METRÓPOLIS, Fritz Lang, 1927 por João Bénard da Costa Êmbolos,
pistões, rodas, em grandes planos e movimentos de vai-vem até ao plano
do relógio, que tantas vezes voltará no filme. Este início de um dos
mais célebres filmes de Fritz Lang e duma das mais célebres obras do
cinema alemão dos anos 20 é praticamente retomado na obra, seis anos
posterior, O Testamento do Dr. Mabuse. Só que neste último filme - já sonoro - a presença do mundo mecânico é dado em off na banda de som, conferindo às imagens iniciais grande peso opressivo; em Metropolis,
pelo contrário e para que o som possa ser visualizado, como disse Lotte
Eisner, o mundo mecânico surge, no seu máximo aparato, no écran. Temos
assim que, num filme mudo, a idéia inicial é sonora, enquanto num filme
sonoro (O Testamento) o regular ruído inicial das máquinas
tipográficas ouvido na banda sonora é predominantemente visual. Se o
efeito dramático é paralelo, o modo de o atingir é oposto; em Metropolis a montagem dá-nos o que não existe (o som); no Testamento a banda sonora dispensa a planificação e a montagem visual de ser mais explícita. Se começarmos por este aspecto é porque toda a estrutura de Metropolis
(e a partir dele de quase todos os filmes de Lang) é uma estrutura que
se baseia na permanente contrapolaridade imagem sonora - imagem visual,
tanto quando a imagem sonora já podia ser incorporada no filme como
quando ainda não o podia ser. O que confere a Metropolis uma dinâmica e um ritmo que marcam, na história do cinema, uma verdadeira revolução. Com Metropolis, Fritz Lang fez a sua primeira incursão nos domínios da futurologia (a que havia de voltar em A Mulher na Lua).
E se não poucos precedentes abriu (qualquer futuro filme de
ficção-científica se inscreve sob a sombra tutelar destas duas obras)
também se prestou a não poucos equívocos. O primeiro diz, mais uma vez,
respeito à controvérsia em torno do expressionismo, já que dos famosos décors do Metropolis
ao robô de Schulze-Middendorff, da representação de Brigitte Helm à de
Klein-Rogge, se tem dito e repetido que esta é a obra mais
expressionista de Lang. O autor recusou sempre tal aproximação: afirmou
que os décors (desenhados por Kettelhut e executados por Hunte)
tinham sido mais sugeridos por recordações dos arranha-céus
nova-iorquinos do que pelas distorções expressionistas; que as
contorções de Brigitte Helm (acentuadas quando a projeção é feita a 24
imagens por segundo) procuravam sobretudo criar o caráter possuído (por
anjos ou demônios) da personagem de Maria; que a concepção de
Klein-Rogge do Rothwang é bastante mais futurista do que expressionista
e, mais tarde, admitiu mesmo que toda a simbologia da obra seria mais
surrealista do que ligadas às matrizes do Die Aktion. A
única exceção seria o robô em que Schulze-Middendorff teria
deliberadamente criado um objeto expressionista para sublinhar a
inversão do mundo orgânico. Se
Lang tem provavelmente razão em tudo quanto diz (o que é patente até no
modo como evitou excessos emocionais), a persistência das clássicas
diagonais expressionistas, das cruzes distorcidas, ou dalguns
portentosos décors (como o da seqüência da Torre de Babel)
apontam para uma permanente evocação dessa estética, evocação que se
acentuará na magistral seqüência da catedral. A simbologia não é (ou
poucas vezes o é) deliberadamente expressionista, como também o não
serão nem os ethos nem o pathos da narrativa, mas o espaço e a luz
de Metropolis, dificilmente seriam concebíveis sem essa tradição aqui efetivamente incorporada. Outra
controvérsia em torno deste clássico do cinema é a que se refere ao
substrato ideológico da obra. Há que convir que vários dos elementos do
filme (a casa de Rothwang marcada com a estrela judaica, a reconciliação
final das classes, com o triplo aperto de mão) se prestam aos ataques
dos que consideram a obra bastante suspeita. Se não interessará
argumentar que vários desses elementos se devem mais a Thea von Harbou
do que a Lang, interessará que a temática do filme nunca é a do conflito
de classes, mas, e uma vez mais, a da oposição do mundo subterrâneo ao
mundo das alturas, num e noutro uma vez mais dominando a mulher e o
homem. E convinhará sublinhar que há na angélica Maria um demonismo
talvez ainda mais explosivo que no seu duplo maléfico e que os brandos
discursos pacifistas que faz às massas não são mais inocentes do que os
incitamentos à revolta do robô. Num caso como noutro, o demonismo está
na demagogia e se Lang foi premonitório não o terá sido a favor dos
vencedores da década seguinte, mas exatamente contra eles. Maria (como a
seqüência da catedral poderá ajudar a compreender) é a personificação
do lado religioso das éticas maniqueístas, dominadas na cultura
ocidental pelas imagens do pecado que vemos na Igreja. Aqui, o nome da
protagonista presta-se a algumas reflexões, bem como o fato da sua
ligação a Rothwang ter como espaço privilegiado o da imagem gótica
recriada na catedral de Lang. A união dos mundos “maléficos” dá-se nesse
espaço sagrado, onde o jovem Frederson sempre se perde, engolido por um
décor tão estranho ao seu habitat natural como ao “mundo das cavernas”
que tão ambiguamente o atrai. E
muitas outras imagens podem acrescentar bastante à visão desta
singularíssima parábola: da caverna de Platão à alegoria latina da
revolta dos membros contra o estômago, muitos são os mitos convocados
por Lang e nenhum deles de leitura única ou redutível a um único
sentido. Sabe-se que Lang declarou que o que mais o interessou no Metropolis
foi o conflito entre o mundo mágico e oculto (o mundo de Rothwang) e o
da moderna tecnologia, personificado pelo pai Frederson. Se não deixa de
ser inquietante que o segundo tenha que convocar o primeiro para
dominar os abismos a que nem um nem outro têm acesso, é-o muito mais que
o intermediário escolhido seja a mulher, simultaneamente a personagem
que no filme se encontra em cruzamento entre esses dois mundos. E o que
faz desta obra, porventura desigual, porventura desequilibrada,
porventura híbrida, um dos mais apaixonantes cumes da arte do nosso
tempo é que a sua ambigüidade nunca possa ser reduzida a uma
narratividade, mas ser expressa, na sua portentosa arquitetura
coreográfica, numa forma irredutível a qualquer outra aproximação que
não a da linguagem que usa e totalmente domina. Metropolis é o filme do espaço em movimento: The movie-screen. |
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