LUCKY STAR, Frank Borzage, 1929 por João Bénard da Costa Falo de um filme dos anos 20? Falo de um filme dos anos 90? Lucky Star
é dessas duas décadas. Rodado no primeiro semestre de 1929, estreado a
20 de Julho de 1929, muito poucos o viram fora da América (e mesmo na
América) no ano que teve uma terça-feira negra. Não por causa dela, mas
por causa do som que ainda lhe faltava em tempos em que o bom do público
trocava tudo por vozes e música fanhosas. A Fox (nessa altura Fox Films
e ainda não 20th Century) tentou emendar a mão e lançou uma versão
sonorizada à pressa. Não pegou. Depois,
o filme levou sumiço, como tantos outros desses anos fatídicos de 28-29
(fatídicos para os cinéfilos). Pelo menos, entre 1940 e 1990 (talvez
mais) ninguém o conhecia de vista. “Missing film”, era a seca menção, tão dura de engolir como “missing in action”.
Até que, em 1990, a Cinemateca de Amsterdã descobriu, nas caves, uma
velha cópia em nitrato (das mudas) que para lá jazia. A 18 de Outubro de
1990, no Festival de Pordenone, recuperado e restaurado, Lucky Star ressuscitou. Eu estive lá, eu vi. Depois
(Janeiro de 91) o filme abriu o XX Festival de Roterdã. Houve Godard e
Kazan, houve os irmãos Kaurismäki e Muratova, houve, até, uma integral
de Nicholas Ray. Mas, mesmo com Nick Ray, não atiro nem a primeira nem a
última pedra aos resultados do referendo, como de costume organizado
entre o público para designar o melhor filme da manifestação. À cabeça, de longe, Lucky Star, a maior das descobertas dos últimos anos. Pouco depois (Fevereiro de 1991) Lucky Star
veio até Portugal, onde nunca fora visto, e estreou-se em Lisboa, na
cinemateca (onde queriam que fosse?) sessenta e dois anos depois de
feito. Quem esteve na sala, sabe porque é que é um dos melhores filmes da nossa vida. Lucky Star
é um filme de Frank Borzage (1893-1962). Borzage, como todos os
cineastas americanos da sua geração, abordou muitos gêneros. Mas há um
em que ninguém lhe levou a palma: o melodrama. Mesmo Douglas Sirk (e
Deus sabe quanto o amo) é menor ao lado deste maior. Mesmo Griffith, só
lhe abriu os caminhos. Porque se Lucky Star, como outros melodramas dos finais dos twenties, não seriam possíveis sem Griffith (por exemplo, aquele True Heart Susie
já aqui evocado), nunca houve corpos tão anímicos e almas tão carnais
como na obra deste místico, por um lado muito religioso, por outro muito
atento às correspondências secretas entre ritmos ocultos e aparências
geométricas. Homem muito sabido em símbolos (nada a ver com alegorias)
maçon cultivadíssimo, cultor exotérico. Os surrealistas não se enganaram
quando o meteram na família, eles que tanto amaram The River, o filme anterior a este. Lucky Star tem Janet Gaynor e Charles Farrel nos protagonistas. É um dos três filmes (com Seventh Heaven e Street Angel) em que Borzage dirigiu o par, outrora célebre, dos “America’s favorite lovebirds”,
como entre 1927 e 1934 foram conhecidos. Borzage criou esse par que,
depois dele, mais nove vezes apareceu junto. Estranhíssimo par: ela,
palmo e meio de altura, “piccina, tanto piccina, troppo piccina”, como escreveu o meu heterônimo Ramperti, pintas na cara e nos olhos, mozartianíssima, assustadíssima (foi a atriz de Sunrise, de Murnau, do mesmo ano de Seventh Heaven).
Ele, com quase dois metros de altura, um corpanzil imensíssimo, pés e
mãos quase do tamanho dela e, lá em cima, uma cara simpática e imberbe.
Corpo de quem morde, cara que não ladra. Em Lucky Star, Charles Farrel chama-se Tim. Estamos em 1917, em um canto perdido da Nova Inglaterra. Décor
minimal. Meia dúzia de cabanas, algumas colinas, muito nevoeiro, muito
frio. Tim foi para lá quando para lá foi a luz elétrica. E é quando está
no alto de um poste a consertar qualquer coisa, que repara numa valente
zaragata. Entra Mary (Janet Gaynor) e um calmeirão que a acusa de lhe
ter roubado uma moeda. Mete o outro na ordem até descobrir que a miúda
fizera mesmo batota. Mary não era só suja por fora. Era suja por dentro.
E a primeira vez que se tocam é para Tim agarrar Mary e lhe dar uma
data de valentes açoites no rabo. Açoites mesmo, rabo mesmo. Não estava a
brincar, nem a ser meigo. Borzage sublinha-o com uma série de planos em
que vemos Mary levar a mão a essa parte do corpo, mostrando bem quanto a
sério lhe doeu. A
personagem começa uma das suas muitas transformações. Quando volta para
casa rodeia-a uma fabulosa e irreal iluminação. A mudança dela proveio
tanto do ato físico (a sova que levou) como da razão dele: pela primeira
vez conheceu alguém que sai fora do mundo de enganos e mentira que até
então vivera. Mas
Borzage sabe dar o tempo ao tempo e o espaço ao espaço. No alto do
poste, Tim soube que a América entrou na guerra e para a guerra parte.
