A FELICIDADE NÃO SE COMPRA, Frank Capra, 1946 por João Bénard da Costa Em The Name Above the Title, Frank Capra conta com vagar a gênese do wonderful film que vamos hoje ver ou rever. Capra regressava da guerra a Hollywood e tinha que se readaptar a uma capital do cinema que mudara muito (pós-guerra quente e pré-guerra fria). Um dia, Charles Koerner entrou-lhe pela porta (porta do recém inaugurado Liberty Films, que Capra fundara com William Wyler e George Stevens para continuar a ter “the name above the title”) com meia dúzia de páginas datilografadas em forma de cartão de Natal que continham o script que Dalton Trumbo extraíra do conto de Van Doren Stern, The Greatest Gift. Dou a palavra a Capra: “Era a história que toda a vida procurara. Uma cidadezinha. Um homem. Um homem bom, ambicioso. Mas tão preocupado em ajudar os outros, que deixava perder as oportunidades da vida. Um dia, perdeu a coragem. Desejava nunca ter nascido. E esse desejo era-lhe satisfeito. Meu Deus, que história! O gênero de história que fará dizer às pessoas quando eu for velho e estiver a morrer: foi ele quem fez The Greatest Gift”. Capra comprou imediatamente os direitos mas encarregou o casal Hackett - Albert Hackett e Frances Goodrich - (que tinham feito a série do Thin Man e depois escreveriam musicais como The Pirate, Summer Holiday, Easter Parade, Give a Girl a Break, Seven Brides for Seven Brothers ou a série dos Pais da Noiva) de reescrever a história. Para o protagonista escolheu imediatamente “o único ator que podia fazer aquele papel”: Jimmy Stewart, como Capra no seu primeiro filme pós-guerra. E rodou It’s a Wonderful Life em quatro meses (de Abril a Agosto de 46) “num orgasmo ininterrupto”. Quando o concluiu estava firmemente convencido de ter feito “the greatest film I have ever made. Better yet I thought it was the greatest film anybody ever made”. Mas a América (e o mundo) tinham mudado muito. E se o filme ainda valeu a Capra a sua sétima (e última) designação para o Oscar (que perdeu a favor de outra produção da Liberty Films, The Best Years of Our Lives de Wyler) como designação valeu a James Stewart, o sucesso foi bastante relativo. Não faltou quem dissesse que o Capra-corn se estava a tornar cada vez mais corn e menos Capra e quem escrevesse que “a história era tão piegas, que roçava o infantilismo”. Bosley Crowther no “New York Times” chamava-lhe “um reportório de banalidades melodramáticas”. E nenhum anjo desceu do céu para o ajudar no meio dessa irônica indiferença. Capra ainda fez mais meia dúzia de bons filmes, mas o seu inconfundível touch chegou aqui ao final. Nunca mais houve um Capra assim. Mas o tempo, nas suas muitas voltas, veio dar razão ao cineasta. 60 anos depois, It’s a Wonderful Life é um cult movie e o mais amado dos filmes de Capra. Danny Peary na sua obra sobre os cult movies afirma mesmo acreditar que qualquer inquérito o incluiria entre os mais populares filmes americanos de sempre, ao lado de O Mágico de Oz, de ... E o Vento Levou, de Casablanca, de A Noviça Rebelde ou de Guerra nas Estrelas. Para mim, It’s a Wonderful Life é paixão antiga desde que o vi no Politeama, tinha eu doze anos. E muitas vezes, ao longo da vida, me tenho lembrado da moral desta fábula (corn ou not corn) e a tenha contado a gente que repete, com James Stewart, que “era melhor não ter nascido”. E nunca consegui deixar de chorar no tear-jerking finale, “admittedly one of the most sentimental endings of all time” (estou a citar Danny Peary). Mas se esse final, após a “ressurreição” de James Stewart, com The Bells of St. Mary’s no cinema da terra (second feature), a dedicatória no “Tom Sawyer”, a música de Natal, os milhões de merry christmas, os milhares de dólares a cair no cesto e os milhares de amigos a entrar, é, de fato, o mais tear-jerking e o mais natalício dos finais de um filme (que deve ser o que mais vezes foi programado pelas televisões para a noite de Natal) não penso, como a maioria dos críticos, que este filme seja o mais otimista dos filmes de Capra. Já em tempos comparei a estrutura das suas obras precedentes (sobretudo Mr. Smith Goes to Washington) com a dos westerns clássicos. O cowboy que veio parar a uma cidade de “duros”, apanha muita “porrada” e no final vence o “mau” da fita, no último duelo. Nesses filmes, esse herói, chamasse-se Gary Cooper ou James Stewart, vencia sozinho, ou acompanhado por uma minoria de “bons”, a princípio aterrorizada e depois, à medida que o “herói” crescia, mais desenvolta nos seus auxílios. Aqui, neste filme com que se encerra o Ciclo do great old Capra, James Stewart vence também, mas precisa de uma ajuda de que até aí jamais precisara: a do anjo de 293 anos chamado Clarence Goodbody que, de resto, desceu à terra não apenas para o ajudar, mas para ganhar as asas que em todo esse tempo ainda não tinha conseguido