FUGA DE LOS ANGELES, John Carpenter, 1996

por João Bénard da Costa


A maior parte da crítica passou como cão por vinha vindimada pelo último Carpenter, genericamente considerado remake pouco inspirado e pouco imaginativo do filme de 1981 Escape from New York. Quase toda a gente pareceu pensar que uma das réplicas finais do Presidente (fabuloso Cliff Robertson) a Snake Plissken (Kurt Russell) “Estás-te a tornar insuportavelmente repetitivo”, se aplicava melhor ao próprio Carpenter. Já se tinha repetido nos dois filmes de 1995 (In the Mouth of Madness e Village of the Damned), repetia-se agora com esta obra de 1996 decalcada a papel químico do êxito de 1981.


Pois é. Como escreveu Robert C. Cunbow em 1990: “The auteur theory is out of fashion today”.
E o que era elogio há trinta anos (“os grandes autores fazem sempre o mesmo filme”) tornou-se em enxovalho. Nada pior do que ser predictable. Nada pior do que demonstrar um “estilo consistente e reconhecível”, uma “visão temática”. Nada pior do que fazer filmes que sejam parte de uma obra e em que o conhecimento da totalidade desta ajude à compreensão. Quem tiver melhor memória recordará que já de Escape from New York se disse que era reminiscência de Assault on Precint 13, o filme de 1976 que deu fama mundial a Carpenter. Só que, mais do que nunca, a memória é coisa de estúpidos, como sempre disseram, em nome da inteligência, os que não têm nem uma coisa nem outra. É que a repetição só é fastidiosa quando a primeira vez já o era. Uma vida humana é curta para mais do que duas ou três boas idéias fixas. Tudo o que há a fazer é variá-la, nas infindas possibilidades possíveis. A história do bacalhau? Precisamente. Mas se faltar o ingrediente básico, não há Gomes nem Sá nem Brás que nos valham ou valham ao prato servido.


Hitchcock e Hawks repetiram-se sempre? Repetiram. Mas, sendo sempre o mesmo, de cada vez era tudo novo. Por isso, tanto se pode dizer que fizeram sempre o mesmo filme como que fizeram sempre coisas que nunca tinham feito antes. Como, de resto, mais modestamente, disse Carpenter dele próprio, em entrevista de 1987: “I try to do things that I haven’t done before.


Volto ao ponto de partida (volto sempre) e ao tal diálogo com o presidente. A partir daí, o que era predictable deixou de o ser. Em vez de se contentar com o gag sonoro das trocas de bandas, como fazia em Escape from New York, quando descobriu que tinha sido levado com a história da coisa que lhe tinham metido no corpo, Snake (“call me Plissken”) socorreu-se da caixinha preta sofisticada para estourar com um mundo. Não o comove nada o patético aviso do Presidente de que, se o fizesse, rebentaria com todo o progresso técnico acumulado ao longo dos últimos cinqüenta anos. A ação do filme passa-se em 2013. Fizeram as contas? Com o que ele estoura é com a chamada “revolução informática”, computadorias e derivados, cujos inícios são mais ou menos datáveis em 1963. Depois, puxa de um maço de Virginian’s (“the smell of America”), mete vagarosamente um cigarro na boca, acende-o com um fósforo (no princípio, tinham-lhe dado uma caixa deles, dizendo que “podem sempre servir para alguma coisa”) e puxa uma bem saboreada passa. “Back to humanity” é a última frase que diz, antes de ficarmos no escuro com o genérico e a música do último grande compositor de filmes, John Carpenter chamado. Desde Bogie que não via uma tão arrogante expressão do “politicamente incorreto”, com a vantagem de ser muito mais incorreto (e muito mais subversor) do que nos tempos de Bogie.


Se comecei por este ponto (um diálogo, e um diálogo perto do fim) foi apenas para tentar ser mais didático. Porque penso exatamente o que Carpenter pensa quando declarou, ao tempo da estréia de Escape from New York: “Os filmes não devem ser uma série de grandes planos sobre rostos de personagens a falar. Não acho que o diálogo tenha muita importância. Penso que o cinema é um meio de comunicação visual e que a câmera deve, pois, cobrir visualmente tudo o que se passa. O diálogo existe para sustentar o que se vê, mas é o que se vê que conta.”


Se se soubesse ver, e não só olhar, ninguém falava de repetição, no sentido pejorativo que lhe deram. Porque o fato da ação mudar de Nova Iorque para Los Angeles muda tudo, uma vez que ambos os filmes se articulam em torno de um décor e não há décors mais diferentes do que Nova Iorque e Los Angeles, a cidade vertical e a cidade horizontal, a cidade em altura e a cidade em largura.


