A HISTÓRIA REAL, David Lynch, 1999 por João Bénard da Costa Porque The Straight Story, pode não querer dizer história simples.
Pode referir-se apenas à história de dois irmãos de apelido Straight.
Mas, devido à suposta ou real simplicidade, gerou uma reação que talvez
perversamente Lynch tenha esperado (quiçá desejado) mas muito se parece
com histórias semelhantes dos evangelhos apócrifos, das Vies Imaginaires de Marcel Schwob, de Dunne (An Experiment With Time), ou da eventual leitura cifrada dos textos básicos de Kierkegaard. Ou
seja, seria um filme a ver com a consciência de que havia outra
história, por detrás da história contada. Os críticos, tão habituados
desde Eraserhead (1977) ou sobretudo desde Blue Velvet (1986) a buscar recônditos sentidos em Lynch, que cada vez mais se distanciava do que se chama uma história com pés e cabeça (Mulholland Drive,
2001, bateu as mais vastas expectativas) perante um filme que
aparentemente não lhes pedia muito, nem da imaginação nem dos miolos,
começaram a retorcer os referidos sentidos, como nas histórias que
Schwob gostava de contar e Borges também. Se
tinham tentado “clarificar” os outros filmes, aqui ficava bem
“obscurecer” este, não fosse o rei, agora tão visivelmente nu, estar a
enganá-los com vestes do mais requintado fabrico e desenho, mas tão
requintado que eles eram incapazes de as ver. E
aqui para nós, e que não nos ouçam lá fora: conhecem história mais
verossímil do que a dum velho cardíaco de 73 anos, que atravessa sozinho
500 quilômetros ao volante de um cortador de relva fabricado em 1966 e a
uma velocidade de 5 Km. à hora, para ir fazer as pazes com um irmão,
com quem se zangara há dez anos e que nos últimos 50 não vira mais de
cinco vezes? Se
alguém me viesse contar essa, eu olharia para a criatura com olhos mais
estranhos do que aqueles que lanço aos carrascos e vítimas de Blue Velvet
ou às personagens da história de Laura Palmer e de Twin Peaks. Em todos
esses filmes há coisas mirabolantes, goste-se ou não de Lynch?
Inegavelmente há. Mas a mais mirabolante é a história de Alvin Straight, em que se despediu das telas, com pasmosa criação, o velho Richard Farnsworth que toda a vida esperou por esse papel. Porque
é que, se o é, não o parece? Porque estamos sempre muito mais atentos a
imagens insólitas (os surrealistas sabiam isso tão bem) do que a
histórias insólitas (Lautréamont era um monstro disforme e malquisto,
Emily Brontë escrevia para pudicas donzelas). Mas, sobretudo, porque, se
as “histórias da carochinha” tiverem por desfecho o casamento da dita
com o João Ratão, salvo a tempo de morrer cozido e assado no caldeirão,
nós ouvimos com assentimento: se o rato, vestido de fraque, cair ao
fundo da panela, à busca da chouriça, e dele sair com queimaduras de
terceiro grau, a coisa tem foros chocantes. Imagine-se
que Alvin Straight morria de enfarte durante a viagem ou era marrado
por um desses veados que ninguém percebe donde é que vêm. Quinhentas
páginas de ensaio para explicar o necessário encontro de Alvin com os
veados. Mas
como Alvin sai de casa para encontrar o irmão, o irmão está em casa, o
recebe bem e fazem as pazes, não são precisas páginas nenhumas. Apenas
dizer que, naquele dia, Lynch quis mostrar que até sabe fazer filmes
“normais”, como nos bons tempos do cubismo se dizia que Picasso pintava
“realista” para mostrar que sabia pintar. Nenhum
de nós fica a saber se, na zanga de há dez anos, teve razão Alvin ou
teve razão o irmão. Mas um dia vê-se a morte mais perto, e, com citação
ou sem citação, ouve-se a passagem evangélica que nos diz que se tens
qualquer coisa contra o teu irmão, vai e reconcilia-te e só depois volta
ao Templo do Senhor. Acontece que é a América e que as yellow roads se medem por centenas de quilômetros (toda a deep América vem deep
deste filme, em mais uma das muitas rimas deste ciclo). Acontece que os
dois irmãos são pobres e, senão é caminho que se faça a pé, talvez se
faça de cortador de relva, dando tempo e tempo para tudo e todos vermos
dessa América. Acontece que até há noites à conversa, no quentinho duma
fogueira, noites que nos confortam, na certeza que o mundo é melhor para
os bons, mesmo se nada alcançarem com essa vontade. Estamos fartos de
tais histórias da carochinha? Contadas de modo tão straight, não, não e não. O que vemos neste filme é um arquetípico melodrama. Está lá tudo: a família, a doença, a viagem, os happy-end, o amor, o amor e o amor. É um american melodrama, pois nada disto seria possível se não fosse na América e se não fosse com americanos. The Straight Story é também um “filme fantástico”? Todos em dado momento o são. “Arrependido, maravilhado e resignado”, diz, no final, um dos protagonistas. É só isso que devemos estar, quando o amor é omnia como neste filme é. |
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