A VOLTA DE FRANK JAMES, Fritz Lang, 1940

por João Bénard da Costa


O quarto filme de Fritz Lang na América, depois da chamada “trilogia social” (Fury, You Only Live Once, You and Me) é a sua primeira obra a cores. Mesmo gente não muito favorável a esta película (ou comentadores para quem ela é uma obra menor) “tiraram o chapéu” à mestria no uso do technicolor. Gavin Lambert, por exemplo, o conhecido crítico do Sight and Sound, que durante anos sustentou a tese da decadência da obra americana de Lang, escreveu: “A limpidez e a doçura das paisagens do Oeste parecem ter estimulado sobretudo Lang enquanto pintor (“stimulate Lang only as a painter”), pois é no admirável gosto e no uso exploratório do technicolor que reside o maior interesse deste filme”.


O uso da cor não se limita ao bom gosto, mas, em toda a acepção da palavra pintor, a uma dramática utilização dela, de que Lang estava plenamente consciente quando abordou pela primeira vez essa técnica e quando abordou pela primeira vez o western. A Bogdanovich, declarou: “Zanuck veio ter comigo e disse-me: Lang, você não pode fazer grandes planos em cor. Respondi-lhe: Por quê? ‘Não sei, mas não se pode’. Fiquei a empreender naquilo, tanto mais que Zanuck, pelo menos nessa altura, não tinha nada de parvo. E descobri o seguinte: suponhamos, por exemplo, uma cena de noite, com uma mulher deitada na cama com a cabeça numa almofada branca; no quarto está também um homem de pé encostado a uma parede preta. Se filmar um grande plano da mulher, bem iluminada por um candeeiro na mesa de cabeceira, devido à almofada branca, há uma grande luminosidade no fundo. Corto e filmo o homem contra a parede preta. Branco e preto. Inevitavelmente, há um choque. Mas, depois de pensar e experimentar um bocado, aprendi que se der sucessivos grandes planos com a mesma luz de fundo, o olhar do espectador acaba por se habituar. Outra coisa: tem que se saber usar cores atenuadas. Por exemplo, uma mulher com uma maçã encarnada na mão: qualquer pintor lhe dirá que o olhar é imediatamente atraído pela maçã encarnada. Por isso, aprendi a evitar focos de luz brilhante, ou espelhos que reflitam luzes brilhantes. Um bom operador pode sempre iluminar de modo a que o espectador seja forçado a ver apenas o que o realizador quer que ele veja. No momento em que o olhar do espectador começa a vaguear e a interrogar-se sobre que coisa é aquela que está lá no fundo, perde-se o público”.


Lang interessou-se pelo western por ver nele o equivalente americano do que a saga dos nibelungos era para os nórdicos europeus, ou a Canção de Rolando para os franceses.


E este filme surgiu na seqüência do grande êxito alcançado pelo filme da Fox (de Henry King), Jesse James (39). Jesse James (o de King) contribuiu, quase tanto como Stagecoach, para o relançamento do western como grande gênero. A Fox não perdeu tempo. E logo encomendou ao alemão Lang, que tão alta idéia fazia desses filmes, segunda obra sobre os míticos irmãos James. O primeiro plano do filme faz, aliás, um explícito raccord com a obra anterior, quando vemos Jesse James ser abatido pelas costas pelos irmãos Ford (ou como diz a inscrição tumular - que Nicholas Ray retomou no futuro e genial The True Story of Jesse James - “por um traidor cujo nome não é digno de figurar aqui”). Sabemos até que a intenção original de Lang era aproveitar o último plano do filme de King (que com essa morte terminava) o que não veio a acontecer. Mas era e é um processo caro a Lang e que vinha da sua fase alemã (recapitulação no primeiro plano da segunda parte de Die Spinnen do final da primeira, recapitulação no primeiro plano de A Vingança de Kriemhild do final de A Morte de Siegfried). E essa idéia (recapitulação, retorno) volta nos seus filmes finais quer entre o primeiro e segundo dístico do Das indische Grabmal quer no início do Die Tausend Augen des Dr. Mabuse, remetendo para um plano famoso do Testamento do mesmo Mabuse.


Este aspecto é mais do que uma curiosidade, porque explicita o tema do eterno retorno, tão caro ao universo de Lang. Objetar-se-á que Frank não morre no final deste filme, como acontece a Jesse no anterior (entre parênteses noto que historicamente assim sucedeu, e que não há portanto qualquer transigência a happy ends no final deste filme). Mas Jesse, quando foi morto, preparava-se para a pacífica vida que é a de Frank no início desta obra e a que irá ter no final. Nesse sentido não regressa o personagem, mas regressa a intenção. Frank realiza o sonho do irmão, e realiza-o “legalmente”, com absolvição em tribunal e tudo.


