O GAROTO SELVAGEM, François Truffaut, 1970 por João Bénard da Costa Em L’enfant sauvage
Truffaut assinou uma das suas obras mais concentradas que opera um
singular corte na sua carreira (pelo menos com os filmes que
imediatamente a precederam e imediatamente se lhe seguiram) e é
porventura um dos pontos mais altos da sua filmografia, se não for mesmo
a sua obra-prima. Regressando ao preto e branco (pela primeira vez
depois de La peau douce, de 1964) e surgindo, como ator, no papel
de Dr. Itard, Truffaut escolhe para tema deste filme a “memória”
científica elaborada pelo cientista daquele nome, acerca dos resultados
que obtivera na educação dum “menino selvagem” encontrado na floresta de
l’Aveyron em 1798, com cerca de doze anos (doze anos era a idade de
Antoine Doinel nos 400 coups). Itard
tinha escrito dois textos acerca de Victor: um, elaborado em 1801,
destinava-se provavelmente à Academia de Medicina; outro datado de 1806,
tinha por objetivo conseguir que o Ministério do Interior renovasse a
Mme. Guérin a pensão que lhe permitia manter a criança. Truffaut e Gruault, para extrair desses dois escritos um argumento, imaginaram (escreveu Truffaut) “que
o Dr. Itard em vez de redigir esses relatórios, mantinha um diário, o
que dá à narração o tom duma crônica e preserva o estilo do autor,
simultaneamente científico, filosófico, moralista, humanitário, ora
lírico ora familiar. Mantivemo-nos, pois, fiéis às ‘memórias’ do Dr.
Itard, de cujo estilo gosto imenso, e que reli, vezes sem conta, durante
as filmagens, para ‘repensar’ uma ou outra idéia ou simplesmente para
me impregnar do texto”. Impregnado, pois, do texto e do estilo
de Itard, Truffaut debruçou-se sobre a relação entre o médico e a
criança, levando às últimas conseqüências uma interrogação que já tivera
lugar relevante noutras obras suas (Les 400 coups/Fahrenheit 451):
qual a natureza do ato de educar, que relação se estabelece entre duas
pessoas com experiências e conhecimentos totalmente diversos, em que se
assume que uma dessas experiências e um desses conhecimentos são valor a
salvaguardar e transmitir e outros são a eliminar e corrigir? Um
dos grandes méritos de Truffaut foi ter evitado tomar partido, o que é
tanto mais de admirar e reter quanto o realizador passou para o lado de
lá da câmera e quis representar o papel do médico, que lhe punha à
partida a escolha duma possível identificação. Não a houve; a câmera não
desposa o ponto de vista de nenhum dos personagens: nem se cola a
Itard, nem faz a fácil e demagógica apologia do “bom selvagem”. De
chapéu alto e sobrecasaca (numa imagem que não deixa de evocar o Fonda
do Young Mr. Lincoln de John Ford), Itard-Truffaut é o pai, o
mestre, o senhor, o doutor, o civilizado, na complexidade que estes
estatutos envolvem e é visto sempre com a distância e a neutralidade
necessárias ao “recuo” que se pretende por parte do espectador. Admite
erros, tem certezas que nos parecem erradas e até, por vezes, odiosas (o
comportamento que assume quando pretende incutir no miúdo o sentido da
justiça), está porventura mais interessado na sua obra do que na
criança (como vai notando Mme. Guérin, imagem materna tão ambígua e
complexa quanto a imagem paterna de Itard) e sobretudo evolui numa
afetividade controlada, fria, incapaz de bolir com os seus hábitos e
práticas cotidianas. Dirigindo-se a si próprio e aos outros intérpretes
à Bresson (num dos filmes de Truffaut em que a influência desse autor é
mais visível), o cineasta-ator olhou-se e olhou todos os outros a
considerável distância, cortando quaisquer pontes para colagens
sentimentais. Esta atitude assume logo relevância particular nas primeiras seqüências, as da “caçada” ao selvagem. Se
este nos aparece (planos da floresta) num décor à Flaherty em profunda
harmonia com a natureza que o cerca e se os camponeses que o perseguem
são filmados à Renoir, recortados, contra o céu, “destoando” do acordo
possível ao miúdo, Truffaut não vai mais longe do que à evocação, nesses
planos, do conflito cultura-natureza; mostrados o “bicho” (e na
composição da personagem de Victor guardou-se sempre de o tornar
comovente ou imediatamente atrativo) e homens e mulheres suficientemente
anônimos para que nenhuma conotação moral (“bons ou maus”) se lhes
possa acrescentar. E a mesma posição é adotada no conflito que opõe os
dois médicos (Itard e Pinel), em que transparecem mais duas concepções
filosóficas do que dois comportamentos morais. Para Itard, a educação
prevalece sobre a natureza (Victor tornou-se anormal devido às condições
em que viveu), para Pinel as condições em que Victor viveu já se
deveriam a uma anormalidade congênita. Itard consegue fazer prevalecer o seu ponto de vista e leva a criança para casa, confiando-a a Mme. Guérin. Como no futuro La chambre verte (que em alguns aspectos tanto herdou de L’enfant sauvage),
nessa casa vão viver uma velha, um homem e um miúdo, numa relação donde
a afetividade se não exclui mas também não extravasa. As imagens de pai
e mãe propostas a Victor, não são imagens de casal, são imagens onde o
sexo está ausente (note-se que Truffaut eliminou do texto todas as
passagens referentes à educação sexual do miúdo). A
casa é um mundo onde o prazer está excluído, e onde se impõe a norma
trabalho. E um mundo onde se recusa sintomaticamente qualquer
aprendizagem fundada no prazer ou qualquer prazer da aprendizagem.
Quando o miúdo diz, pela primeira vez, uma palavra (“leite”) o médico mostra-se desapontado e tem esse comentário revelador da sua visão do mundo: “Se a palavra tivesse saído da boca de Victor antes da concessão da coisa desejada, então sim: era sinal que compreendera o verdadeiro uso da palavra, que estabelecia um ponto de comunicação conosco (...). Mas em vez disso, só obtive uma expressão, insignificante para ele e inútil para nós, do prazer que experimentou”. Insignificante para o miúdo, inútil para os adultos, o prazer é o oposto da aprendizagem, é o que não interessa. Mas
neste filme “suspenso”, neste filme “sem fim”, onde tudo existe para
encenar um texto, Truffaut não se deteve apenas no que o autor desse
texto considerava útil e significativo. E suspendeu o seu olhar entre o
que é dado a ler e o que é dado a ver, iluminando a narração com outra
ordem e outros apelos. Os sopros de Vivaldi, os espelhos que tanto
atraem Victor e o fogo, perante o qual o miúdo pela primeira vez tem
medo antes de experimentar (num grande plano belíssimo, com a vela) o
seu fascínio, são os sinais doutra irredutibilidade: a que impede a
certeza da “elevação do homem selvagem à altura do homem moral” e destaca a terrível frase que escapa a Itard, depois de Victor o morder, a seguir à punição injusta: “À quel point Ia douleur même de sa morsure remplissait mon âme de satisfaction? Pouvais-je me réjouir faiblement?”. Essa “fâible réjouissance” perante a qual o próprio Itard classificou como “quelque chose d’abominable”, ou melhor a associação entre os dois sentimentos, é talvez o cerne desta obra singular. |
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