KOMAL GANDHAR, Ritwik Ghatak, 1961

por João Bénard da Costa


Em todos os filmes do grande cineasta bengali Ritwik Ghatak (1925-1976) - ou pelo menos em todos os filmes que dele conheço - há vários aspectos que, em todos eles, vêm à superfície, expressão que utilizo deliberadamente para a contrapor ao nível subterrâneo a que se situam: o tema da divisão, cuja expressão dominante é a divisão geográfica e política do território de Bengala, mas que surge em todos os seus personagens, divididos também entre duas culturas, duas tradições, duas ordens do mundo e duas ordens de valores; a aparente ausência de “mistura” ao nível da banda-som e da banda-imagem, com interpenetrações surpreendentes e ousadíssimas (no fundo, um correlato para o tema da divisão, pois que também sons e imagens não coincidem e se dilaceram); o tema da Mãe, ou em termos de Ghatak, o “complexo da Mãe” na sua visão jungiana do universo (ou na revisão, à luz de Jung, dos mitos indianos); o tema da errância, dentro de um espaço fechado (Bengala) subdividido em mundos ainda mais cerrados.


Komal Gandhar, segundo filme da série iniciada com Estrela Encoberta de Nuvens e que Ghatak concebeu expressamente como uma trilogia, evoca desde o título todos estes temas. No filme, faz-se referências a um romance de Tagore com esse título quando Bhrigu diz a Anusuya (interpretada pela espantosa Supriya Choudhury, também a protagonista da Estrela Encoberta de Nuvens) que ela lhe fez lembrar uma personagem desse livro, com “uma nota triste”. Mas o mi bemol não tem na música indiana a mesma conotação tonal que na música ocidental. O mi bemol, não é apenas um “tom triste” mas a nota normalmente usada para harmonizar contrastes, para permitir a junção entre vários registros. Ghatak, mau grado a sua repugnância por explicações teóricas, não enjeitou uma significação simbólica. O título teria, uma vez mais, que ver com a reunificação de Bengala, tema neste filme mais declaradamente expresso do que qualquer outro dos já vistos (onde figurava como poderoso plano de fundo, mas numa coralidade de surdina, se a expressão é legítima). Ele próprio o disse: “O tema (o tom) central de Komal Gandhar é a unificação das duas Bengalas e é isso que explica a persistente utilização de velhas canções de casamento. Mesmo nas cenas de dor e de separação, a música canta o casamento”. Por isso, a referência titular é muito mais que uma referência literária e por isso, nunca a música teve na obra de Ghatak, como neste filme, um papel tão fundamental e tão complementar ou tão reunificador das imagens. São inúmeros os exemplos que se estendem a toda a banda sonora, e não apenas à música.


A título de exemplo, e antes de falar das canções, chamo a atenção para o uso irrealista dos aplausos na representação inicial (as palmas continuam-se a ouvir no exterior, quando a peça já acabou e a ação já se passa na rua); para o longo e belíssimo grande plano de Anusuya em casa, com o chilrear dos pássaros intercalando-se na música off; para a conclusão do antológico passeio junto ao rio (seqüência “mizoguchiana”, no mais fundo sentido da palavra), com o travelling sobre o comboio, até ao ponto da divisão territorial em que a linha acaba. Nesse mesmo momento, e de súbito, a música tornou-se fortíssima, parecendo “despedaçar” a imagem e o écran fica negro, num desses fondus (ou anti-fondus) de que Ghatak tinha o segredo. Pouco depois, no filme, é alegria da chuva (do ruído da chuva), imediatamente associada à evocação de 1947 (o ano da partilha).


E, como também sucede em Estrela Encoberta de Nuvens, Supriya Choudhury é a Deusa Durga, a Deusa do Casamento e da partilha infância-adolescência, casa paterna - casa de estranhos, primavera e outono. E, nesse sentido, Deusa Mãe, em torno da qual se faz e desfaz o grupo, se faz e desfaz o sonho criador de Bhrigu. Não é certamente por acaso que, na seqüência capital do filme - a da confissão de Anusuya, quando se evoca, precisamente o Mi Bemol - esta ofereça o diário da mãe a Bhrigu e o reconheça como o único depositário dessa herança: um homem - mulher, “my mother’s boy”, unificado, nele, o princípio feminino e o princípio masculino. E Anusuya começou por ser o traço de ligação entre os dois grupos de teatro divididos, quando passou do grupo de Shanta ao de Bhrigu.


Através dela, volta, também, o tema da errância e ecoa o da divisão. Como para Bengala, também houve um tempo (como Bhrigu explica) em que os dois grupos rivais estiveram unidos. Quando Anusuya aceitou entrar na peça do outro grupo, a divisão, acendeu-se, mas perfilou-se o traço reunificador: “Xakuntala”, a peça que os dois grupos fazem juntos, é a peça da unidade impossível, prefigurada, uma vez mais, em Anusuya. E é junto ao rio da divisão - o Padma - que Anusuya e Bhrigu descobrem o que os une, na tal seqüência “mizoguchiana”, com todo o rio e toda a música, essa música que só fala do casamento. Num só momento, tudo se pode perder e tudo se pode achar e é a própria continuidade da vida, face à beleza do mundo, que é posta em causa, nessa seqüência que é um dos momentos culminantes da arte de Ghatak.