De certo modo, como Escape from New York era um filme sobre a arquitetura, Escape from L.A. é um filme sobre o cinema. Em Nova Iorque, Snake Plissken entrava pelos ares a arranhar os céus. Aqui, chega a Los Angeles de submarino, graças a efeitos especiais, e é o mundo de efeitos especiais que toda a ação percorre. As ruínas são as ruínas desses efeitos e das imagens míticas do mito do cinema: os estúdios da Universal, a colina de Hollywood, os espaços da maquiagem (espaços de zombies), a Disneylândia transformada em arena de combates mortais. Nem falta, num private joke, a montanha da Paramount, produtora do filme. Sucedem-se as citações dos filmes-catástrofe dos anos 50, esses que levaram Carpenter a decidir da sua vocação: The Blob, It!
The Terror from Beyond Space, Night of the Living Dead, The Quatermass Experiment, The Day the Earth Stood Still, etc, etc, etc. É sobre a destruição desse imaginário - imaginário dos anos 50 - que é constituído e reconstituído o imaginário de Escape from L.A., como se a prisão em que aquele espaço se tornou fosse a prisão do cinema e a prisão do imaginário específico dele. Ao isolar Los Angeles do resto da América, o sinistro presidente fundamentalista quis cortar da América a evasão e transgressão que, ao menos subliminarmente, Hollywood sempre para ela foi, quis retirar o cinema da América. O seu gesto deu expressão a todos quantos sempre viram em L.A./Hollywood a Sodoma gigantesca, origem de todos os males. A Hollywood Babylon dos livros de Kenneth Anger nunca encontrou melhor metáfora, como essa que dela fez cidade de todos os criminosos, todos os marginais e todos os revolucionários. Consciente ou inconscientemente, nesse ano de 2013 deu-se o seu a seu dono. É a City Beneath the Sea, a que só se chega de submarino, é o espaço do It’s a Mad, Mad, Mad World (a fabulosa corrida de surf) é - Apocalypse Now - o bailado dos helicópteros, uma das mais delirantes e terríficas seqüências que o cinema alguma vez nos deu.


E é também a cidade-catástrofe de tantos, tantos filmes. Por isso é em torno dela que o efeito de repetição é mais alucinante. No princípio, estamos em 1997, ou seja, estamos simultaneamente nos dias de hoje e estamos no tempo do futuro distante de Escape from New York (que em Portugal se chamou Nova Iorque 1997). Uma suave voz off feminina descreve Los Angeles com pequena décalage em relação ao “real”, um exagero ligeiro mas não muito acentuado. É um efeito estranho, porque, simultaneamente, parece que se está a falar de uma data longínqua (tão longínqua como 1997 era em relação a 1981) e se usam imagens e elementos que todos vimos na televisão, há dois ou três anos, quando os negros tomaram conta de alguns bairros da cidade. Depois, dá-se a ver, sempre em tom documental, o grande terremoto do ano 2000, que não difere muito do que também vimos em 1994 ou do que todos os San Francisco ou Earthquake nos mostraram. Finalmente, chega-se a 2013 e chega-se a um presidente que não só cortou L.A. do mapa americano como trocou Washington e a Casa Branca por uma cidadezinha de um rancho qualquer (private joke que um americano saboreará melhor). Ou seja, aboliu a monumentalização do passado, aboliu a história da América, quer aquele que, em Washington, reenvia aos founding fathers e ao mito do império americano, quer aquela que, em Los Angeles, reenvia ao cinema e ao mito de Hollywood como sonho universal.


Quem se lhe opõe? Um revolucionário de pacotilha (Georges Corraface), caricatura grotesca do “Che”, em revisionismo “correto e aumentado” dos fantasmas dos anos 60. Ao lado dele, vestida de punk anos 80, a filha do Presidente (A. J. Langer) sintomaticamente chamada Utopia. Se merece mais condescendência do que o amante facínora (e por isso é salva, na cadeira elétrica, pelo gesto final de Snake) contém nela a limitação de todas as utopias, entre uma hereditária falta de miolos e uma adquirida falsa nudez. Como da primeira vez que a vimos (imagem virtual, que ilude o próprio Snake) tudo nela é ficção.


Porque o “back to humanity” final não implica, da parte do herói monocular, maior simpatia para com os zombies e marginais de Los Angeles do que para com o mundo do presidente e dos seus acólitos.


Numa das mais belas seqüências do filme, o apelo à “radicalidade revolucionária” é tão varrido como o apelo à “radicalidade fundamentalista” do Presidente. É a seqüência em que Talisma, a jovem que se oferece para ajudar Snake, lhe explica, a uma magnífica luz crepuscular, porque escolheu viver em Los Angeles e porque é que ali, apesar de toda a violência e todo o horror, existe o único espaço livre no mundo de 2013. A seqüência é tão bela, a personagem tão densa, que, por momentos, estamos tentados a dar-lhe razão. Mas, palavras não eram ditas e cena não era vista, uma bala desgarrada, cotidiano da cidade, atinge em cheio a doce Talisma, que morre nos braços de Snake. Foi livre até o fim? Ou tudo o que disse é tão absurdo como a morte dela?


Se o filme se indecidissesse entre os dois “discursos” contraditórios que o atravessam (o de Talisma e o do Presidente) a moral da fábula não seria hawksiana, como sempre em Carpenter o é, nem este seria, como todos os filmes de Carpenter são, um “western urbano”.


No cinema, as consciências mudam-se. E, pelo que viu na cidade do cinema, aqui também e predominantemente cidade-esmeralda, Snake mudou. Volta muito menos Clint Eastwood do que foi. O Back to America final é Back to Hollywood (o grande classicismo de Hollywood), back to the great masters (dos heróis da América aos heróis dos filmes americanos) e back to a classical order (ordem que o cinema de Carpenter é dos únicos a continuar a proclamar).


Por isso, se alguma razão assiste a Nicolas Saada quando vê o filme como versão moderna da Ópera dos Três Vinténs de Brecht-Weil, devemos vê-lo mais e vê-lo melhor como a apologia do herói (gênero Gary Cooper, James Stewart ou Henry Fonda) que, sozinho, derrota todos os programas do mal. Mesmo monocular e coxo, esse herói recupera a virgindade e volta a permitir-nos “the smell of america”.


Escape from L.A. é um dos grandes filmes dos anos 90.


 

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