Lotte Eisner nota muito bem como Lang jogou com o duplo sentido da palavra return. Frank regressa (abandonando o seu pacífico retiro) para vingar o irmão, mas regressa também para se redimir (return no sentido de vingança, return no sentido de “redenção”). Neste sentido (e servido pela admirável composição de Henry Fonda no seu segundo e último trabalho com Lang), este filme participa tanto da obsessão vingativa de certas personagens arquetípicas de Lang (Spencer Tracy em Fury, Glenn Ford em The Big Heat, Gary Cooper em Cloak and Dagger, Walter Pidgeon em Man Hunt, Arthur Kennedy em Rancho Notorious) como da descoberta final de todas elas que a vingança “é um amargo fruto” e que o círculo infernal tem que ser quebrado. É nesse sentido que todos estes personagens se vão aproximar mais de Lil Dagover de Der müde Tod (finalmente incapaz de trocar qualquer vida pela do amante morto) que de Margarete Schön de A Vingança de Kriemhild que assumira até ao fim a sua sede de destruição contra todos os que lhe mataram Siegfried. Nos filmes americanos - e muito sublinhadamente nos seus três westerns – Lang abandona essa obsessão raivosa, tornando-se os percursos dos três “heróis” desses filmes (Fonda, Randolph Scott, Arthur Kennedy) cada vez menos vingativos.


Ambiguamente? É certo, mas é isso que lhe dá a admirável espessura humana. Como se os acidentes que provocam as mortes dos irmãos Ford (num caso a queda, no outro o suicídio) fossem outras tantas tomadas de consciência do protagonista. Isso é singularmente dado no plano admirável em que Fonda vê cair o primeiro dos Fords (plano entre todos elíptico) e na prodigiosa montagem que acompanha o final: Fonda a dar um salto da cadeira logo que ouve a absolvição, para perseguir Carradine, a perseguição e essa morte final, quando Carradine sucumbe mais ao olhar de Fonda que às suas balas.


Frank James começa, aliás, o filme como Ulisses em Ítaca, antes que o venham chamar para a guerra. Recusa, inclusive, o próprio nome (diálogos com o negro, e lapsos deste). Só quando sabe da morte de Jesse, não pode deixar de intervir, mas sempre (o que o olhar vago e o passo lento de Fonda, acentuam) com uma certa consciência do absurdo. Os fabulosos personagens de Clem e Gene Tierney são as efetivas armadilhas no seu destino, reiterando-lhe esse absurdo. Mas a cumplicidade ativa da população com os abjetos irmãos Ford (irmãos contra irmãos, outra guerra mitológica) recorta-lhe o perfil.


Uma vez mais, para dividir a encenação especular (a de Frank) e a encenação fictícia (a dos Ford) Lang recorre à encenação espetacular. Neste caso não é o “filme dentro do filme”, mas a “peça dentro do filme”. Um dos momentos de antologia desta obra é a irrupção de Fonda pelo teatro onde Carradine e Tannen representam (ou seja, falseiam) a morte de Jesse, atribuindo-se o lugar dos heróis que não eram. O contracampo do palco com o camarote de Fonda (e com o olhar de Fonda) varre-os de cena, como depois se repetirá na morte de Charlie Ford e na fuga do tribunal de Bob Ford. Fonda é o espectador que sabe demais e que, por isso, sobrepõe à mise en scène desarticulada, à má representação (a do teatro) a mise en scène articulada e a presença não representável.


É verdade que ele próprio, depois, encena, (armadilhas, esconderijos, a própria morte). Mas as suas peregrinações nas espantosas paisagens (e nunca os décors reais do western tão panteisticamente foram expressivos dum conflito interior: árvores e rochas agressivas e torturadas) preparam-no para ter que aceitar o ponto de vista de Gene Tierney: testemunhar da inocência de Pinky com risco da própria vida, sem lhe dizer como Eddie Taylor a Joe (You Only Live Once) “if you’re wrong...” Porque a ordem exterior não é a policial desse filme, mas a desordem ainda possível (do espantoso tribunal, do espantoso júri, do espantoso advogado).


Redimido no final pelas provações que conheceu ao longo do filme, nos sucessivos episódios e conflitos (Godard viu admiravelmente essa necessidade de redenção implicada pela idéia de pecado, no seu famoso texto sobre o filme), Frank James pode dizer a Eleonor: “Today, I can look at myself in a mirror without blushing”.


Sobre o amargo pessimismo dos seus filmes dos anos 30 (e que regressará na fase final americana), Lang pode ultrapassar o fatum vindicativo (ou a maldição metafísica, que o eterno retorno podia implicar) para se reencontrar na dimensão romântica de Der müde Tod. Na dimensão moral em que “tudo torna a ficar quieto outra vez” e em que Frank James perde o seu ponto de vista (o ponto de vista dum código simultaneamente de gênero, de honra e de retorno) para se fixar na indeterminação possível da sua despedida de Gene Tierney: “mighty pretty country round there...”.


Frank James abandonou o pathos (imagem inicial da morte de Jesse) e reentrou no ethos? Eu diria que passa entre (o seu caminho final é solitário, sem Gene Tierney) contra o muro, beyond a reasonable doubt.


Entre os tiros da morte de Carradine (através duma porta, como em Ministry of Fear) e um olhar (o seu) que já não precisa de ver essa morte. Quem matou pelas costas, pelas costas morre. Quem esteve em off nessa morte, em off permanece. THE RETURN.


 

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