Mas, neste filme de ocultos acordes e ocultos acordos, de visíveis rupturas e recônditas harmonias, de violência formal e funda mansidão, essa prodigiosa seqüência é apenas o prelúdio a duas outras, também à beira do Padma, em que a transfiguração é elevada à mesma ordem de grandeza e de alucinante beleza. Será preciso nomeá-las?


Pelo menos, não resisto à tentação de as situar, para tornar mais explícita e prodigiosa a construção deste filme.


Após o sucesso da peça, o tema da mãe é de novo sublinhado, com o aparecimento daquele espantoso personagem (a velha de casta inferior) que oferece a Bhrigu a medalha do filho morto, porque a peça era também a história desse filho e dela. Depois, o ator beija-lhe os pés, como se faz às mães, ignorando a casta. E é a seguir que vem a tal seqüência, com o passeio ao luar, a canção off, o sussurro das águas e os dois em silêncio. Subitamente, a paisagem muda e é no deserto que Anusuya retoma o tema da deusa, com a história do casamento prometido e dos anos em mais anos transformados. Bhrugi recusa-se a ler a carta e ela fica totalmente entregue e totalmente só.


Mas, em Komal Gandhar, o tema da reunificação é mais forte que o da separação, na oposição dialética (ou no balanceamento rítmico?) entre os dois primeiros painéis da trilogia de Ghatak.


Caídas e erguidas as máscaras, Anusuya não assume o destino da divisão. E a terceira seqüência de céu e rio, é a que assiste ao fabuloso plano final de mãos dadas, sem que uma palavra se troque entre os dois protagonistas. Final obscuro para um filme obscuro? Por eles falou o plano, e por eles falou Rishi, o jovem ator, quando anunciou o gesto revolucionário de Jaye, a rapariga que ousou tomar a iniciativa.


Para o final, deixei o tema do teatro, na primeira explícita incursão de Ghatak no mundo da representação dentro do mundo dos sinais. Se é possível que neste filme, a vontade humana se sobreponha ao ciclo cultural e natural, é porque todos participam desse mundo “de ilusão” em que as sombras antecipam os corpos e sobre eles predominam. Alguns comentadores, demasiado fascinados por este aspecto (que, no princípio dos anos 60, lhes parecia antecipar todo um cinema de representação e de artifício, que eclodiu no Ocidente quase dez anos depois) têm sido tentados a vê-lo como dominante, quase como funcionando psicodramaticamente, quer em relação à divisão política, quer em relação à divisão sentimental. No código em que o filme se insere, não me parece legítimo ir tão longe. O teatro (com o uso de uma encenação cinematográfica) é apenas o outro acorde, sonante e dissonante, da música off que percorre o filme. Quase se poderia dizer que o teatro funciona contrapolarmente à música e aos espaços exteriores, como o lugar do luto e da divisão. Mas, sendo também um espaço mítico (espelho invertido da mesma realidade) permite (seqüência das máscaras) que os ritmos se reassumam como ritmos de renovação e que, através deles, se faça, igualmente, o percurso libertador. “Mesmo o céu está cheio de fumo”, diz-se no início. É esse bafo obscurecedor que é progressivamente eliminado e iluminado, até que um criador egocêntrico (Bhrigu) seja tocado pelo que, em termos nossos, chamaríamos a Graça.


Quando vai para casa do marido” - escreveu Ghatak - “Xakuntala (a personagem da peça) tem, que chorar-se a si própria e chorar pelo ashram, o mundo familiar que teve que deixar, o mundo da terra em que viveu desde o dia do nascimento”. Anusuya, voltando-se para descobrir a criança que lhe puxa pelo sari, completa, nesse momento, o choro pelo ashram e pode ser livre para deixar Samar (o noivo da sua infância) e dar-se a Bhrigu. Nesse sentido, como Ghatak também disse, a heroína do filme é Xakuntala de Bengala e é a mulher que fecha o ciclo da repressão que o homem (Bhrigu) não fora capaz de quebrar, apesar da sua violência verbal. E, se como mulher o toma, como mãe o recebe. Nela se inicia o ciclo da reunificação.


Subarnarekha, o último filme da trilogia, impede contudo de concluir que Ghatak acreditasse na possibilidade de renovação desse ciclo. Talvez, por isso, o final de Komal Gandhar seja um final simultaneamente aberto e fechado. Aquelas mãos unidas vão separar-se no último painel da trilogia, o mais sombrio e o mais desesperado, o filme de todos os exílios. Mas já aqui o écran se cerra em negro sobre o plano final. Ghatak sabe que não há nada para além dessas trevas, ou que nada pode devolver de novo (senão na ilusão do teatro) o tempo uno ao tempo dividido.


Ao contrário do que diz a canção, não chegou ainda o criador capaz de dissipar as trevas.


 

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