À BEIRA DO MAR AZUL, Boris Barnet, 1936 por João Bénard da Costa Em
1956, Fernando Gil “apresentou-me” Jean-Victor Hocquard. Devo-lhe -
através de um pequeno livro da coleção “Solfèges” publicada pela Seuil -
a descoberta central da minha vida: Wolfgang Amadeus Mozart, no ano do
bicentenário do nascimento. Devo também a Hocquard a expressão “oeuvres de pure intimité” que usou, para destacar no corpus
mozartiano, “peças relativamente pouco conhecidas que os ouvintes se
arriscam a escutar com indiferença, sem a atenção recolhida que é
fundamental para permitir a sensibilidade ao despojamento final da arte
mozartiana.” Desde então, eu e alguns raros outros nunca mais deixamos
de chamar de “pure intimité” obras e pessoas que só a essa atenção e só a esse recolhimento plenamente se revelam. Mozart é, certamente, como Schubert também o é, um compositor de “pure intimité”.
Muitos escritores, poetas, pintores o são também. Evidentemente, muitos
filmes e alguns cineastas. Nicholas Ray vem à cabeça. Tarde, demasiado
tarde na vida, descobri essa pure intimité na obra do russo Boris Barnet. E, nela, o mais transparente e o mais secreto dos filmes, U samogo sinego morya (1936) que a partir daqui designarei pela tradução literal À Beira do Mar Azul. Barnet,
que se suicidou em 1965, aos 63 anos, não foi muito apreciado em vida.
Nem na Rússia - nesse tempo, U.R.S.S - poucos deram atenção a um homem
que cultivou, sobretudo, o mais “burguês” dos gêneros: o melodrama. Fora
da Rússia, os companheiros de caminho ou os “idiotas úteis”
limitaram-se a repetir as “verdades” oficiosas. Sadoul, por exemplo,
que, no ocidente, foi quem mais viu cinema soviético, quase lhe reduziu a
obra a Okraina (1933), o seu título mais célebre, achando todo o resto interessante mas menor. Que
eu saiba, apenas um homem (e não lhe conhecia a obra toda) lutou por
Barnet, no ocidente, ainda em vida dele. Foi, com as suas mil antenas,
Henri Langlois, que, a partir dos anos 50, organizou na Cinemateca
Francesa algumas retrospectivas dele e o achava o grande poeta do cinema
russo. Por esses anos - 1953 - um jovem de 26 anos escreveu nos Cahiers du Cinéma o primeiro texto da vida dele, aproximando Shchedroye leto (Um Verão Prodigioso), filme de 1951, de Renoir e de Becker, outros cineastas de “pure intimité”.
Chamava-se (chama-se) Jacques Rivette e foi a primeira vez que teve o
nome impresso. Contudo, quando Barnet se matou, mesmo os Cahiers
se confessavam “hesitantes” quanto a uma apreciação global, alegando
falta de informação. Que conheciam eles, de fato, das 21
longas-metragens ou das muitas curtas-metragens que Barnet assinara
entre 1926 e 1963, ao longo de quase quarenta anos? Menos
desculpas teve e tem a Cinemateca Portuguesa para, em 1987, em nota
assinada por um ex-militante do PCP, o caracterizar como um “René Clair
soviético”, comparação absurda, comparação obscena. E menos desculpa
porque, por esses anos, já Barnet começava a ser objeto de culto na
Europa Ocidental. Em 1980, o National Film Theatre organizou-lhe uma
integral em Londres. Em 1982, o acontecimento repetiu-se no Festival de
La Rochelle. Em 1983, foi a vez de Locarno, que editou, por essa altura,
o primeiro volume consagrado a Barnet, com notáveis contribuições de
Ian Christie, Noël Burch, Bernard Eisenschitz, etc. Só nos anos 90, a
Cinemateca Portuguesa acordou. Em 1994, À Beira do Mar Azul foi
exibido, pela primeira vez em Portugal, no ciclo “Os Melhores Filmes
Europeus”, co-organizado com a Lisboa 94. Voltou a passar em 1995, entre
os filmes-chave da história do cinema. E, em 1996, organizou -
finalmente - uma integral Barnet, e publicou um catálogo que é
basicamente a tradução da edição de Locarno. A
Portugal, Barnet chegou cerca de trinta anos depois de ter morrido e
cerca de sessenta anos depois do primeiro filme. Antes de 1994, só
