À FLOR DO MAR, João César Monteiro, 1986 por João Bénard da Costa Nos
anteriores filmes de João César Monteiro viajava-se bastante para o
interior e para o anterior. Os personagens carregavam culpas velhas,
pecados de pais e mães ou de outras famílias mais ou menos sagradas.
Eram longas as suas peregrinações por tempos e espaços de antanho.
Velhos contos portugueses, velhas contas portuguesas. É possível que a
memória me traia, mas ao correr da pena, os planos de mar de que me
lembro eram de ondas e rebentação ou (Que Farei com Esta Espada?) os planos dum Tejo brumoso onde surgia o barco de Nosferatu. A
única exceção relevante (obra que, de insólito modo, rima algures com a
que vamos ver) é o primeiro filme de João César Monteiro: Sophia.
Não terei hoje nem tempo nem espaço para falar destas rimas e por isso
me limito a acentuar as dissonâncias. Nessa obra, era Sophia de Mello
Breyner Andresen quem conduzia o realizador ao Algarve onde agora voltou
e ao Mediterrâneo clássico e efásico. O realizador opunha alguma
resistência àquela luz (a preto e branco) e aos mares novos de Sophia. Dezessete
anos depois, regressa ao mar e ao sul. Mas a viagem é outra e João
César Monteiro não vai mar dentro, nem nenhum dos seus personagens. À Flor do Mar
(belíssimo título) quer dizer qualquer coisa e o que vimos neste filme é
o que o aflora e sobre ele desliza, sem mergulhos nem conchas nem
corais. Um dia, Robert Jordan deu à costa com uma ferida superficial,
num desses barcos a que há quem chame lifeboat. Fazia sol e quente e
mais parecia transportado pelas águas do que perdido nelas. Nascimento
de Eros sem iras de Poseidon. O outro veleiro donde vinha chamava-se
Angelus, “estranho nome para um barco” ou “bom nome para um barco”.
Vemo-lo, luminoso e branco, numa imagem que Sara associará à felicidade.
Só no fim do filme, o veleiro se volve em navio fantasma, quando só
resta “aprender a gastar a felicidade que nos resta” (ou a infelicidade)
e quatro janelas sucessivamente se apagam, antes que o écran escureça
por completo, no que é o mais belo plano deste filme. O resto é
posfácio. Tudo fica nesse “petit pan de mur jaune” ou, se se preferir
uma citação cinéfila em vez de uma citação pictórica, nesse plano de Os Amantes Crucificados de Mizoguchi, quando uma luz também se fecha sobre a partida dos amantes. Mas
se a superfície e o fascínio deste filme sem volumes (superfície do
mar, superfície das casas, superfície dos corpos, tão à flor da pele
como à flor do mar), o apelo dos subterrâneos não deixa de se inscrever
nele. Se é a superfície do corpo de Laura, de fato de banho preto, sem
alças, o pescoço muito deitado para trás, que ficará na memória
associada à aparição de Roberto, o primeiro confronto de corpos e luzes
entre ambos dá-se noutra praia, entre grutas e corredores. Há crianças
que de noite chamam os morcegos e há um poço no jardim daquela casa,
escura por fora e branca por dentro. E, antes de se ir oferecer a
Robert, noutro plano pasmoso (braços pendentes, corpo tremente), Rosa
debruça-se nesse poço e pede às águas do fundo que a levem para longe,
muito longe dali. Mas
mesmo quando invocam as catacumbas ou amaldiçoam a luz (“esta luz
animal” como lhe chama Sara) os personagens, todos eles, são guiados
pela luz ou a ela aspiram. Talvez não tanto à realidade dela, com à
idéia dela, idéia ou ideal platônico como para o tão citado pintor de
Arezzo, Piero Della Francesca. Mas em Piero não há grandes planos e,
neste filme que foge tanto deles como de qualquer subjetivização do
olhar, o grande plano surge como figura de demarcação da impossibilidade
de atingir essa escala. Laura, que mais a invoca, não é criatura do
Borgo San Sepelcro mas de Roma. Não é a Virgem de Piero, mas uma mulher
de Bronzino ou Pontormo, pintada na luz de Roma e, do maneirismo
italiano, uma luz dramática, pois que a manhã da criação foi também a
manhã da ferida. À Flor do Mar
perpassa a luz da perfeição e da “absoluta consonância” que seria a luz
de Piero, como perpassam, os vários Roberts ou Robertos onde não
podemos voltar (Jordan, Rossellini ou Browning), mas tudo isso ou todos
esses são idéias sem materialização possível. A luz de Piero está para
este filme como a música de Bach que nele se ouve. É um apelo, não é uma
descrição. Os humanos são demasiado indiscretos para elas. E a
consonância parece só existir nas naturezas mortas (donde, a importância
delas e do tema da comida neste filme) ou então (outra seqüência
capital) noutro décor, quando Laura está na boite, entre encarnados. Dou
um exemplo para parecer mais claro; há a seqüência dos melões e depois o
beijo de Robert no pescoço de Laura. Esta afasta-se e vem sentar-se
diante do espelho, no plano deste filme que mais expressamente reenvia
aos filmes anteriores de César Monteiro. E é um plano fabuloso. A luz é
vagamente escura e recomeça-se a ouvir o adágio da Sonata de Bach. A
música torna-se mais forte e a luz também, até o plano ficar todo azul,
dum azul quase branco. Mas quando se espera a “explosão”, tem-se o corte
e o écran fica todo negro, no silêncio. Quando voltamos à imagem, a
tonalidade recuperou-se e Robert Jordan volta enquadrado na janela,
contra o mar. A vida do impossível é muito efêmera e só se pode esquecer
uma boca na boca de outra mulher. Laura
não é Ifigênia nem Penélope, como Robert não é Teseu nem Ulisses. O
homem de brinco na orelha, nascido numa macieira, se é associado a esses
mitos, é-o também a outros mais noturnos e menos solares. Como o mito
do Virgílio, a que Sara permanece ligada naquela casa incestuosa e que
talvez reencontre quando, na sua reaparição como Norma e como Callas,
vestal e operática, chama em off Jordan, Robert Jordan e o esconjura a
não olhar para trás. Mas,
neste filme romântico (e João César Monteiro é o nosso único grande
cineasta romântico) é já muito tarde para esse apelo. O vento não podia
ser suave (como no terzettino do Cosi que se ouve quando Laura
volta da sua manhã da criação) e já sabemos que Robert não voltará da
última viagem. Como as pinturas de Virgílio, também as suas
peregrinações ficaram interrompidas, lugar de sombras em que pistolas e
poetas usam o mesmo nome. Por
enquanto só podemos ver tudo filtrado por um cristal como nesse último e
fabuloso plano de Manuela de Freitas, trompe-l’oeil da luz e do
pintor que antes ela evocara para as crianças. Por
estranhíssimas coincidências (mas haverá coincidências?) Piero Della
Francesca aparece nos dois últimos filmes portugueses aqui estreados
(estou a referir-me a Mon cas de Manoel de Oliveira) como
metáfora da unidade impossível. Em Oliveira, na Cidade Ideal. Em João
César Monteiro na “luminosidade casta e cristalina” dos frescos de
Arezzo. Só o olhar com que o olham (e nos olham) é completamente
diferente. Por alguma razão, o que num é palco, noutro é superfície ou,
dito de outro modo, o que num é drama antes de ser terra noutro é terra
depois de ser drama. |
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