MARNIE, CONFISSÕES DE UMA LADRA, Alfred Hitchcock, 1964

por João Bénard da Costa


Mother, Mother, I am ill
Send for the doctor over the hill
Mother, Mother, I feel worse
Send for the lady with the alligator purse


(canção dos miúdos, no final de Marnie)


A concepção de Marnie, estreado um ano depois de The Birds, coincide com a desse filme e foi desenvolvida em simultaneidade com ele. Hitchcock parece até, a certa altura, ter pensado em rodar primeiro Marnie e depois The Birds, com a idéia num come back de Grace Kelly (já então Princesa do Mônaco) para o papel de protagonista. A coisa chegou a ser encarada a sério, houve até uma espécie de plebiscito entre a minúscula população de Monte Carlo para saber como os súbditos de Grace reagiriam à hipótese de ver a soberana de novo nas telas, mas perante reações negativas, a atriz de To Catch a Thief desistiu. Hitch descobriu então Tippi Hedren (a sua loura mais próxima de Grace) e decidiu fazer com ela The Birds e Marnie.


Tippi Hedren viria a ser aliás a última das suas famosas e frígidas louras, num filme que sintomaticamente marca o fim de outras colaborações capitais: foi o seu último filme fotografado por Robert Burks (operador de todas as suas obras a partir de Strangers on a Train, com a exceção de Psycho), foi o seu último filme com música de Bernard Herrmann (compositor de todas as suas obras, a partir de The Trouble With Harry), foi o seu último filme montado por Tomasini (montador de todas as suas obras a partir de Rear Window, com exceção de The Trouble With Harry).


Sublinhemos tantas despedidas. Não será inteiramente gratuito ver nelas o sinal do fim duma fase da carreira de Hitchcock (dos inícios dos anos 50 aos inícios dos anos 60) que, para muitos, corresponde ao período áureo do realizador e a passagem à fase final da sua carreira, com quatro filmes bastante dispersos no tempo e em “corte” sensível com a produção anterior. E note-se, para terminar a introdução, que Sean Connery (o então celebérrimo 007) é o último dos seus heróis da família que tem por arquétipo Cary Grant e se prolonga nas imagens paralelas de James Stewart, Ray Milland, John Forsythe, Henry Fonda, John Gavin e Rod Taylor.


A questão que divide a crítica é a de saber se Marnie é a última das grandes obras-primas ou o primeiro dos específicos e insólitos filmes finais. Quanto ao público, Marnie nunca foi um favorito, desconcertando sensivelmente as audiências que só reconheceram a “mão do mestre” na saborosa seqüência do roubo do cofre com a mulher-a-dias surda.


Na sua muito citada obra sobre Hitch, Robin Wood faz o inventário dos defeitos que a crítica da época mais assacou a Marnie: clamorosos lapsos técnicos (cenários pintados da rua de Mrs. Edgar, a mãe de Marnie, transparências óbvias na caçada e na cavalgada subseqüente da protagonista, o uso do zoom na última tentativa de roubo de Marnie, efeitos fáceis e de gosto duvidoso como os flashes encarnados de cada vez que a protagonista colapsa); ingenuidade ou esquematismo na abordagem do caso psicanalítico (Hitch teria reforçado clichês da psicanálise, como já teria sucedido em Spellbound); incoerência até no argumento (várias vezes Marnie “passaria sinais vermelhos” sem reagir). Não tenho espaço para discutir esses supostos lapsos técnicos e de argumento e por isso recomendo a leitura da brilhante análise de Robin Wood a quem deseje aprofundar essas questões.


Quanto à questão da psicanálise ela é fulcral porque mais uma vez os críticos não repararam que só superficialmente esse é o tema do filme. Tal como em Spellbound ou em Psycho, a explicação psicanalítica é abordada por Hitch com evidente ironia, o que está expressamente sublinhado no filme pelo episódio da associação de idéias, pela impossibilidade de leitura unívoca do flashback e pelas conotações sobre o tipo de informação que Mark tenta encontrar (o livro Sexual Aberrations of the Criminal Female) e até pela própria ironia de Marnie (“You Freud, Me Jane”).


Tanto quanto Spellbound, Marnie não é um filme sobre a psicanálise, mas sobre o desejo sexual, correlativo, no universo católico que formou e informou Hitchcock, do tema da culpa. Neste sentido, se The Birds é o ponto limite da interrogação de Hitch sobre a culpa, Marnie é o seu equivalente sobre o tema do desejo, com a desmontagem do MacGuffin que é a culpada associação desse desejo ao Mal. E a psicanálise é só a chave falsa para abertura dessa sempre cerrada porta.


Vejamos mais de perto: é evidente que Hitch multiplica neste filme associações com conotação psicanalítica conhecida, na maior parte dos casos vindas de obras anteriores: associação roubo-sexo (Marnie prolongando To Catch a Thief); recordação traumática-lapsos ou ausências (Marnie na linhagem de Spellbound); comportamento sexual “aberrante” - imagens maternas e paternas (correspondências da mãe de Marnie com Mrs. Bates de Psycho); a carga sexual do cavalo (esboçada em Suspicion, Under Capricorn e em Vertigo e notar-se-ão as semelhanças da seqüência da estrebaria com a seqüência análoga de Vertigo); amor fetichista (o fetichismo é a caracterização suprema de Sean Connery, como Hitchcock disse “um homem que quer ir para a cama com uma ladra porque ela é ladra, tal como outros querem ir para a cama com uma chinesa ou uma negra”); relação água-sexo (tentativa de suicídio de Marnie na piscina - paralela à tentativa de afogamento de Madeleine no Vertigo - após a inadjetivável seqüência em que a protagonista é despida pelo marido). Mas todas essas associações (e outras mais) não explicam nem Marnie nem Mark, nem a atração que os leva um para o outro (ou um contra o outro) e são precisamente outras tantas ocultações do inexplicável dessa atração e do sufocante desejo a ela ligado.


