O FANTASMA APAIXONADO, Joseph L. Mankiewicz, 1947
por João Bénard da Costa
1. Em
1979, organizei, na Gulbenkian, um ciclo sobre cinema americano dos anos 40.
Desse, como de outros ciclos dos anos 70 e Da morte
de Langlois até ter voado de mim (estou, pois, a falar de uma pessoa com
setenta e muitos anos, ou oitenta) desenvolvemos uma relação que me é
impossível qualificar. Telefonava-me vezes sem conta, altas horas da noite,
quase sempre para casa, pois que, para ela, telefones de trabalho (Gulbenkian
ou Cinemateca) eram telefones sob escuta dos nossos muitos ignotos e
invisíveis inimigos. Se, quando a conheci, era gordíssima e imponentíssima,
disseram-me que em nova fora belíssima. “J’étais
plus belle que toi”, teria dito um dia a Marlene e tê-lo-ia sido ao tempo
em que a lenda pretendia que se passeava por Paris nua, sob um fabuloso
casaco de renard argenté. Nesses
telefonemas noturnos, transparecia o “coquettismo” das mulheres que são ou
foram muito bonitas e se habituaram a seduzir homens. Tinha uns olhos
extraordinários, como só o têm os quase cegos que vêem o que mais ninguém vê
(quase cega sempre a conheci). Tinha uma voz de baixo profundo, que
facilmente se confundia com a de um homem e dominava, na perfeição, o inglês,
o alemão, o francês, o italiano, o russo e muitas mais línguas que nem eu sei
(num jantar, uma vez, espantou toda a gente recitando poemas em armênio e os
armênios presentes juraram-me que ela o dominava fluentemente). Por que
razão ela me tomou sob sua proteção nunca saberei bem. O nome Gulbenkian (ela
teria conhecido Calouste Gulbenkian quando foi marchande d’art) contribuiu fortemente, mas não explicou ou
explica tudo. Lia através de mim ou em corpo ou Soubesse-o
ou não (e eu, hoje, acho que, se ela não sabia tudo, sabia muito), o que é
certo é que, graças a ela, eu fiz o meu nome como programador. Filme que lhe
pedisse (mesmo que a Cinemateca Francesa o não tivesse ou o poder efetivo
dela na Cinemateca Francesa já fosse diminuto) era filme que ela me
encontrava. No fim do mundo, ou ao virar da esquina. Há uma
expressão que eu acho deliciosa e aprendi há pouco tempo com as minhas netas
mais velhas, com a Sofia e com a Mariana: “amizades coloridas”. Se não sabem
perguntem, que eu não estou aqui para explicar. Mas acho que a minha relação
com Mary Meerson foi uma “amizade colorida” avant la lettre. Après la
lettre, vejo-lhe o olhar renascendo em muitas vidas, ou de dantes ou de
depois. 2. É
estranho. Eu não vinha para falar de Mary Mersoon, sobre a qual escrevi uma
crônica quando ela morreu e co-organizei um catálogo a que chamei O Cinema como Magia. Se a
invoquei, e ao tal ciclo de 79, foi para contar uma história bizarra das
muitas entre nós sucedidas. Além de filmes, pedi-lhe cartazes para uma
exposição paralela ou coisa que o valha. Ela enviou-me os originais de The Grapes of Wrath de John Ford e de The Ghost and Mrs. Muir de Joseph L.
Mankiewickz. São cartazes enormes e vinham montados em diversos rolos, para
depois se colarem e se pendurarem nas fachadas do cinema, como nos anos 40 se
usava. Mandei-os para o serviço de exposições da Gulbenkian que, pouco
habituado àquele gênero de materiais, os montou, sim, mas os colou em enormes
e pesadíssimos contraplacados de madeira. Quando assim os vi, caiu-me a alma
aos pés. Como é que eu ia devolver aqueles “monstros”? Descolar os cartazes
nem pensar, que ficavam Assim fiz.