conhecíamos dele - sempre a Cinemateca, para o bem ou para o mal - Devushka s korobkoy (A Rapariga da Caixa de Chapéus) de 1927, Okraina (ambos exibidos em 1987) e Miss Mend (1926) revelado em 1995. Em A Rapariga da Caixa de Chapéus, Barnet descobriu a belíssima Anna Sten que, dois anos depois, passou à Alemanha (foi a Grushenka numa célebre versão dos Irmãos Karamazov de 1930) e que, em 1932, Goldwyn levou para a América, anunciando-a como uma nova Garbo ou uma nova Marlene. Tinha a mesma star-allure
mas, vá lá saber-se porquê, apesar de alguns Vidor e de um Mamoulian em
que foi resplandecente, crítica e público não lhe pegaram e as
más-línguas chamaram-lhe injustissimamente “Goldwyn’s folly”. Adiante. E adiante porque, depois de Anna Sten, Barnet descobriu a não menos fabulosa Elena Kuzmina em Okraina. E Elena Kuzmina - louríssima, humidíssima, azulíssima - é a Macha de À Beira do Mar Azul,
milagre feito mulher ou mulher feita milagre, neste filme entre todos
milagroso e de que o último dos grandes críticos - Serge Daney - falou
obsessiva e obcecadamente até à hora de morrer (1992). Antes de falar do milagre, devo dizer que jamais percebi por que insistem em classificar À Beira do Mar Azul
como uma comédia. É um melodrama - se quiserem uma comédia
melodramática - e jamais, à sua visão, tive qualquer vontade de rir.
Nada que ver com a comédia sofisticada americana e tudo a enunciar os
imponderáveis “filmes de amor” da Nouvelle Vague como Adieu Philippine de Jacques Rozier, Jules et Jim de François Truffaut ou Lola
de Jaques Demy. Como as obras citadas, é um filme de amor a três: amor
entre Aliocha (Nicholas Krintchov) e Jusuf (Lev Sverdlin), os dois
amigos tão novos na terra, amor dos dois por Macha, a rapariga da ilha, a
rapariga que conhecem na ilha. Chegam
à ilha depois de um naufrágio. Os primeiros planos do filme são
fabulosos planos de mar e de ondas (dos mais belos planos de mar e de
ondas que já vi, quase tácteis, quase minerais) donde emergem brevemente
a cabeça loura e a cabeça morena dos dois náufragos. Um intertítulo
diz-nos que “lutaram dois dias e duas noites contra a morte”. Ainda nada
sabemos deles, para que esse combate nos possa apaixonar. Mas aquele
mar é tão desmedidamente sensual, são tão desmedidamente sensuais os
muitos planos de nuvens, sol, crepúsculos, auroras, noites, dias, que
nos fixamos naqueles vultos como imagens transfiguradas por uma
inexplicável irrealidade e o sul do Cáspio, no Azerbaijão, começa a
invadir-nos e a contaminar-nos. Se
a fotografia de Kirlov é prodigiosa, é também dos melhores exemplos que
conheço de uma fotografia rigorosamente submetida a uma visão que a
ultrapassa. Um só plano gênero “bilhete postal” e tudo estaria perdido. É
porque a ordem de beleza nunca é essa, mas a do abraço telúrico de
elementos e homens, que esses planos nos assombram tanto, como se
aqueles vultos viessem de um fundo mítico semelhantes ao de mares e
céus, náufragos eternos, de que fôssemos convidados a seguir - agora -
uma outra e particular história. Depois
desses minutos inebriantes do mais puro cinema, novo intertítulo nos
prepara para a “história”. “Era uma vez numa ilha”. E o rapaz louro e o
rapaz moreno já estão a salvo, a dormir um contra o outro, de tronco nu,
no fundo de uma barcaça, iluminados, no meio das areias, por um sol
prodigioso. Ainda não apareceu mais ninguém, ainda não vimos Macha, mas
já se selou a aliança entre os dois protagonistas, aliança que nada nem
ninguém - nem uma mulher como Macha - pode destruir. Mas
Macha chega pouco depois e é o primeiro ser humano daquele lugar a
vê-los. Vemo-la em contraplano (primeiro grande plano do filme) como se
fosse a personificação do espírito daqueles lugares, com um sorriso meio
trocista meio terno. Eles acordam, vêem-na como visão. Contracampos.
