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   O ÚLTIMO MERGULHO, João César Monteiro, 1992 por João Bénard da Costa A Muda  “Montrer mouille.”  “O destino impele-me para o desconhecido e eu bem o mereço.”  (fala de Hyperion a Diotima em Hyperion, citada no final do filme, voz de Luís Miguel Cintra sob [ou sobre] o écran negro) 1 - Por acaso, escrevo sobre O Último Mergulho
 no dia em que a imprensa portuguesa publicou as primeiras críticas aos 
dois primeiros filmes (“O Ar” e “O Fogo”) da série “Os Quatro Elementos”
 em que João César Monteiro se atirou à Água. Foi uma encomenda da 
Televisão Portuguesa, depois de uma proposta de Paulo Branco. Os 
críticos que hoje leio espantam-se (alguns, virtuosamente, indignam-se) 
que os autores dos episódios já estreados (João Botelho e Joaquim Pinto)
 se tenham esquecido que estavam a fazer tele-cinema e não cinema. Ainda
 não vi os ditos filmes. Mas, se tiverem razão, benza-os Deus. Deus, que
 abençoou certeiramente O Último Mergulho, que é só cinema, todo o
 cinema e nada mais do que o cinema. César Monteiro não esqueceu a 
televisão ou (como é que dizem?) o visual. Pelo contrário, muito 
alembrado deles, virou-lhes as costas. Onde queriam chegadinho, ficou 
longe. Onde queriam longe, ficou chegadinho. Inventou as distâncias. O 
cinema é a arte dessa invenção. E é possível ouvir as citações finais do
 Hyperion - uma em francês, outra em português - como manifestos 
estéticos, brados guerreiros sobre o cinema e pelo cinema. “Não deixar 
que a guerra se arraste, por amor à paz”. “Esta terra coberta de luto, 
desnudada, que eu tanto queria vestir de bosques sagrados e adornar com 
todas as flores da vida grega” é também a terra pilhada do cinema, em 
1992. É também, mas não é só. Como O Último Mergulho é também, mas não é só, um canto fúnebre. O Último Mergulho
 é um filme sobre o Cinema e sobre Portugal. Como todos os filmes 
anteriores de João César Monteiro. Este só talvez seja o mais raivoso. 
Mas tropeço na ternura e tenho menos certezas.  2 - Vamos lá então começar pela raiva e pela ternura. Mesmo lembrando-nos bem das provocações das Recordações da Casa Amarela,
 jamais César Monteiro foi tão longe nos excessos verbais. Nunca em 
filme português algum se ouviu linguagem tão desbragada e tão off
 (o monólogo da velha paralítica durante o silencioso jantar dos dois 
candidatos a suicidas). Como se recorda no filme, antes das Salomés 
despirem os sete véus, já dizia o velho Herodes que ou te calas ou te 
fodes. César Monteiro mediu as distâncias e decidiu não se calar. Até 
porque este filme é também - eu diria sobretudo - um filme sobre o 
silêncio: uma protagonista muda, cinema mudo. Abre-se e fecha-se o som. 
Fez-me lembrar um texto muito antigo do Langlois, a propósito do L’atalante
 de Vigo, em que ele dizia que há filmes em que, fechado o som, a imagem
 se achata, e outros em que, aberto este, a imagem adquire volume. Os 
dois planos-seqüência das duas danças de Salomé (um, com Strauss, outro 
sem ele) parecem estar no filme para demonstrar que há um terceiro 
caminho. Se a imagem não se achata na dança muda (ou na dança da muda), é
 porque na retina e na memória persiste a dança musical. O que prova que
 o cinema é questão de tempo: sobretudo questão de tempo. E é esse tempo
 que vai deixando que a raiva pouse e que a ternura comece a vir à tona 
de água. A primeira dança vê-se com admiração cúmplice, saboreando as 
transgressões, sucessivas e compulsivas. É uma seqüência de antologia. 