Detenho-me em três momentos do filme, para me aproximar da extrema vertigem desta obra que, pessoalmente, não hesito em colocar entre os máximos filmes de Hitchcock:


a) Uma vez mais, na obra de Hitch, o início e o fim do filme nos dão chaves fundamentais. Após as páginas do livro a desfolharem-se (desejo fundo de Marnie de ser aberta, com o espantoso equivalente futuro na sua relação com o cavalo - “Oh Forio, if you want to bite somebody, bite me”), destacam-se no silêncio os passos de Marnie, que vemos levar na mão duas malas, uma cinzenta, outra amarela, esta captada depois em grande plano. Tem-se reparado que essas duas cores acompanham a protagonista ao longo de todo o filme, mas há mais do que isso. Este termina com a cantilena das crianças e com as referências à “lady with the alligator purse” (“a senhora da mala de crocodilo”), chamada em vez do médico, quando tudo ficou pior. A referência é obscura mas não será muito ousado ver nessa lady uma metáfora da morte. Desde o início, a imagem da mulher e daquela mulher vem pois marcada pela correlativa idéia do inacessível e do mortal. A carga que transporta é uma carga de morte, que não se aniquila ao longo do filme, nem se destrói com o flashback catártico, pois regressa explicitamente no final, esclarecendo os primeiros planos do filme.


Logo a seguir, o inquietante Rutland (que regressará na fundamental seqüência da festa, quando Mark incorpora Marnie em todo o seu passado) descreve a ladra em termos muito próximos da descrição dum cavalo (gaba-lhe as pernas e os dentes) e associa imediatamente esse tema ao da frigidez (“always pulling her skirt down over her knees as if they were a national treasure”). É essa descrição, e essa alusão que fazem nascer (associadas ao roubo) o desejo de Sean Connery. Futuramente o desejo de Marnie só explode com o cavalo (mata-o com as mesmas palavras que proferiu quando matou o marinheiro) e a frigidez é a máscara desse desejo (ou a forma suprema da voracidade sexual da protagonista, como transparece na já citada seqüência em que é despida). É tanto pelo roubo como pela frigidez que atrai Mark e o prende a ela, nas muitas noites brancas do filme (e que essa anulação do sexo seja eroticamente superior à sua evidência é o que demonstra o personagem contrapolar e aberto da cunhada de Mark).


b) Quando Marnie confessa a Mark a sua frigidez, este objeta-lhe com os beijos passados que nada disso tinham. Esses beijos tínhamo-los visto na cavalariça e sobretudo - e talvez seja o mais belo beijo da obra de Hitch - no fabuloso grande plano da tarde da tempestade no escritório de Mark, quando este lhe fala da supressão do passado. O que a tempestade significa sabemo-lo no final, tornando mais duplamente sintomático que seja durante ela que Marnie se entregue assim a Mark. A importância desse beijo é fulcral porque, como quando é despida, o que nos é dado a ver ultrapassa tudo quanto pude dizer. Ela que escolhera a permanente aparência de loura quando, como a mãe lhe diz, “too blond hair always looks like girl trying to attract men”.


c) Finalmente, nunca será demais sublinhar neste filme a ausência de um ponto de vista identificador. Já se disse que se o espectador fosse chamado a identificar-se com Mark, este filme seria uma espécie de recapitulação do Vertigo. Mas se não nos identificamos com o inquietante e fetichista Mark também não nos identificamos com Marnie, cujo ponto de vista raramente é o do filme. Estamos sempre descentrados, o que é, de certo modo, novo na obra de Hitch (e talvez daí a perplexidade do espectador). Só que esse descentramento é capital, porque a fissura entre a total assunção do desejo e a sua total recusa, a coincidência entre uma e outra atitude (ou seja a anulação da fissura) só pode dar-se quanto estamos entre, ou melhor dito quando nenhum dos pontos de vista é suficiente para esgotar a vertigem e o mistério do desejo recusado e entregado.


Para desejarmos totalmente temos que totalmente nos reter. A explicação nada explica. A palavra nada liberta. As únicas coisas que amamos, como diz a mãe, são aquelas que nunca conseguimos dizer. Nesse indizível do sexo e do desejo, é difícil ir mais longe do que esta obra cerrada. Cerrada, ainda, pela pintura em trompe-l’oeil - de um barco, ao fundo da rua da casa da mãe de Marnie. O espaço da pintura fecha o do cinema. Aquele barco (de onde veio o marinheiro violador) ficou sempre ali. A sua presença final (e no final) destrói o possível happy-end. A catarsis da recuperação da recordação da memória não funcionou. Como quando se acorda de um pesadelo e se descobre, no real, o que mais nos aterroriza nos sonho. No “falso” mar, o “falso” barco continuará a tapar todas as saídas.


 

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