alcançar. A personagem é prodigiosa, Henry Travers é-o também, mas essa “descida à terra” não nos deve fazer esquecer que todo o filme é visto do ponto de vista do céu. Ao princípio estamos na terra (“You are now in Bedford Falls”) na mesma noite de Natal do fim, com a neve a cair e os sons do Natal. Ouvimos em off orações e a câmera vai até às estrelas, onde Clarence trata Deus por “Sir”. Deus tem uma voz de patrão, firme e dura, manda-o sentar e dá-lhe uma hora para ele se vestir. E quando ele está “sentado” (a câmera sempre nas estrelas, sem personagens) convida-o para um “bom filme”: a vida de George Barnes desde o dia, aos sete anos, em que salvou o irmão mais velho de morrer afogado, até à noite de Natal que é tempo de todo o filme. Ao princípio, não se vê nada (quem não tem asas, não vê dos outros planetas) até que a imagem foca e “começa o filme”. E quando passamos da infância à idade adulta, de Bobby Anderson a James Stewart, Deus diz a Clarence “Take a good look on him” e o plano imobiliza-se em paralítico com James Stewart de braços todos abertos, no arquétipo da imagem capriana, que também no cinema nunca mais voltou a ter (depois é o James Stewart de Mann, de Hitchcock, de Ford, tão genial como sempre, mas bem diferente como personagem). É como se Capra nos dissesse também que nunca mais ninguém o iria ver assim, como fora em You Can’t Take It With You ou em Mr. Smith Goes to Washington. A história da vida de George Bailey é a história de coisas tão bonitas, como Gloria Grahame a fazer parar o trânsito, o “graduation ball” de 1928, com James Stewart a dançar o “Charleston” como Fonda dançava a valsa no Young Mr. Lincoln; aquele espantoso mergulho coletivo; Donna Reed “the prettiest girl in town”; o roupão caído, ela atrás dos arbustos e a morte do pai; os “discursos” de Stewart (sempre vagamente demagógicos); o “point me in the right direction”; o telefonema a três e o beijo a dois (a câmera sem se mexer, num dos mais prodigiosos planos que alguma vez alguém assinou); a “wedding night”; e o beijo de Ernie a Bert (essa seqüência é inadjetivável); James Stewart, o charuto e o aperto de mão a Barrymore; a guerra em filigrana, e tanto mais. Mas é também, em surdina, o elogio do sacrifício e por breves apontamentos (um olhar de Stewart para o irmão ou para a mãe, o espantoso e patético personagem de Thomas Mitchell) a insinuação que basta um leve toque e podemos ver o negativo de tudo isso. E a noite da inexistência de Stewart é esse negativo. Os mesmos geniais secundários, fraternais e solidários, “mudam de filme” e quem vence são outros arquétipos deles, patentes nos casos de Beulah Bondi, Ward Bond, de Frank Foylen. Aparentemente, esses eram os que não tinham razão para mudar. Se percebemos que o farmacêutico tivesse ido parar 20 anos à cadeia, não fosse George, se percebemos que o irmão tivesse morrido, não fosse George, se percebemos (já mais forçadamente) que Donna Reed tivesse ficado solteirona e de óculos, não fosse George, porque mudaram tanto todos os outros, porque são todos tão agrestes e rudes? E - o que é mais - porque mudou a cidade toda (mudou até de nome) convertida num vasto lupanar, entre stripteases e luzes agressivas? E por que é que o único personagem que George não re-visita é Lionel Barrymore, o único que não podia ter mudado? Pode um homem só transformar tanto a vida de todos? Capra diz-nos que sim, mas diz-nos que sim, não no real, mas no “filme mostrado” por Deus a Clarence e, depois, na noite que resultou do “truque” do Anjo. De certo modo, “It’s a Wonderful Life”, (mas no cinema...) “it’s an awful city” mas com batota. É por isso que a explosão final é tão forte. Porque tudo o que até aí fora um pouco mágico (coisa de anjos e estrelas) se encarna naquela noite de Natal, em que a presença do Anjo é apenas a de uma discreta campainha, sob a força do plano de George com os filhos ao colo e os dólares que vêm de tudo e de todos. Para um tal hino à vida e ao amor (a palavra final da dedicatória de Clarence) foi preciso ir até às estrelas. Forçar um pouco a mão ao destino, para melhor tentar a liberdade. Não se trata de viajar no passado para descobrir a inelutabilidade dele, mas de não sair da mesma noite, para mostrar como o futuro a modifica. Aparentemente construído em flashback, este filme desfila como as imagens dele. A vida na terra, mesmo em Bedford Falls, é bem mais maravilhosa e mais comovente do que a vida dos anjos que a deixam (apesar das asas ganhas) com uma secreta nostalgia. No céu, não há Natais. Esse é o lote dos homens e é por isso que “it’s a wonderful life”. Por mais simpático que o anjo seja, não temos pena nenhuma de o ver desaparecer. O nosso amor é George Bailey - James Stewart, em paralítico ou na agitação frenética da imensa alegria final. |
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