Mas é de ontologia que se trata. E, por isso, é quase impossível ver a 
segunda dança sem os olhos rasos de água. É já da ordem do mistério, do 
mistério do cinema. A grande pureza só possível no grande vazio e no 
grande silêncio. Este filme começa afinal com tangos e fados rascas e 
acaba com as “Variações Goldberg” quando “as desgraças excederam o 
limite” e quando (depois do evergladiano plano dos flamingos) Hyperion 
evoca Diotima “Ó minha amada!”. Mas o exemplo supremo da passagem de um 
registro a outro, ou seja da raiva à ternura (podia dizer da abjeção ao 
sublime, mas não é exatamente a mesma coisa e as palavras e as imagens 
são de alta voltagem) é a seqüência que encerra a primeira noite, depois
 do Santo Antoninho, do chafariz, da “Cantiga da Rua”, das putas velhas e
 dos bêbados. Os protagonistas entram numa pensão, chamada 25 de Abril. 
Três mulheres e dois homens. A pensão é rasca, a situação é rasca, a 
dona da pensão é rasca, a canção que Eloi trauteia é rasca. Os planos, 
esses, quer o da escada (Frenzy) quer o do corredor (Vertigo)
 são hitchcockianos. Há uma cadeira no fundo do corredor. Entramos 
primeiro no quarto que Eloi partilha com duas pegas. Continuamos “a 
baixo nível”, com uma delas sentada na pia em demoradas lavagens que só 
por graça se podem dizer íntimas. Corte súbito e passamos a um grande 
plano de Samuel e de Esperança olhando a câmera, sentados, enquadrados a
 meio-busto. E começam a fazer-se festas um ao outro, muito tempo, todo o
 tempo. Nunca deixam de olhar para a câmera como se estivessem diante de
 um espelho, espelho que é ela (câmera) e somos nós (espectadores). Como
 se nos fizessem festas, também a nós. A situação é cumulativamente 
“natural” (sendo ela muda, ou surda-muda, só essa comunicação lhes é 
possível) e “artificial”. Ou cultural, já que todo o plano (longuíssimo)
 é uma homenagem ao cinema mudo, revisitado e glorificado. Mas não se 
passou de um mundo a outro sem mais aquelas. A alma e os corpos não se 
separam assim. Obscena (isto é, fora de cena) prossegue a banda sonora, 
recordando-lhes e recordando-nos o que se passa no quarto ao lado. Até 
que a câmera recua, situando os dois, sentados na borda da cama. Ambos 
se deixam cair para trás, cair para ela. Corte e a noite acabou. No dia 
seguinte, um dos suicidas continua de ilusões perdidas. O outro, sabe já
 por que e para que quer viver. No cinema mudo, inventou-se o amor. No 
corredor de Vertigo perde-se um personagem e ganha-se outro.  3 - Dos “Quatro Elementos” da série de que O Último Mergulho
 faz parte, César Monteiro escolheu a Água. Em todos os seus filmes 
anteriores (não me estou a lembrar agora de nenhum que me desminta), era
 já o elemento lustral associado à Mãe (Recordações) ou à Morte (À Flor do Mar).
 Todos eram filmes líquidos. Aqui - embora gente mais distraída vos vá 
dizer que a água é mero pretexto, associada à história do último 
mergulho - tudo e todos banham nela. Eloi escolhe-a, fiel ao pacto e à 
segunda noite, para o salto mortal, de pés e a pique, como convém ao 
personagem. Mas, nesse momento, o seu jovem companheiro separa-se dele e
 vai comprar o manjericão com que desperta a amada do sono. E junto ao 
mesmo rio (afinal duas vezes), depois de múltiplas rimas com ramos e com
 flores, acontece esse inadjetivável travelling no campo de girassóis. 
Agora, sim, a câmera quase roça os rostos e as flores. E é o sol (rima 
maçônica e mozartiana das insígnias dos azulejos da cervejaria aonde a 
muda fala a sua carta em francês) que se multiplica em todas as suas 
alegorias, para a grande explosão lírica de um amor finalmente diurno. 