Sorriso dela, sorriso deles. E ouve-se a belíssima canção que fala da
gaivota, dos dias claros e das turbações escuras. Os
rapazes arranjam trabalho na “companhia” e a narrativa prossegue em
elipses. Apaixonam-se os dois por Macha. Dizem-lhe que têm medo das
mulheres. Um dia, Aliocha ousa mais e oferece-lhe um colar de vidros
como pérolas. Mas o colar rompe-se quando ela o põe ao pescoço e as
pérolas desligam-se uma a uma, apagando no chão o seu brilho, como se
fossem estrelas cadentes tilintando contra o solo. É muito mais do que
um plano simbólico. É um plano transfigurador. E Macha oferece-se e
recusa-se aos dois, como uma criança que brinca com outras crianças e
que sabe como começam e onde acabam os jogos. Muito
depois, a seqüência que Daney tanto amou. As ondas levam Macha e todos
se convencem que ela morreu. O povo já se reuniu para o velório. Só
Aliocha e Jusuf continuam à procura, até a verem desmaiada, repousando
na orla da praia. Tão alegres como num musical americano, levam-na para o
velório dela, até ela realizar que ela era a morta por quem a aldeia
chorava. Daney dizia que só se podia falar dessa seqüência contando-a,
como se só a oralidade perfizesse a beleza daquele momento único,
daquelas imagens únicas. “Lembras-te” - dizia ele - “lembras-te como é
tão bonito quando o mar enche a tela toda? Lembras-te quando ela ainda
não percebeu que estão todos a chorar porque julgam que ela morreu e que
ela começa a rir com os dois rapazes? Lembras-te quando eles os três
começam a dançar de alegria e, pouco a pouco, todo o povo dança também?”
Lembras-te? É a pergunta que apetece fazer a propósito do milagre dessa seqüência. Lembras-te quando ela, espantadíssima, pergunta “quem morreu?” e a resposta é a mais bela dança que vi em cinema, incluindo a do Singin’ in the Rain?
Nunca, talvez, o cinema tenha estado tão perto de nos fazer tocar na
alegria como “dom de Deus (…) que traz em si um caráter eterno que passa
através do sofrimento” (Sophia de Mello Breyner). E nunca, a não ser em
Ordet de Dreyer, o triunfo de um corpo “ressuscitado” foi tão físico e tão anímico, tão carne e tão espírito. Depois,
Jusuf convence-se que Macha ama Aliocha e prepara-se para partir.
Depois é Aliocha quem pensa que é ao contrário e, mais ciumento e
rezingão, decide ir-se embora também. Depois, ambos descobrem que Macha é
casada com um marinheiro bigodudo (que só vemos em retrato, feiíssimo)
que andava longe ao serviço da pátria e do proletariado e que ela não
trocará por nenhum dos jovens. Depois, os dois vão-se embora, sorrindo
da vida ser assim, cúmplices do engano daqueles dias. Todos, no fim,
sorriem melhor uns para os outros. O céu, a terra, o vento sossegado.
Como se viéssemos de um sonho ou a um sonho regressássemos. |
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