Mary tenta uma nova aproximação, no dia dessa partida. Na onipresente
carroça dela (até aí puxada por uma pileca preta, a partir dai puxada
por uma pileca branca) oferece-lhe boleia até a estação. Desta vez, é
Tim que não a percebe. Responde-lhe que tem pernas para andar. Tê-las-á
por pouco tempo. Na guerra (alguns flashes) fica sem elas. Paralítico. Dois anos de ausência. E
é de novo um ato físico e um ato de agressão que atira aquelas almas
uma para a outra. Como quem se vinga da sova de antigamente, Mary
atira-lhe uma pedra ao vidro da janela. Não tem resposta. Entra-lhe
então em casa - pela primeira vez - e descobre a cadeira de rodas.
Quando percebe, deixa cair a pedra muito devagar e fica a piscar os
olhos, dividida entre a luz e as trevas, a emoção e o susto. Não
disfarça nem espiritualiza. A personagem reveste-se de uma
impressionante sinceridade, meio infantil meio feminina, e Tim, no
assombroso fetichismo de Borzage, começa a limpá-la (lava-lhe as mãos) e
a paramentá-la, com um lenço que tanto serve para a enfeitar como para
lhe assoar o nariz. E é nessa cena que começa a chamar-lhe “Baa-Baa” e é
nessa cena que ela lhe promete (enquanto recua) voltar amanhã, no dia
seguinte, em todos os dias. Se
nessa seqüência há um erotismo difuso, um erotismo explícito surge na
seqüência seguinte, de novo a dois, em casa de Tim. É talvez a seqüência
mais genial do filme e, porventura, de toda a obra de Borzage. Começa
com um balde. Tim decidiu dar um banho a Mary e a limpar de vez a
imagem e o corpo dela. E são ovos o que usa para essa ablução, que a
transforma também de morena em loura. À medida que a espuma aumenta e
que a vergonha e a aflição de Mary crescem, sela-se a relação física
entre os dois, sublinhada pelo plano magistral em que vemos a quantidade
de cascas de ovo partidas. Tim começa a descer no corpo de Mary, que se
lhe oferece. Mas, a dada altura, a evidência do corpo de mulher
sobrepõe-se à da criança que até então vira nela. Detém o gesto de a
despir e manda-a, para a profundidade de campo, continuar o banho que já
não é capaz de lhe dar. Borzage abre, de novo, todo o espaço, para nos
dar a entrever um pouco do corpo nu de Mary e um pouco do olhar que Tim
não resiste a lançar sobre ela. E, desse banho, Mary sai mulher. Tão
mulher que é depois dessa cena que a mãe começa a congeminar o plano de
a “vender” a um sargento que, num breve baile, Mary metera em muita
ordem. E
a terceira seqüência em casa de Tim é a seqüência da absoluta
feminilidade, com o vestido novo e o lenço ao peito (como Tim lhe
ensinara a pô-lo), lenço que ele lhe retira, para o mudar para a cinta.
No colo dele - apontamento erótico fortíssimo - ficam os sapatos dela. No
quarto e último encontro, Mary já não entra em casa de Tim. A mesa está
posta na soleira da porta. Ambos sabem como o “dentro” é perigoso. E
muita coisa se passa entre os quatro encontros. A dickensiana mãe
obriga a filha a deixar o “aleijado” e impõe-lhe o sargento, que tem
dinheiro e não é de rodeios. Sacrificialmente, perdidos todos os apoios,
Mary desce a escada de casa, meio cabana de contos de fadas, meio
tugúrico e, numa madrugada sinistra (a luz, a luz) é levada para longes
terras e um mais do que duvidoso casamento. Mas Tim sempre lhe prometera que “for a special occasion”
voltaria a andar. Quando ela lhe pergunta que ocasião será essa,
responde-lhe referindo o casamento e a morte. E, agora, quando,
informado por outros, sabe que Mary vai partir com o sargento, Tim,
depois de uma terrível luta contra o corpo próprio, consegue levantar-se
e voltar a andar. E
são o amor e a morte quem o guia por essa prodigiosa caminhada, entre a
neve e o vento, em que consegue chegar à estação a tempo de impedir que
Mary seja levada. De novo, o corpo dele é um corpo de luz como Mary o
vira, no princípio, no alto do poste de iluminação, situação espiritual e
física que marca todo o percurso do personagem. Vezes sem conta cai,
vezes sem conta se levanta. Tudo é totalmente irreal e onírico, como se,
em corpo e alma, o personagem ressuscitasse para a redenção e a
vingança. E, pessoalmente, não recordo muitos planos mais redentores do
que o genial long-shot em que o vemos surgir, no alto da colina,
na seqüência final. Simultaneamente fantomático e colosso físico,
dominando todo o espaço, onde a outro nível Mary - e só ela - o vê
surgir como se fosse a materialização do seu desejo, o milagre. Aquela
era, na verdade, “a special occasion” a que ele se referira e que o abraço final sela na fusão dos dois corpos. Nenhum filme, como Lucky Star, existe, talvez, tão desarmantemente simples. Nenhum filme, como Lucky Star,
existe, talvez, tão desarmantemente complexo. Só os grandes
sentimentais são capazes de ser tão perversos e só o melodrama pode ser
tão fundamentalmente transgressor. Nunca ouvi uma história de almas tão
belas como esta e nunca vi uma história de corpos tão poderosos e tão
vulneráveis como estes. O milagre daqueles corpos - corpo de Janet
Gaynor, corpo de Charles Farrel - é igual ao milagre daquelas almas. Só a
carne ressuscita. |
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