JOHNNY GUITAR, Nicholas Ray, 1954 por João Bénard da Costa Era
inevitável. Tinha de ser. Se escrevo sobre “os filmes da minha vida”, como
podia ficar de fora “o filme da minha vida”, my Johnny Guitar? Só mesmo quem não me conheça nem mais gordo
nem mais magro, podia supor que um dia destes - mais cedo ou mais tarde - o Johnny Guitar não enchia esta página. Faz parte
das minhas lendas - como essa de dizer-se que eu sabia o Larousse de cor aos sete anos - atribuírem-me centenas de visões
do Johnny Guitar. Num caso como
noutro há exagero. Só vi o Johnny
Guitar 68 vezes, entre 1957 e 1988. Dá para saber de cor? Nunca se sabe o
Johnny Guitar de cor. Cada vez é
uma nova vez. Como
gênero, é classificado entre os westerns.
Estreou-se na América, a 27 de Maio de 1954, sob o signo de Gêmeos. É um
filme de Nicholas Ray, que tinha 42 anos, 9 meses e 20 dias na noite de
estréia. Na filmografia do autor, iniciada em 1948, é o opus 9. Depois dela assinou mais
13 longas-metragens, até morrer, “lightning over water”, num filme de Wim
Wenders, em 1979. Johnny Guitar foi feito
para uma pequena companhia - a Republic - e custou pequeno dinheiro. A
crítica americana tratou-o com os pés (“the silliest film of the year”), mas
o público, sem que ninguém conseguisse explicar por que, encheu as salas
meses a fio. Herbert J. Yates, produtor da obra, abarrotou os bolsos. Quando
o filme chegou à Europa - em 1955 - as posições críticas extremaram-se.
Alguns - poucos - apanharam o micróbio a que há mais de trinta anos dou casa
e pucarinho. A maioria achou que só gente gravemente perturbada ou gravemente
analfabeta podia gostar. Ou, então, cegos, surdos, mudos, paralíticos e
aleijadinhos dos cornos. Eu e mais alguns passamos vexames, quando a polêmica
chegou a Portugal. O nosso delírio provocava. Quem provoca maiorias ou o
senso comum acaba sempre por levar mais do que dá. Só que, no
caso de Johnny Guitar, vivi o
bastante para ver o mundo dar as tais voltas. Quando, em 1981, programei o
filme para Gulbenkian, num ciclo de cinema americano dos anos Nick Ray,
que também viveu o suficiente para assistir a esta viragem, adiantou um dia
algumas razões para explicar este fenômeno: 1) foi a primeira vez, num western, que as mulheres foram
simultaneamente as principais protagonistas e as principais antagonistas; 2)
é um filme cheio de luz e calor. Opunha-se ao estilo do “cinema negro” que
predominava nessa época; 3) é um filme em que a cor é valorizada, devido a
uma hábil estrutura arquitetônica; 4) foi o primeiro filme a utilizar a cor
em toda a sua potencialidade; 5) utilizou o décor e a paisagem para potencializar ao máximo a imagem. Não serei
eu quem o desminta, mas muitas dessas coisas foram à época das que mais
serviram para atacar a obra. Odiaram as mulheres (Joan Crawford e Mercedes
McCambridge), acharam a cor (um processo chamado trucolor) de insuportável mau gosto, berrante e exageradíssima.
Por mim, acho que não vale a pena tentar explicar. De Johnny Guitar só sou capaz de falar delirando. Deus e tantos -
amigos e inimigos - sabem como é quando me largam... Disse-se,
por exemplo, que era o filme com mais belo diálogo da história do cinema (eu,
pelo menos, disse-o). Alguns convenceram-se por esse lado e recordo programas
de cineclubes, ou artigos de revistas, que publicaram aquele famoso encadeado
de perguntas e respostas entre Guitar (Sterling Hayden) e Vienna (Joan
Crawford) quando começam a evocar o passado, na noite da chegada de Johnny ao
saloon de Vienna. É quando ele lhe
pede para ela entrar e dizer “something
nice”, quando ele lhe pede para ela lhe mentir. “Tell me you love me like I love you.” Mas, reduzido a escrito a
seco, o diálogo é constrangedoramente banal. Se as pessoas ficam com tal
memória dele é pelo concerto de vozes que se ouvem no filme - raspante a de
Crawford, átona a de Hayden - e pela associação delas à fabulosa partitura de
Victor Young. É pelo modo como a câmera e os corpos se movem durante, é pelo contraste dos
encarnados, dos verdes e dos castanhos. É pela prodigiosa presença daquele décor gruta, alucinantemente barroco,
simultaneamente mausoléu, bordel e casa de feitiços. Muitas
vezes ouvi a banda sonora de Johnny
Guitar sem ver as imagens. Tudo bem, por acréscimo, toda a memória do
filme se repovoa. Mas, para que isso suceda, é preciso haver memória, é
preciso ter-se visto o filme. Se é verdade que Johnny Guitar é também uma ópera, não o é menos que está
dependente daquela única e irredutível mise
en scène. Rever as
imagens (ou os sons) do Johnny Guitar
é rever a recordação delas. Para quem o vê pela primeira vez é ainda de rever
que se trata. Porque todas as personagens - os doze atores principais, cada
um deles essencial - não fazem outra coisa. Quando o
filme começa - na tarde em que mataram o irmão de Emma (Mercedes McCambridge)
- Johnny Logan, que se irá se chamar Johnny Guitar, volta para o pé de
Vienna, de quem se separou há cinco anos. Por que se separaram? Por que o
mandou chamar ela? Por que volta ele? Nunca, no filme, nos são dadas
respostas a tais perguntas. Também nunca sabemos o que se passou com cada um
deles nesses cinco anos em que não se viram, entre uma tarde no Hotel Aurora
(desse hotel, sim, se fala no filme) e a tarde Johnny Guitar é um
filme construído em flashback
sobre uma imensa elipse? Ou é uma imensa elipse construída sobre um flashback que não pode come back? Ou será que é tudo a mesma
coisa? Não vou
continuar. Como as coisas muito grandes, Johnny
Guitar não se explica. Conta-se (vê-se) outra, outra e outra vez como as
histórias que se contam às crianças, até que tudo se saiba de cor e se
aprenda que tudo está certo nelas. É a Imitação
de Cristo dos cinéfilos. Basta abrir-se ao acaso e encontrar-se a frase
certa. Basta ver pela sexagésima oitava vez e encontra-se a resposta certa
para o que se está a viver. Quando o
bando de Emma entra pelo saloon de
Vienna, para a prender, os misteriosos croupiers
param as roletas. Enfrentando Emma com o seu terrível olhar, Vienna, sem
desviar os olhos dela, dá uma seca ordem: “Keep the wheel spinning, Ed. I
like to hear it spin.” No fim de cada visão de Johnny Guitar, só me apetece dizer aos projecionistas: “Keep the
film spinning, Ed. I like to see it spin.” Tanto, tanto. |
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