell fragmenta-se. Por outro lado, a figura masculina (já em tempos notei que em Seven Women Anne Bancroft tratada à John Wayne assume um idêntico papel): David Farrar, misto de Walter Pidgeon e Stewart Granger, é o homem só enquanto catalisador. A guerra é outra e bem mais funda (o que é igualmente visível na personagem de Sabu e no diálogo com Deborah Kerr sobre a masculinidade ou a forma masculina de Cristo). A conversa vai longa e pode parecer a muitos excessivamente cinéfila ou excessivamente hermética. Abstrusa pode ainda parecer a comparação entre dois cineastas do rigor e da disciplina como Ford e Bresson com este filme completamente desregrado e totalmente indisciplinado. E convém que se diga que para amar Black Narcissus é preciso uma boa dose de “infantilismo”, no sentido de uma deixa de Deborah Kerr (“Without discipline, we’re all like children”). É preciso amar o gratuito, o excessivo, o maravilhoso, os filmes de terror, os filmes fantásticos e os filmes de aventura. Porque, sobretudo, Black Narcissus é tudo isso, ou melhor, está entre tudo isso: os Himalaias, o “holy-man”, Sabu, Jean Simmons (reparem bem nela), as gaiolas, os papagaios, os marajás, os frescos hindus, os santos “Kitsch”, a freira, as jóias (o fabuloso colar de Deborah Kerr), as trompas, os crepúsculos e aquele vento, o black narcissus e as coisas que se julgavam esquecidas “and now they came back home”. “It’s that place, with such a strange atmosphere”, responde Deborah Kerr a Flora Robson quando ela lhe fala desses inesperados flashbacks. É exatamente isso. É este filme, é a atmosfera estranhíssima dele, o vento, o vento, o vento, a perda de qualquer identidade (“I forgot who I am”) e a perversão em qualquer sentido da palavra. “That rare thing, an erotic english film about fantasies of nuns” escreveu David Thompson. “That rare thing” na verdade. Mas o seu erotismo vai muito para além das fantasias das freiras. Digamos simplesmente que Black Narcissus é um filme fantástico e erótico. Com Kathleen Byron. E, já agora, para acabar como comecei, outra comparação “insólita”: quem é que se lembrou do Vertigo de Hitchcock? Precisamente, na metamorfose de Kathleen Byron, ela também Judy-Madeleine deste filme, ela também morrendo (vertiginosamente) sob o signo do hábito e sob o signo das monjas. |
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