De Não é tão
bonito como o das Vinhas da Ira,
com desenho original desse mestre dos nossos neo-realistas que se chamou
Benton. Mas nunca resisti ao sorriso de Gene Tierney, tão segura, tão
insegura, precisamente por isso. Curiosamente, uma Gene Tierney tingida de
louro, quando nunca houve mulher mais morena e mais branca 3. Esta
vida é de fato estranha. Quando eu
vi O Fantasma Apaixonado pela
primeira vez tinha 12 anos. E foi no Tivoli dos veludos da Fox. Quem fosse o
realizador - Joseph L. Mankiewickz, depois, também, meu cineasta de cabeceira
- ignorava completamente. Só me interessava Gene Tierney e, depois de visto o
filme, passou-me a interessar Rex Harrison, com quem vivi pela primeira vez. Gostei.
Gostei muito. Mas quão longe estava de adivinhar o que esse filme iria
significar para mim, passados os 40 anos, quando o revi no tal ciclo da
Gulbenkian e, depois, quando o revi e revi e revi em dezesseis passagens na
Cinemateca e mais não sei quantos visionamentos. Já contei
mil vezes, mas, como estou morto por contar, conto outra vez. Mrs. Muir
(Lucy Muir = Gene Tierney) enviuvara há pouco tempo de um Mr. Muir que nunca
vemos, mas não era de molde a deixar grandes saudades. Sogra e cunhada em
Londres, princípio do século XX, vigiavam a virtude da jovem viúva e da filha
dela, de dois anos. O filme começava quando a situação se começava a tornar
insuportável e Mrs. Muir, doce mas firmemente, anunciava que ia sair de vez
daquela casa para ir para o pé do mar, para o pé do mar. Nem rogos nem
ameaças a demoveram. Procurou casa junto ao Mar do Norte como Mar do Norte
nunca vi, mas nenhuma casa a convenceu. Até que viu a que queria ver, mas
ninguém lhe queria mostrar. A casa estava assombrada pelo fantasma do Capitão
Gregg que nela se suicidara. Só que os fantasmas não assustam Mrs. Muir. Um
fantasma é o medo que a gente tem dele. Mrs. Muir
instala-se na casa com a filha e com a criada. E logo o fantasma começa a
visitá-la. “I know you are here”,
diz ela. As luzes todas se apagam, começam as trovoadas e os relâmpagos. Mas começa
também, pouquíssimo depois, a história de amor entre o fantasma mais
malcriado do mundo e a mulher mais mar do mundo. Debalde o fantasma lhe diz: “I’m here
because you believe I’m here.” Não vou
contar o filme todo. Há sempre uma hora em que se acorda dos sonhos. Os
fantasmas não são para toda a vida. Quando o percebe, Rex Harrison, pois é
dele que se trata, sempre de negro vestido, vem despedir-se dela que dorme. “What you
have missed by being born too late to travel the seven seas with me! And what
I’ve been missed too? What we both have missed!” Antes recitara
Keats, depois dá-lhe um quase beijo. Mrs. Muir
descobrirá depois que o real é bem mais frágil. Fica na casa, pensando sempre
que o que aconteceu nunca aconteceu, que nunca houve fantasma algum. Mas o
que houve deu sentido a tudo, por ser feito de tão nada. Depois o
tempo passou. Passa sempre. Depois, um dia, o coração de Mrs. Muir deixou de
bater. Quando a criada lhe vem trazer o chá cruza-se com o fantasma e com
Mrs. Muir, que avançam devagarinho nas brumas. Como é que diz Keats que o fantasma recita: “I have been half in love with easeful
Death... Was it a vision or a waking dream?” Por que é
que as pessoas se apaixonam por fantasmas? Por que é que os fantasmas se
apaixonam por pessoas? Perguntá-lo é perguntar “como pode usar amor de
entendimento”. Sempre que vejo, no meu cartaz, Rex Harrison mais azul do que
negro sumir-se no fundo do colo de Gene Tierney, pergunto-me qual dos dois
foi fantasma e como o Andrea Francorum de Stendhal “inter quos possit esse
amor”. Lembram-se do que ele respondia a quem se embaraçava com a obscuridade
de discursos destes? É melhor não se lembrarem. |
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