O HOMEM QUE MATOU O FACÍNORA, John Ford, 1962 por João Bénard da Costa Normalmente, fala-se deste filme a preto e banco (último filme a preto e branco de Ford), quase inteiramente rodado em estúdio (único dos seus westerns em que isso aconteceu) como de um nostálgico adeus ao Oeste e aos seus mitos, a noite da morte de Liberty Valance sendo igualmente a noite da morte de Tom Doniphon. Não é rigorosamente exato (esse adeus seria Cheyenne Autumn) mas é-o metaforicamente. Nada há de mais pungente na obra de Ford que esses dez minutos que decorrem entre o lento e leve sorriso de Vera Miles quando Andy Devine a reconhece e o início da narração do Senador Stoddard. Nada, a não ser os minutos finais de The Wings of Eagles. No filme de 57, o adeus à marinha; no filme de 62 o adeus ao Oeste: as duas maiores paixões da obra e da vida do homem chamado John Ford. Direi apenas, sem tocar sequer com a ponta do dedo mindinho na imensa beleza do filme sobre “Spig” Wead, que a dor, em Liberty Valance, é mais cendrada, para usar o adjetivo com que Jorge de Sena iniciou um dos mais belos sonetos da língua portuguesa. Porque, em The Wings of Eagles, já fomos preparados para essa pungência. Em Liberty Valance, quando Vera Miles se afasta do marido para ir à casa da flor do cacto, quando ouvimos o tema musical do Young Mr. Lincoln (ligando Hallie Ericson a Ann Rutledge); quando vemos o plano do caixão e a panorâmica a revelar a solitária presença de Strode; quando abrem o caixão para Stewart e no enquadramento só fica mais a aba do chapéu de Vera Miles; quando ela permanentemente agarra a caixa onde se encontra o perfume perdido da única coisa tão bonita como ela o foi; em todo esse curto e dilatado tempo, nada sabemos das raízes porque “nunca tão tristes vistes outros nenhuns por ninguém”. Tudo é secreto. E é então que James Stewart (nunca até aí coincidente com a mulher e com os sobreviventes de Shinbone) “levanta” Tom Doniphon do túmulo, iniciando o flashback. E inicia-o junto a uma carruagem poeirenta (a mesma, talvez, que serviu a The Iron Horse ou a Stagecoach) para gravar para sempre John Wayne entre os heróis lendários que ele personifica. Ford já tinha prestado semelhante homenagem a míticos cowboys (Tom Mix em Stagecoach, Harry Carey em Three Godfathers) mas post-mortem. Aqui é a um mito ainda vivo, Marion Michael Morrison, também conhecido por “Duke” ou mais diretamente por John Wayne. Porque, ladies and gentlemen, não há voltas a dar neste caso: este é um filme sobre o homem que matou Liberty Valance e o homem que matou Liberty Valance foi John Wayne. A lenda não me dá razão contra fatos (e é deste filme essa famosa frase, ultra-citada epígrafe à obra de Ford) nem ma dá a leitura metafórica do filme. Porque para além da lenda, há a evidência do flashback: John Wayne e Lee Marvin eram o verso e o reverso da mesma medalha, como (noutra escala) Andy Devine e Edmond O’Brien. Se alguém mudou Shinbone, se alguém começou a transformação do deserto em jardim, se alguém substituiu a autocracia pela democracia, se alguém foi o libertador, esse foi inegavelmente James Stewart. Wayne aceitara coexistir num mundo de Liberty Valances, aceitara que assim seria e assim será. Stewart não. Donde que se possa dizer, com inteira legitimidade, que merece bem a lenda que o acompanha e que, metaforicamente, foi ele quem matou Liberty Valance. Mas a metáfora, a cada nova visão do filme, me parece esbater-se. Não só porque (adivinhamo-lo, por aquele “olhar que só têm os homens da política”) Stewart terá coexistido pela vida fora (no elidido espaço de tempo que medeia entre o fim do flashback e o presente) com outra espécie de Liberty Valances (menos primitivos, ou mais sofisticados), como porque James Stewart não matou apenas Liberty Valance; na mesma metáfora matou Tom Doniphon. Era inevitável? Precisamente por o ser, é que este filme é tão dolorido. Mesmo quando se escolhe a vida, se tem de passar