“Os meus pensamentos mais sublimes são como chamas que apartam o gelo”.  No
 princípio, o homem mais velho dissera ao homem mais novo, impedindo-lhe
 o último mergulho, que o céu pode esperar. Por ele, esperou duas 
noites, uma de fado e outra de ópera. Mas para aquele que a desoras fora
 ao pontão para morrer, o céu terá que esperar muito mais. O cinema mudo
 e o cinema sonoro - ou seja o cinema, ou seja a vida, ou seja o amor - 
determinaram a muda mudança. E, como num filme de Rossellini, o milagre 
aconteceu. Por força de duas viagens até ao fim da noite e de tudo 
quanto nessas viagens se viu e se viveu. Uma velha que tinha um cão (e 
debaixo da cama o tinha), uma “verdadeira princesa”, um mercado, um 
barbeiro que canta “O Barbeiro de Sevilha”, elevadores que sobem, 
elevadores que descem, um pé numa almofada, marinheiros russos a cantar “Le Chant des Partisans”.
 O inventário podia ser muito maior. É da acumulação de tudo isso e dos 
raccords entre tudo isso (por exemplo, o raccord que leva da criança 
entregue pela mãe ao velho rei Herodes do massacre dos inocentes) que 
nasce o novo olhar e o olhar novo.  Consolo, só em nós o poderemos buscar. E encontrar.  4 - No princípio deste texto, invoquei Deus. Não foi em vão. O Último Mergulho
 é um filme sagrado, um filme místico. Quem souber, saberá. Mas Deus - 
de Deus - é também o alter-ego que João, o realizador, inventou para si 
nas Recordações da Casa Amarela. João de Deus. Veio para ficar. As noites de O Último Mergulho (prodigiosamente fotografadas por Dominique Chapuis) têm a luz e a sombra das noites das Recordações
 e visitam os mesmos bairros, os mesmos becos, os mesmos jardins. Nunca 
Lisboa foi tão noturna, tão lívida, tão secreta, tão recôndita. E, no 
fim da primeira noite, pouco antes da subida à pensão 25 de Abril, Deus -
 João de Deus - visita o filme, esperando, à porta de uma latrina 
miserável e com um rolo de papel higiênico na mão, que de lá saia a sua 
protagonista. Depois, ele vai satisfazer necessidades fisiológicas e ela
 necessidades teologais.  Mais
 tarde, no fim da dança dos sete véus (a primeira), Salomé pede a 
Herodes a cabeça de João de Deus Baptista. A cabeça do realizador.  No
 imenso risco deste filme de tudo ou nada, o realizador jogou a cabeça 
no salto mortal da repetição das danças. A segunda dança é, de certo 
modo, a resposta ao pedido de Salomé. Se dançares para mim dar-te-ei o 
que pedires, peças o que peças, tinha prometido o Tetrarca. E cumpriu a 
promessa, quando “a máquina do universo já tremia”.  Aliás,
 não jogou a cabeça apenas nessa seqüência. Jogou-a em todo o filme, 
nesses sucessivos mergulhos que correspondem aos fulgurantes raccords. 
Cada um desses raccords (tanto como do da maternidade, gosto do que nos 
leva das ruas do Cais do Sodré ao interior do bar, onde está o bebê ao 
colo da italiana) é mais uma descida para o fundo. E do fundo do poço (o
 poço do profeta) passa-se para a mais misteriosa seqüência, essa do 
quarto da Esperança, com os ramos de árvore à cabeceira e o pé pousado 
na almofada mais breve e ocultamente silenciosa. Depois, é o longo 
travelling a seguir a protagonista, sozinha, à noite, num jardim de 
Lisboa. É o fim da noite, é o fim da mudez, é o fim da mudança. A maré 
começa a subir e a última água é batismal. Mais ce qui m’étonne, c’est l’Espérance. A citação é de Péguy. O sujeito da oração é Deus.  Assim
 se consome este “projeto verdadeiramente extraordinário”. Com uma 
quadrilha de pêgas e ladrões, César Monteiro quis estabelecer o Paraíso.
 Entre girassóis e flamingos, conseguiu-o.   | 
 
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