pelo cadáver do amor. Vera Miles é quem o sabe até ao fundo. No mesmo plano em que lembra ao marido as razões que tem para se sentir orgulhosa, revela-lhe que a flor do cacto fora ela quem a trouxera. Entre o jardim e o deserto, fica suspensa na curva final do comboio, movimento semelhante ao do início do filme, apenas em sentido inverso. O primeiro plano “arrancava para a frente”: o último “puxa-nos para trás”. Não tenho tempo nem espaço para me debruçar, como gostaria, sobre todas as coisas belíssimas deste filme, principalmente sobre a personagem de John Wayne, o homem daquela cidade e daquela mulher no início do flashback (quando atravessava a cavalo a rua da cidade adormecida para trazer a Vera Miles o corpo jacente de Stewart) o homem que perdeu qualquer das duas no final, quando ambas caem aos pés de Stewart. Vou apenas gastar o espaço que me resta com dois dos momentos mais geniais deste filme incessantemente perpassado por esse sopro. O primeiro é exatamente essa perdição de Wayne. Vemos as lágrimas de Vera Miles e a sua mão no rosto de Stewart (talvez mais uma pietá que uma física relação homem-mulher) e (sempre a montagem invisível) no plano seguinte Wayne na soleira da porta, vendo o que nós víramos. “Sorry, I got in too late”, uma pausa, a tristeza infinita, e a saída (“I’ll be around”). A sombra dele projeta-se na rua e, depois, entre a entrada no bar e o fogo pegado à home, sweet home, há a maior explosão física da obra de Ford, desde que o mesmo Wayne (aí, vencedor) arrastara Maureen O’Hara por 5 milhas até Innisfree, no The Quiet Man. Se a cólera de Aquiles alguma vez teve equivalente fílmico é nesses minutos de cinema, quando Wayne varre tudo e todos à sua volta. Porque é cólera contra o destino e também contra si próprio. E, nem uma nem outra, aquele que depois dirá que praticou um “cold-blooded murder but I can live with it” (ao contrário de Stewart que não podia viver com um “self-defense murder”) as pode assumir doutro modo que em explosão física, estourando corpos e casa. O segundo momento (ou momentos) é (são) a famosa seqüência da morte de Liberty Valance e o flashback dentro do flashback. Preparado o primeiro pela inadjetivável seqüência do atentado a O’Brien (“Liberty Valance taking liberties with the liberty of the press?” talvez seja uma das mais geniais lines de qualquer diálogo de Hollywood), já sabemos que Stewart não se salvará sozinho. Vera Miles manda Woody Strode chamar o homem (Wayne). Na rua deserta, Stewart e Marvin enfrentam-se em contracampos sucessivos, dum ponto de vista ou doutro. Depois, a câmara objetiva-se aparentemente atrás de Stewart para nos deixar ver todo o campo do duelo. E a surpresa do desfecho (para Stewart), a certeza do desenlace (para o espectador que sabe que Stewart não morreu) não deixa ver que a queda do corpo de Marvin não podia ter sido aquela, se o tiro fosse disparado por Stewart. Por isso todos os que viram (Stewart e nós) não duvidam do que aconteceu. Mas nos filmes de Ford é sempre preciso voltar mais atrás. E é exatamente que volte atrás (“come back, pilgrim, come back”) o que Wayne pede a Stewart, quando lhe quer acabar com os remorsos. Há uma imensa cortina de fumo e depois, quando vemos segunda vez o duelo, a câmara já se subjetiva entre Strode e Wayne e só se objetiva na posição frontal. E, como mais tarde terá comentado Lee Marvin: “It was the only time John Wayne ever shot anybody in the back of the head”. Essa figura única na obra de Ford (um flashback dentro dum flashback, uma mesma seqüência na multiplicidade dos pontos de vista) é muito mais do que a chave do filme, ou a revelação de quem matou Liberty Valance. É o apelo, pela primeira vez tornando explícito, a que olhemos sempre pela segunda vez, já que há sempre um fundo sob um fundo e outro ainda sob esse. Se há cineasta em que o campo é mais profundo, esse se chamou John Ford. |
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